É, mamãe já está ficando velhinha.
Não pelos oitenta anos que completa neste 23 do mais mariano dos meses. Oitenta
anos nem são tantos assim, mas há tempos mamãe deixou de ser a lépida jovem que
conheci no alvor de meus dias – hoje vivendo reclusa em seu cantinho. Antes do
amanhecer, contudo, ela já se levanta e começa a fazer suas muitas preces.
Depois, apoiando-se na parede, caminha até o banheiro. Feita a toalete matinal,
empreende uma “longa caminhada” até a varandinha da sala. Ali, sentadinha num
sofá, espera pacientemente o abraço morno de um sol ainda sonolento, cujos longos
braços perpassam os eucaliptos na encosta do “morro do Tatão Tibúrcio”. Aquecida,
ela fixa o horizonte, apertando os olhos num aparente esforço para se manter
desperta, mas sucumbe a um breve cochilo quando a caneca de café com leite e
bolacha chega pelas mãos do Zezé, seu fiel esposo e escudeiro incansável.
Quando nasci, mamãe era uma jovem
de vinte e dois anos – uma adolescente! Sendo um dos mais velhos da prole, pude
conviver com ela em seu pleno vigor físico. Muitas vezes a jovem mãe reunia os
filhos para o banho, trocava-os e saía para um passeio à casa de minha avó Jacira
ou à casa de uma de suas muitas comadres. Mamãe atravessava pastos, passava sob
cercas de arame farpado, sobre pinguelas. Não tinha medo: nem de boi nem de cão
nem de nada. Poderia ter um rebanho no seu caminho ou uma matilha ladrando, que
ela nunca desviava de seu curso. A intrépida senhora não parava nem olhava para
trás, indo apressada e a passos firmes.
Numa de suas visitas, ela me escolheu
como companhia. Saímos para a casa da dona Bilinha numa manhã de sol, após uma
chuvarada. Chegando ao arraial de Vilas Boas, entramos à esquerda e tivemos que
passar num riacho com águas bastante revoltas. Estava difícil, mas mamãe quis
arriscar a travessia, segurando-me pelo braço. Nisto, veio a mulher do seu
Dirceu Paiva, que morava próximo. Era uma senhorinha já ‘quase’ idosa, mas
muito esperta. Chegou rápido e, apoiando-se num porrete, atravessou comigo ao
colo. Depois deu a mão à minha mãe e
passou com ela também. Nunca me esqueci dessa cena, desse gesto, mas não me
lembro do nome daquela doce criatura.
Noutra ocasião, fomos visitar a
dona Neusa do Zé Lúcio, comadre de minha mãe, que morava no alto de uma montanha.
Saímos ao meio-dia e voltamos já bem tarde, descendo a serra com noite escura.
Mamãe veio conversando comigo pela estrada e eu tentei falar de alguns dramas
existenciais, que já me acometiam nos meus oito ou nove anos. Lembro-me deter
perguntado: “Por que as pessoas são tão desonestas?” Perguntei sem ter a mínima
ideia do que seja ‘desonestidade’, mas pelo prazer de usar uma palavra nova,
que ouvi em algum lugar e achei interessante. Não lembro o que mamãe respondeu.
Talvez apenas tenha rido de meu incipiente pedantismo.
Também naquele tempo, mamãe
gostava de cultivar um minúsculo jardim no terreiro de casa. Ao lado direito da
porta da sala, num rústico canteiro, ela plantava moça-velha, bonina,
crista-de-galo e outras flores silvestres, que não se veem mais. Na sala, sobre
a soleira da janela, havia um pequeno vaso de duas-horas. Toda tarde,
desabrochavam-se flores que, no dia seguinte, já murchas, mamãe cortava com uma
tesoura.
Foram-se as visitas, foram-se as
flores, mas ficaram as memórias – agora ainda mais perfumadas no octogésimo
aniversário de mamãe.
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