Numa tarde ensolarada deste
inverno, acompanhado de meu irmão caçula e de seu filho, fui ao lugar onde ficava
a casa de Antônio Vermieiro – um caboclo que conheci já velho e escarpado pela dura
lida do campo. Naquele recanto, sem luz elétrica nem água encanada, seu Antônio
viveu por anos com a esposa dona Fiinha – mulher “sem leitura”, mas uma das
criaturas mais argutas que já vi.
Subindo sempre, percorrendo pequeno
trecho de bosque permeado por furnas de pedra, chegamos às ruínas da antiga
edificação. A casa, há tempos demolida,
deixou um teimoso alicerce de pedra bruta, que insiste em delimitar o contorno
de cada cômodo: a sala, onde seu Antônio ouvia um velho rádio de pilha, os
quartos, uma despensa e a cozinha, que ficava um pouco abaixo do corpo da casa.
Um montinho de terra é o que sobrou do fogão
a lenha onde dona Fiinha assava saborosas broas de fubá. Lembro-me de que, em certa
manhã, eu tomava chimarrão e ela me ofereceu café com um pedaço daquela broa.
Como não bebo café, ela me deu água com açúcar, que aceitei. A partir de então,
em todas as minhas madrugadas, quando tomo água doce antes do chimarrão, eu me
recordo da simpática dona Fiinha.
Percorrendo as cercanias da
antiga casa, encontramos vestígios da engenhoca que seu Antônio usava para
fazer garapa de cana para seu café (o açúcar era reservado às visitas). Encontramos
também o que sobrou d’uma chaleira, uma foice e algumas enxadas. Eu quis trazer
comigo uma enxadinha, não apenas como recordação, mas para usá-la mesmo. Esse cacumbu, que para mim é uma relíquia, foi
abençoado pelas mãos daquele montanhês, um dos últimos remanescentes dessa estirpe
de bravos camponeses. Do pomar que ele cultivou, ainda restam frondosas
mangueiras, um pé de cacau, limoeiros, bananeiras e um abacateiro.
Em êxtase, meu irmão filmava, fotografava
e explicava cada detalhe: “Aqui havia um chiqueiro, ali um galinheiro, lá o
paiol, e estes paus eram os troncos do engenho.” Mais: “Eu tinha um cavalinho, e o padrinho amarrou
uma corda nele para tocar a engenhoca. Eu ficava montado no cavalo dando voltas enquanto ele ia pondo cana na moenda para fazer garapa”. Depois: “Cara, eu sou
um Peter Pan... Sou um Peter Pan!”, citava o famoso personagem que não aceitava
abandonar a infância. E a infância desse irmãozinho foi realmente fantástica
junto àqueles seus padrinhos. E assim, ciscando aqui e ali, o caçula ia
removendo espessas camadas de três décadas de história, revendo um passado
sempre presente em sua vida. Enquanto isso, tal qual o desbravador Indiana
Jones, meu sobrinho abria caminho com um machado improvisado.
Numa de minhas ultimas visitas
àquela família, encontrei dona Fiinha bastante doente. Seu Antônio, preocupado com
ela porque não se alimentava, desceu até a vendinha e comprou alguns quibes
para a esposa. “Eu busquei umas quibas,
mas nem isso ela quis”, disse-me desacorçoado. Acamada e com doença grave, aquela mulher nunca
reclamou de dores e partiu enquanto rezava. Eu soube com atraso da morte dela, e
subi para visitar o amigo, que estava desolado. Lembro-me de sua expressão: reclinado
e em silêncio, aquele homem olhava fixamente o chão.
Pouco tempo depois, seu Antônio seguiu
sua companheira. Estava sentado, conversando com um parente, quando um estranho
silêncio interrompeu o assunto. O companheiro pensou que seu Antônio
cochilasse, mas não. Ele partiu tão serenamente como viveu.
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