Ligeiramente atrasado, cheguei às
cinco e quarenta da manhã à simpática cidade paranaense de Ponta Grossa, mas
ele já me esperava na rodoviária. Não o vi de imediato, pois eu estava meio
zonzo após tantas horas no “porão” daquele ônibus e minha coluna gemia devido
ao desconforto da “segunda classe”.
O reencontro foi caloroso, como
convém a velhos amigos que se reveem. Entramos no carro, passamos num posto
para abastecer e comprar erva-mate – uma “Bitumirim” desbotada, mas saborosa.
“Esta é o povão que usa”, disse-me um alegroso
e todo prosa Freizinho.
Entramos no convento quando se celebrava
a primeira missa. Paramos diante da capela, toda decorada para o Natal e fiquei
embevecido com tanta beleza. O chão coberto de feno compunha um autêntico
estábulo. As cadeiras e as paredes revestidas de papel pardo davam a impressão
de se estar numa gruta formada por um vasto rochedo. E ainda os frades com seus
batinões cinza... Aquele cenário me fez retroceder mil anos e me vi em plena Idade
Média – uma página viva de Umberto Eco, mas sem a dramaticidade de “O Nome da
Rosa”.
No entorno do convento, lírios,
pinheiros e muitos pássaros. São juritis, tico-ticos, bem-te-vis, anus,
canários e “anônimos”, que cantam e encantam num incessante louvor. No pátio interno, entre as galerias de celas, uma parreira exibe incipientes cachos.
Próximo à minha janela, um sino no alto de uma torre anuncia desde as Laudes até
a última prece que precede o repouso. Contemplei aquele sino e tive vontade de
puxar a corda e badalar, badalar, badalar.
Há também um eremitério dentro de
um bosque e o Freizinho me levou àquele pedacinho do Éden. É uma pequena e rústica
capela com três bancos de madeira bruta desdobrada, um estreito corredor como aposento
e tendo ao fundo um banheirinho – tudo o que um eremita necessita para viver ‘holisticamente’
integrado a Deus e à natureza. Na frente da capela, há uma torre com um sino (que
tangi diversas vezes) e, nos fundos, uma aconchegante varandinha com fogão a
lenha. O Freizinho acendeu o fogo – ou a fumaça, pois houve mais fumaça do que
fogo. A água da chaleira chegou a chiar, mas não a usei no chimarrão. Tivemos
que voltar devido aos inúmeros compromissos que esperavam pelo frei.
Mas a vida desse franciscano não
tem nada dos floreios bucólicos que esta crônica sugere. Amante das artes, da
literatura, da vida acadêmica e campestre, ele não tem tempo para devaneios
poéticos. Acorda sempre de madrugadinha
e seu dia não tem hora para terminar. Como um típico socorrista, ele tem ao
longo do dia uma barafunda de crises para
resolver. Crises conjugais, de relacionamento, existenciais, familiares, de fé
etc. Como se não fosse suficiente a faina diária e as viagens pelo País – todas
de ônibus, porque o Freizinho tem pavor dos ares –, ele ainda dirige os
trabalhos de uma comunidade assistencial a moradores de rua.
Já é quase meia-noite, quando o
Freizinho começava a celebrar na Comunidade Deus Pai para um público formado basicamente
de mendigos. Após a celebração, uma perua percorrerá a cidade à procura de
moradores de rua a fim de lhes servir sopa com cachorro quente. Animado por um
violão, o grupo de voluntários dança, cantando músicas diversas, sendo “Zaqueu”
o hit preferido. Dentre os “clientes”,
há um maluco, que se esbofeteia o tempo todo; outro que recusa a sopa e nos
afugenta; mais à frente, quatro homens e uma cadelinha dividem calçada,
cobertores e o lanche. A cachorrinha coça suas pulgas enquanto seus donos tomam
sopa em caixa longa-vida. Mas a caravana segue viagem madrugada adentro, enquanto
o Freizinho e eu caímos fora. O cansaço venceu! Às três horas e vinte e três
minutos, entrei em minha cela; às seis, o Freizinho já está com seus confrades
na capela rezando as Laudes!
A biologia nos dá irmãos, os
amigos nós conquistamos, mas poucos têm a graça de ter um irmão que é também
amigo. Amigo é alguém com quem se partilha angústias, e de quem se aceita
eventuais reprimendas sem que fiquem mágoas. E o Freizinho é-me singularmente
irmão e amigo. Obrigado, mano!
FILIPE