sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

ONANISMO PEDAGÓGICO

 

O título pode chocar os leitores mais pudicos, se é que os tenho, mas não achei palavra melhor para traduzir meus ânimos nesses tempos pandêmicos.

Começo falando sobre algo ocorrido nesta semana e que me deixou desconcertado, isto é, a meio caminho entre a vergonha e a ira. Fiquei envergonhado porque ao longo de trinta anos como professor, nunca fui repreendido por um superior sem que este não recebesse a devida réplica; desconcertado porque fui admoestado e sem condições de me defender; irado porque há um plano malévolo de doutrinação de professores orquestrado por uma elite que desconhece a escola pública. 

Ano passado, durante todo o período de teletrabalho, fomos obrigados a assistir a inúmeras videoconferências, teleconferências, palestras, monólogos e quejandos. Neste ano, apesar do risco de contaminação, fiquei mais tranquilo porque me senti livre daquelas amarras. Mas descobri que não estou liberto. Explico. 

De volta à sala de aula, sem alunos, e com vontade de exercer a docência, encontrei uma colega em início de carreira com quem comecei a desenvolver um trabalho conjunto.  Pegamos o material pedagógico e começamos a planejar, já que dividiremos algumas séries do ensino médio. Foram vários dias revendo conteúdos, resolvendo exercícios, discutindo a melhor forma de abordagem etc. No embalo, esqueci de que havia uma videoconferência da qual eu deveria participar como ouvinte. A “chefe” chegou e perguntou: “Não está assistindo à videoconferência?” Eu disse que não, que havia esquecido... (menti). Mas ela foi incisiva: “Não pode deixar de assistir!” Sem defesa, resolvi atacar: “Essas VC nada me acrescentam, é tudo enrolação! Já aqui, estudamos, planejamos, produzimos”. A “chefe”, no entanto, não se deu por vencida e rebateu: “Tem que assistir, porque todos assistem e sou cobrada!” Finalmente cedi, mas atirando: “Por você, e apenas por você, vou assistir à reprise. Mas essas ATPCs são um lixo!” A professora se foi e eu fiquei perturbado com o episódio: primeiro, porque tenho muito carinho por ela; segundo, porque ela estava apenas fazendo o seu trabalho. 

Terminado o expediente, voltei para casa cansado, chateado, bastante maltratado pela situação. Então abri o computador e me dei ao sacrifício de assistir à malfadada teleconferência, desta vez com expressões floridas como “trilhas de aprendizagem” e “transbordamento”. Pernósticos, esses atores não se cansam de inovar com a melosidade de “um beijo no coração de todos e todas”, ou com as palavras da moda: “protagonismo”, “galera”, “ressignificação”, “engajamento”, “inovação” e a indefectível “resiliência”. Ah, e tem as expressões inglesas, que não sei falar nem escrever. Eles querem ser chiques, mas são bregas, e talvez não saibam que antigamente, quando se aprendia português de verdade, a professora citava o ‘anglicismo’ e o ‘galicismo’ como os principais vícios de linguagem denominado ‘estrangeirismo’. 

Após assistir ao vídeo, com duração superior ao de um longa-metragem, encaminhei relatório com um comentário bastante cáustico, mas verdadeiro: “Não conheço professor com alguma argúcia e pensamento elaborado que aprecie as atividades da EFAPE”. 

Neste momento em que a pandemia de covid atinge o pico de internações e mortes, o governo decide pela volta às aulas presenciais. Os onanistas da EFAPE, aqueles das palestras enfadonhas, estão a salvo da contaminação; já os professores não terão melhor sorte. 

FILIPE

 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O GRANDE ENCONTRO

 


Sim, este foi para mim um grande encontro. Maria Eugênia veio conhecer seu avô após sete meses de longa espera. Ela chegou numa ensolarada tarde de sábado, bastante cansada de uma viagem que deve lhe ter sido interminável. Assim que o carro estacionou na garagem, fui ao seu encontro, não sem uma pequena preocupação: bebês são sinceros demais e costumam afastar estranhos. Eu era um estranho ali e ela deveria me dar uma bicuda logo de cara.

Chegando, cumprimentei os pais e me dirigi àquela por quem tanto ansiava. Apertei a maçaneta e abri a porta do carro. Ela me olhou enigmática, mas não se esquivou. Apresentei-me solene, beijando-lhe a ponta de um dedinho e a abençoei. Em seguida, tentei destravar o cinto para tirá-la, mas o cinto não destravava. Então a ergui por sobre o cinto e, com grande contorcionismo, consegui içá-la sem que se tocasse o teto. Entre assustada e curiosa – mais curiosa do que assustada – ela me olhou fixamente mais uma vez e avaliou a situação. Cansada que estava, cedeu e se aninhou no meu colo – para júbilo meu e espanto de alguns.

Com esse pequeno triunfo, subi apressadamente a escada e a levei até a varanda. Eu quis mostrar o arvoredo, as montanhas, o horizonte dourado daquela tarde irrepetível, mas ela preferiu olhar para meus óculos, quis agarrá-los, torcê-los.

Nesse dia Maria Eugênia me trouxe de presente um passado não muito distante. Ela me levou ao tempo em que eu cuidava de uma bebê igualmente fofa e que hoje é sua mãe. Mas não só. Ela me levou para mais longe ainda. Fui transportado para a casa de meus pais quando meus irmãos mais novos – cada qual a seu tempo, é claro – eram bebês como esta que eu trazia nos braços agora. Lembrei-me vividamente daqueles meus irmãozinhos – talvez uns sete – dos quais ajudei a cuidar. Os bracinhos roliços e torneados; os pezinhos redondos, quase esféricos; os dedinhos rotundos como batatinhas; os gestos erráticos; as mãos inquietas; os olhos curiosos; a impaciência com a mamadeira que nunca fica pronta (...). 

Ah, a experiência de ser avô é indescritível, e quem define bem esse estado de graça é um irmão, dono de um rico patrimônio de quatro rebentos: “Ih, é muito bom ter netos!” 

A minha cronológica traz algo bastante curioso. Três decênios me separam do nascimento de meu pai, e com três decênios tive minha filha. Explicando: papai tinha 31 anos quando nasci e eu tinha 30 anos quando minha filha nasceu. O mais curioso, contudo, é que meu avô paterno tinha 58 anos quando eu nasci; e com essa idade eu tive minha neta. Um “breve” período de 116 anos separa os nascimentos de Sebastião Lopes e Maria Eugênia, e na metade exata desse intervalo eu vim ao mundo. Então posso antever o que serei para a Maria Eugênia: um velho! Porque o meu avô Sebastião, de cabelos brancos, botinas de couro cru, chapéu de lebre e dente de ouro, foi o primeiro “homem velho” a cruzar minhas veredas.
 

FILIPE


terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

MINUDÊNCIAS DO COTIDIANO

 


Esse aí é o Patão, mas só falarei dele mais para a frente. Porque se ele não tem pressa, eu também não tenho.

Nesses tempos insanos, minha saúde mental exige que eu procure algo que possa minorar minhas agruras, pois meu dia a dia tem sido bastante confuso. Embora eu tenha afazeres domésticos, tento pôr ordem no quintal, recortar jornais, pôr a leitura em dia, mas não consigo muita coisa, não. Começo cortando a grama; deixo a grama e começo a recolher as folhas; deixo as folhas e começo a colher mangas; deixo as mangas e começo a acender o fogo; deixo o fogão a lenha em meio a uma fumaceira danada e começo a descascar as mangas; deixo as mangas e volto ao fogão, porque o fogo está muito violento; dou uma “bronca” no fogo, que se abranda, e volto a descascar as mangas; encho a panela com polpa, ponho no fogo e vou limpar a pia; deixo a pia e levo os rejeitos de manga para as galinhas do vizinho. E o doce fica pronto e fica bom. 

Abandono a TV Cultura e cumpro a melhor parte da minha rotina: pego um baldinho com cascas de frutas e de legumes e levo para as “meninas” do vizinho. É uma festa! Ali, bicos famintos e vorazes quase furam minhas mãos enquanto distribuo as iguarias. Tem o galo, que canta forte um grito de “socorro”; tem também garnisés e galinholas; tem frangos e frangotes; e tem patos sem lagos, coitados. O gingado, a despreocupação e a falta de pressa fazem dos patos as aves mais charmosas. E lá tem o Patão, de quem não falarei ainda. 

Leio notícias de Brasília e fico depressivo. Então pego a raquete elétrica e grelho algumas moscas e as jogo na teia da Chiquinha, nossa aranha de estimação. Todos os dias preciso alimentá-la e jogo uma ou duas moscas torradinhas para ela, que parece ficar agradecida e preguiçosa e cada vez mais gorducha. Vou à varanda e observo o casal de rolinhas que aproveitaram um antigo ninho e onde criam dois lindos filhotes. Um tucano, que fica à espreita, já devorou minhas juritis, mas essas rolinhas foram mais espertas e se aninharam bem próximas de minha janela. Aqui o tucano não se mete, eu acho. 

No pomar aparecem uns macaquinhos que comem as minhas jabuticabas e cobiçam minha banana-maçã. Já deixei um cacho de banana para eles, e agora chega. Outro dia eles estavam lá: pai, mãe e filho brincando de esconde-esconde. Um descia do abacateiro e o outro descia também; um se escondia e o outro procurava; o que era encontrado subia rapidamente; o outro corria atrás e já não o achava. Por uns bons minutos pude apreciar a cena. Mas se eles estavam à toa e eu tinha serviço. Desci.

Ah, vou falar do Patão. Esse coitado nunca comia. Até ele chegar numa casca de banana, um bico mais veloz já havia tascado. Era sempre assim, atrasado. Eu jogava na direção dele, em cima dele, mas nada! Sempre abobado, sem saber o que fazer, ele me deixava condoído. Mas, com o tempo, fizemos amizade. Agora que ele confia em mim, come na minha mão. Então encho a mão com cubinhos de casca de melancia, sua comida preferida, e estendo na sua direção através do alambrado. Ele chega com aquele bico enorme e pega a comida, mas com uma delicadeza... 

Valeu, Patão. Vida longa, amigão. Amanhã tem melancia, tá ok?... A sua porção está reservada. Com o Patão e essas miudezas, toco meu dia a dia. Porque sem isso acho que eu não resistiria. 

FILIPE