Ele era um
homem bom. Assistiu seu pai na velhice e a irmã mais velha na enfermidade. Quando menino, chegamos a ser companheiros de
lida com a lavoura. Numa época em que os pequenos eram sempre desprezados, ele
me tratava como adulto, fazendo-me sentir importante e feliz. Hoje,
diferentemente daquele tempo, crianças não trabalham, mas também não parecem
felizes.
A minha geração trabalhou duro, seja na
plantação, na capina ou na colheita. Por mais penoso que fosse a labuta, com aquele
senhor era bom trabalhar, pois não tinha pressa. No milharal, ao final de cada
carreira ele parava para acender o cigarro de palha - que sempre trazia no
bolso ou no canto da boca -, enquanto descansávamos um pouco. Tinha a voz
mansa, pausada, como o mineiro típico daquela região da Zona da Mata.
Algum proveito,
ainda que inconsciente, eu queria tirar da proximidade com aquele homem. Por
algum tempo fiquei encantado por uma de suas sobrinhas, o que contribuiu para
que eu desistisse de ir para o seminário, onde já estava o irmão mais velho.
Mas isso era segredo meu. Ninguém sabia (ou eu pensava que ninguém soubesse)
que aquela mocinha “do nariz arrebitado”, conforme muitos diziam, pudesse
desviar os passos de um futuro presbítero. Acho que ninguém soube mesmo, nem a
sobrinha.
Mas o romance de menino passou,
arrastando consigo a vocação sacerdotal - para melhor sorte do clero e da
menina, pois ambos tiveram um problema a menos.
Nas minhas viagens àquelas
bandas, costumava visitar o velho amigo. Porém, devido à pressa ou à preguiça,
por algum tempo eu deixara de vê-lo. Da última vez, pareceu-me bem mais velho e
cansado, mas conservava seu habitual bom humor traduzido na peculiar
gargalhada. Nessa visita, dei-lhe um canivete multiuso. Na verdade, eu não
o estava presenteando, visto que eu ganhara dele um isqueiro Vospic. Talvez seja
o mesmo, de fabricação alemã, que ele usava na roça de milho para acender seu
cigarro de palha no fim da carreira. Ao
pegar o canivete, seus olhos luziam de contentamento. Também fiquei contente,
mas temeroso, pois o velhinho manuseava com dificuldade o mimo. Suas mãos
trêmulas mal conseguiam abrir a lâmina, e eu tive que lhe acudir naquele
momento de “descoberta” para que não se cortasse. Isso me deixou quase
arrependido. Mas, após algumas recomendações como: “Cuidado, pois isso já me
machucou uma vez. Abra bem devagar!”, aquietei-me deixando-o ao lado da
companheira, que também manifestara curiosidade pelo brinquedinho.
Certa vez, eu estava na cidade
numa tarde quente, de mormaço. Estava desanimado para percorrer aqueles seis
quilômetros, a pé e sozinho, até minha casa. Para minha alegria, logo saíra de
uma vendinha o amigo. Com sua companhia, fiquei animado e começamos a
conversar. Logo veio outro, um compadre seu, e a prosa ficou entre os dois. Comecei
a sobrar. Pouco depois, eis que surge uma charrete. O charreteiro deu carona
para os dois, e eu sobrei de vez. Tive que caminhar tristemente sozinho. Tempos
depois, ao falar com o amigo desse episódio, ele se mostrou muito envergonhado
e disse que nem se deu conta da minha ausência na charrete.
A mensagem de meu pai no celular
dizia do falecimento. Fiquei triste, muito triste. Três dias antes, fora um
tio; agora um amigo. Os dias passam, nós passamos... E a vida segue.
Tá desculpado, seu Dico, por ter
me esquecido na estrada! Obrigado pela amizade e descanse em paz.
FILIPE
FILIPE