sexta-feira, 24 de julho de 2015

AO DOM CIPOLLINI

NOTA: Este texto foi encaminhado ao jornal "A Tribuma" de Amparo, edição de hoje.


Prezado Dom Pedro Carlos Cipollini, em diversas ocasiões ocupei este espaço para lhe fazer cobranças, mas nunca para ressaltar os seus muitos acertos à frente da diocese de Amparo. E por outras tantas, dirigi-me ao senhor através de e-mails, às vezes hostis, confesso. Mas no seu silêncio, com certeza, rezava por mim e pelo seu ministério. 

Certa feita, o senhor me convidou para uma conversa. Fui àquele encontro como quem caminha para o “sinédrio”, devo admitir. Aquela não poderia ser uma prosa de compadres. Estávamos em trincheiras opostas e a artilharia prometia ser pesada. Chegando à Cúria, um amável pastor recebeu sua “cabeçuda” ovelha – conforme se referiu a mim em tom amistoso – e conversamos por um tempo relativamente longo, a julgar pelos inúmeros compromissos de um bispo diocesano. Naquela oportunidade, pude me inteirar dos grandes problemas existentes num episcopado, alguns praticamente insolúveis. 

Dentre minhas tantas implicâncias com o senhor, uma era sobre a venda de bebidas alcoólicas nas quermesses. Na ânsia de ver esse problema resolvido, eu apelava para que se decretasse o banimento do nefasto comércio de “pinga” em todos os festejos de nossa diocese. Mas não me dei conta de que a Igreja é Comunidade. Para melhorar a Igreja, é preciso transformar a Comunidade, e isso não se faz via decreto episcopal. Cada um de nós é responsável pela mudança que queremos, e esse desejo há de ser plural ou não se transforma, jamais.Saí daquele encontro tomado de embevecimento, amado bispo. Vi, diante de mim, não um prelado que ocupa um alto posto na burocracia da Igreja Católica, mas um santo pastor. Um homem que reconhece seus limites e tenta acertar. A partir daquele dia, nunca mais lhe mandei e-mails desairosos e muito menos publiquei algo neste semanário que lhe pudesse ser ofensivo.

A vida do senhor tem passado por mudanças profundas. Recentemente, foi eleito para um importante cargo junto à CNBB. Agora, transferido de Amparo, já toma posse na Diocese de Santo André – uma das mais importantes do país em números de fiéis, além de ter uma bela história em defesa da democracia nos inglórios tempos da ditadura militar. A sua responsabilidade, que já era grande, agigantou-se. Nesta nova seara, espero que o senhor continue exortando o clero a adotar em suas práticas a pouco lembrada Doutrina Social da Igreja. Porque a nossa Igreja não pode fazer concessões aos poderosos, que vivem às custas do suor e das lágrimas dos empobrecidos, mas precisa caminhar com o povo, para que o Reino cresça e floresça para todos. 

Dom Pedro Carlos, tenha certeza de que, seguindo os passos do Papa Francisco e à luz do Evangelho, todos os seus esforços serão plenos de êxito. E para tanto, pode contar minhas preces.

OBS: Minha conversa com D. Pedro foi contemplada em postagem intitulada “Armistício”, publicada neste blog. 

FILIPE

sexta-feira, 10 de julho de 2015

MEU AVÔ SEBASTIÃO

NOTA: Este texto está no novo livro de meu pai.


Sebastião Lopes de Lima, conhecido por Bastião Lope, viveu relativamente pouco, pois falecera aos setenta e, aparentemente, com boa saúde. Desses setenta anos de vida, seguramente sessenta foram de trabalho duro, sem férias, folgando apenas aos domingos e olhe lá... Num sábado, véspera de sua morte, trabalhara até à tardezinha roçando um pastinho onde ficava o Queimado, seu cavalo de cela e charrete. Morrera a caminho da igreja, num domingo, onde assistiria a uma missa matinal.

Vovô Sebastião era famoso por ser homem trabalhador, bem-sucedido e “sistemático”. Muita gente se referia a ele com este adjetivo, não sei se em elogio ou crítica. Eu o admirava e até me esforçava para ser como ele: de poucas palavras, pouco riso, quase turrão, mas respeitado. No entanto, não consegui ser nada do que foi meu avô.

Madrugador, penso ser o vovô Sebastião o único homem que nunca fora despertado pelos raios solares. Quando o sol aparecia no horizonte, o vovô já estava a desdenhá-lo no serviço: tocando gado, carreando, ordenhando as vacas ou capinando. A minha avó Luzia, ao se levantar, já encontrava seu café na chaleira sobre a trempe do fogão a lenha, bem quentinho. Vovô foi muito cuidadoso com sua companheira, sempre a tratando com carinho e mimo. Prova disso é a “casa na rua”, que ele comprou para que ela tivesse mais conforto. Minha avó mudou-se para a “rua” com uma filha, enquanto vovô passava a semana no sítio, cuidando de suas vaquinhas, porcos, galinhas e de um moinho d’água. No sábado à tarde, ele marchava para sua casa na cidade, permanecendo por lá o final de semana. Mas, no amanhecer da segunda-feira já regressava à sua fazendinha.  Quando havia a “bateção” de pasto, minha avó vinha para o sítio com ele a fim de cozinhar para a companheirada. Nessa ocasião, uma dezena de camaradas, todos com foice, chegava bem cedinho no terreiro da “fazenda”, recebia as instruções e partia para o serviço. Em poucos dias, a pequena herdade do Bastião Lope estava limpinha de vassourões, erva-canudos e outros matos que não fossem capim-jaraguá e capim-gordura, que alimentavam o gado. Durante aquele serviço, os roçadores folgavam em cantoria do começo ao fim do dia. Enquanto as foices bailavam pra lá e pra cá, eles contavam piadas, faziam chacotas um do outro e cantavam uma espécie de repente denominado “calango-tango”, em que se trocam versos improvisados. Para começar, era comum alguém cantar: “Eh foicinha regateira, tá com esprito da gerarda!”

Cedo, às vezes com a relva ainda molhada pelo orvalho, o vovô já chegava com o almoço. Um enorme cesto era posto à sombra de uma árvore e dele se tiravam incontáveis caldeirões de comida. A boia era farta e rica, o que fazia atrair muitos companheiros para seu serviço. Então, cada caboclo pegava seu caldeirão e fazia a refeição sentado sobre o cabo da foice ou numa “almofada” de mato cortado. Vovô não economizava na carne de porco, torresmo, queijo e ovos. Aliás, o queijo frito, uma de suas especialidades, era a iguaria mais apreciada. De sobremesa, rapadura e queijo.
                             
Eu mesmo cheguei a trabalhar para o vovô, catando café embaixo do cafeeiro. Ele me dava uma daquelas latas de “Gordura de Coco Carioca”, de dois litros, para encher. Para cada lata cheia, eu ganhava uma moeda. Às vezes eu ficava uma tarde inteira para encher uma única lata, e me dava uma preguiça... Certa vez, ele me deu a lata vazia e uma moeda, dizendo: “Companheiro meu trabalha já com o ordenado no bolso”. Talvez desconfiasse de que eu não desse conta do serviço, mas, com pagamento antecipado, eu não poderia me esquivar. Então, fui à luta e enchi rapidinho aquela vasilha com os grãos de café. Noutros tempos, era o galinheiro que deveríamos fechar aos sábados, quando ele ia para Guiricema. Às vezes ia o irmão mais velho, o mais novo ou eu mesmo. Certa vez, vovô recompensou-nos com lindos chapéus de palha coloridos.

Outro presente do vovô Sebastião foi a Princesa, uma bezerrinha branquinha e filha de uma vaquinha amarela de nome Cocada. A Princesa nos deu muita alegria, muitas crias e nenhum coice ou chifrada. Seu leite era disputado, pois diziam ser o mais saboroso da fazendinha. O fato é que a Princesa era diferente mesmo. Seu charme, além da docilidade, eram suas cinco tetas, sendo duas geminadas.

Mas, no dia em que eu completava doze anos, vovô Sebastião faleceu. Eu estava na casa de meus avós maternos, quando uma tia me chamou e disse: “O seu avô Bastião Lope morreu!” Lá havia uma festinha, pois um tio, com quem faço aniversário, sempre me levava para festejar com ele. Mas a nossa festa, que ficou sendo a última, acabou para que fôssemos ao velório de meu avô. E desde então, o meu aniversário tornou-se particularmente um dia triste.


FILIPE