Recentemente, tive um civilizado
bate-boca com um amigo em rede social. No contexto em que se deu o “entrevero”,
o jovem, idealista e pertinaz, defendia a primazia da “justiça divina”,
enquanto eu apelava para a “divina misericórdia”.
A ideia de um “Deus de Justiça”
me vem à cabeça sempre com certo alívio. Fico imaginando aquele homem furibundo,
fortão e barbudo, com a balança numa das mãos e a espada na outra. Um arcanjo,
acho que os anjos têm essa função, pega a alma e a põe trêmula na balança do
“Juiz”. Este entrega a espada ao auxiliar, um querubim, e dá uma ajeitada na
balança. Desloca umas argolas, endireita o braço, olha a escala e faz umas
contas, de cabeça mesmo, porque calculadora não lhe faz falta. Após breve análise,
a alma volta encolhidinha e já com o destino selado às mãos do arcanjo, que
estava ali esperando o veredito. A frase: “Afastai de mim, malditos. Ide para o
fogo do inferno!” soa-me como ópera, se proferida contra ladrões, homicidas e
os demais malvados de nossa espécie. Mas, dependendo do momento, o “Deus de
misericórdia” me parece mais conveniente, por não ter espada nem cara crispada.
Com este, tudo se resolve numa conversa macia e uns tapinhas nas costas. Ao final,
ajeitam-se as coisas e cada um tem garantida a vaga no “ninho celeste”. Bacana,
não?...
Não, não é bem isso que deve
acontecer no “Dia do Juízo”. O Deus da
justiça é o mesmo Deus misericordioso. A justiça divina está baseada na nossa
prática de justiça terrena; a misericórdia divina também se dará conforme nossa
conduta, se usamos ou não de misericórdia. Esse “deus bravão” não existe, como
também não existe o “deus bonachão”. Sua misericórdia é infinita, mas Sua
justiça não falha. Misericordioso, Deus acolhe a todos: puros e impuros,
cristãos e não cristãos, muçulmanos, animistas, ateus... todos! Mas Deus não
nos obriga a aceitar Sua acolhida. Se estamos em inimizade com Ele, o problema
não é divino, mas nosso, e seremos julgados pelos nossos próprios códigos. Naquele
dia, a grande surpresa pode ser a seguinte.
Eu levo uma vida de sacrifícios,
desapego, jejuns e orações, e de mortificações. Mas o pândego do meu vizinho,
ao contrário de mim, é sujeitinho à toa e da pior espécie. Por coincidência,
chegaremos juntos diante de Deus para o tão esperado ”julgamento”. Pode ser que
Deus me convide a entrar. E eu entro, olhando disfarçadamente para trás,
pensando: “Agora ele vai se ferrar!”. Mal eu ponho os pés na soleira da porta
do Paraíso, alguém toca no meu ombro: “E aí, parça! Vamo de boa nessa?...” Olho
assustado: "Não, não pode. Esse ‘tranqueira’ entrando comigo no Paraíso?..." Com
ele, eu não fico aqui!” Então, volto ao Senhor: “Como pôde salvar aquele cara?...
Ele deveria estar nas chamas, porque foi dito: ‘Ide para o fogo...’” “Chega!”,
diz o Senhor, tentando controlar uma inesperada fúria. “Filho, tu vês apenas a
obra. Eu também aprecio os grandes feitos da humanidade: as obras missionárias,
o sangue dos mártires. Aprecio também o Barroco de Minas, a Capela Sistina. Mas
não só. O que vale aqui, não é o ‘resultado contábil’. Não leste nas
Escrituras: ‘Esforçai para passar pela porta estreita’? Por isso, considero o
esforço de cada um a maior riqueza. E esse tesouro, apenas eu posso avaliar!”
Concluindo, somente Deus conhece
as lutas interiores de cada um de nós. Por isso, apenas Ele pode nos julgar.
Apegar-se à literalidade das leis incorre-se num rigorismo inquisitorial típico
da Idade Média. E tem mais. Deus nos fez imperfeitos, incompletos, fracos, mas ávidos
de felicidade e capazes até de se apaixonar. Ele sabe disso!
FILIPE