sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

SOZINHO NO NINHO


O casal de juritis chegou devagarinho à minha varanda. Um deles pousou no muro, deu uma espiada pra cima, pra baixo e pros lados. Melhor vasculhar as cercanias, vai saber se não tem um gato por perto?... – pensou. O namorado aproximou-se mais, aninhou-se num vaso de samambaia e fez a corte. Seus movimentos circulares, contudo, não animaram a companheira, que continuava olhando de longe, ressabiada.  Essa coisa não vai dar certo, tenho medo – deve ter pensado a prudente pombinha. No dia seguinte, já havia uns gravetos amontoados pelo noivo que, embora galanteador, parecia não ter muito jeito para a coisa. A noiva, no entanto, não se animou nem um pouco com aquela gambiarra, e ameaçava abandonar o recinto, inclusive o consorte.  

Entre humanos, já ouvi dizer, as mulheres têm queixas semelhantes às daquela pombinha. Mas há quem diga serem elas umas eternas revoltosas: reclamam da vida e de tudo, e nunca se dão por agradadas. Mas a pombinha tem razão, porque o seu pretendente é mesmo atrapalhado e muito lambão, que nem sequer um ninho decente é capaz de fazer para sua amada.

Eu, compadecido daquela jovem, tentei dar uma força. Peguei um pratinho de plástico, ajeitei nele uma porção de capim seco e pus na samambaia, desprezando acintosamente o trabalho do pombo ‘porcão’. Esperei para ver o resultado e... não é que funcionou?! A mocinha ficou feliz e houve núpcias na minha varanda. E eis que logo surgiram dois ovinhos que, sem demora, se transformaram em dois filhotinhos com bico, pena e tudo mais a que uma ave tem direito. A mãe, orgulhosa e enciumada, não saía do ninho por nada. Mas o pai, cioso de sua responsabilidade, aparecia em seu turno para substituir a companheira nos cuidados com as crias. Desde então, enquanto um chegava com o almoço, o outro já saia para providenciar o jantar. E os moleques foram crescendo, crescendo, e tão rapidamente que, em uma semana, a mãe já não coube nos aposentos, deixando-os sozinhos sob a provável proteção de algum “anjo da guarda”.  Pouco depois, os pais decidiram interromper o fornecimento das ‘quentinhas’, obrigando seus rebentos a irem à luta. A prole protestou, choramingou, mas não adiantou.

Numa tarde, porém, um deles fugiu, deixando para trás seus muitos excrementos e o irmãozinho. Fiquei preocupado. “Será que foi abandonado para sempre? Como os pais, inicialmente tão zelosos, desprezam uma criança tão indefesa? E seu irmão de sangue, aquele desnaturado?...”

Mas o pequerrucho não foi abandonado. Embora sozinho no ninho, estava sob constante vigilância da mãe que, pousada no muro, falava-lhe algo num idioma que só as rolinhas dominam. No dia seguinte, este desapareceu também. Mais tarde, no quintal do vizinho, a família estava reunida, festejando à maneira deles. Os pequenos, incentivados pelos pais, faziam ginásticas aeróbicas e já ensaiavam pequenos voos. Em pouco tempo, encetarão voos mais soberbos e dominarão os ares nas alturas.

A sabedoria ‘columbina’ nos mostra que “é sozinho que se aprende a voar”.

FILIPE

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

JORGINHO


Jorginho era a síntese do caboclo mineiro: desconfiado, de fala mansa e arrastada, perguntador sabido. Mas suas perguntas não eram inconvenientes.  De longe, quando eu ainda enfrentava a cerca de arame farpado que delimita seu cantinho, já ouvia: “Quando você chegou?” Depois de nos cumprimentarmos, outras perguntas viriam: “Quando você vai embora? Ah, você vai ficar uns dias aqui, né?” Também a clássica: “Será que vai chover?” A resposta que sempre dou a esta última é profundamente filosófica. Percorro os céus com um olhar perscrutador à procura de uma benfazeja nuvem e arremato categórico: “Rapaz... Sei não.” Mas, conversa vai, conversa vem, perguntas mais complexas também se ouviam do amigo. “E esse homem da eleição, o presidente, o que acha dele? Será que vai dar certo?...”, indagou-me desta última vez. “Você, que votou no homem, deve saber”, provoquei. “Não, eu não votei nele não. Pra mim ele gosta é de gente rica, de estrangeiro. De pobre é que ele não gosta mesmo.” 

No mês passado fui lá para lhe dar um presentinho. Levei um doce, que nem era presente, mas a paga pela fava que peguei com ele em julho. Estava animado. Capinara todo o quintal, plantou milho e fava. “Sua fava tá plantada”, apontou para o roçado logo abaixo da casa. Vi as covas recém-feitas. A terra estava fofa e as sementes ainda por germinar. Olhei ao lado e notei uma pequena construção rústica. Era o rancho para instalar uma garapeira. Mostrou-me onde fincaria um tronco para que nele afixasse a moenda. “Vai fazer café com a garapa?”, eu quis saber. “Não. A garapa entope o coador. Eu gosto mesmo é de moer a cana e beber a garapa.

Ao lado e um pouco acima do ranchinho da futura garapeira estava uma varanda abarrotada de lenha. Jorginho foi um lenhador, talvez o último da região, que ia à capoeira com foice e corda de bacalhau. Ele cortava a lenha, fazia um grande feixe, amarrava e levava para alimentar seu fogão a lenha.

Faz tempos que adquiri o hábito de visitar o amigo. Inicialmente ia lá para buscar fava, que eu mesmo colhia e debulhava, sem que ele cobrasse por ela. Tentei, na primeira vez, pôr dinheiro em seu bolso, mas ele refutou veementemente. “Não vou cobrar fava de você, jamais. Seu pai me ajudou muito, assinou minha aposentadoria. Eu gosto muito da sua família e pode levar a fava sem pagar nada.” Mas, em troca, eu lhe fazia um agrado: dava uma lanterna, um jogo de chaves, um canivete suíço. Certa vez ofereci calculadora, mas ele já havia comprado uma. “Então você usa a calculadora?” “Sim, uso” “Mas você sabe fazer contas nela?” “Não, eu não conheço letra nem sei fazer conta.” “Uai, mas como usa a calculadora?” “É o seguinte. A gente vai ficando velho e fica esquecendo as coisas. Aí eu uso essa calculadora pra votar. Eu ponho o número do candidato nela e levo para não esquecer.” Ao ouvir isso, senti uma profunda tristeza. Tentei tocar o assunto adiante, convencendo-o a estudar. Perguntei se não queria que eu ensinasse alguma coisa básica, a assinar o nome, por exemplo. “Ah, não, eu não tenho cabeça para aprender. Meu negócio é a enxada e esses ‘trem’ aqui. Essa coisa de estudo atrapalha a cabeça da gente. Vocês, sim, têm mente boa para aprender. Mas eu não.”

Jorginho era um cabra raçudo, que morava sozinho num sítio, longe de vizinhos. Ali ele plantava cana, milho, abóbora, feijão e fava. Tinha também coco-da-baía, mangueiras, pés de laranja e outras árvores. Eu gostava de ir lá e tinha prazer de conversar com ele. Admirava sua coragem, pureza de alma e a sabedoria cabocla. Ansiava por esse encontro, que me parecia poético. Há exatas três semanas estive com ele; duas semanas depois, ele partiu. E partiu como sempre vivia. Sozinho.

FILIPE

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

ENQUANTO SE PODE ACHAR


O tempo é ligeiro. As horas passam, os dias vão. Os meses, os anos, os séculos – todos voam em velocidade de cruzeiro. Com eles, vamos todos passando, desfilando pela vida rumo ao desfiladeiro que nos aguarda. Por isso, uma visita aos pais, ao amigo, ao irmão, ao parente distante é algo que não se pode postergar. Se o hoje existe, o amanhã é uma incerteza. De presente, temos o ‘presente’; o futuro é miragem.

Rabisco este texto numa madrugada na casa de meus pais, que estão velhinhos. Velhinhos, mas felizes. Felizes e saudáveis. E a alegria desse reencontro é um indescritível sinal do Reino. O dia desperta ao som de galos, grilos e sapos na lagoa. Uma carimbamba, lá nas encostas, participa deste alvorecer com sua clássica cantata: “Amanhã eu vou, amanhã eu vou, amanhã eu vou”. Talvez ela saiba que amanhã estarei com meu irmão mais velho, o Mano Véio – já ‘sessentão’ e que parece nunca abandonar a juventude. Depois de amanhã, reverei dois amigos: um não vejo há algum tempo, o outro anda arredio por razões ideológicas. Cismou que o país teria que ser governado por um capitão, a quem todos nos subordinaríamos. Mas se meu amigo pensa assim, fazer o quê?... Amigos devem ser indiferentes a essas diferenças.

Agora, já com dia claro, uma vaca muge ao longe à espera da ordenha. E no telhado da casa vizinha, uma gatinha mia um miado sedoso para seus filhotes. No quarto ao lado, mamãe, acordada desde as três ou quatro da madrugada, mexe em seus guardados. Próxima de completar oitenta anos, anda com dificuldade mas ri com facilidade. E nunca deixa de fazer suas preces matinais. Uma ferida decorrente de erisipela está cicatrizada, mas o dedinho do pé direito cismou de doer uma dor aguda. Perguntada onde dói: “É entre os dois ossinhos... Ih! Nossa Senhora!!!”, exclama aflita, apontando para aquele dedinho ‘insubmisso’.

Visitei meu amigo rebelde, também sexagenário como o Mano Véio, mas com ímpetos de adolescente. Assustou-se com minha inesperada chegada e tentou disfarçar um pequeno mal-estar criado por ocasião das eleições. É um rapaz íntegro, generoso, com um humor bastante peculiar que o faz parecer sempre jovem. Quisera eu envelhecer assim.

Revi outros amigos, lá dos tempos de colégio. Um deles me passou cola numa prova de inglês. Confesso aqui este pecado: já colei ou tentei colar. Mas foi somente uma vez, eu acho. Se não houve outras vezes, não é por eu ser honesto, mas cagão. Ficava com medo de ser pego e, por isso, não colava. Preferia estudar a passar carão perante os colegas, levando bronca de professor. Mas esse amigo me ajudou, passando a resposta de uma pergunta, que respondi equivocadamente como sendo de outra. Só que ele errou e eu acertei, pode?... Nunca me esquecerei desse êxito, mas nem por isso insisti no delito.

Está escrito: “Procurai enquanto se pode achar!” Essa exortação vale também para esses reencontros, que são todos agradáveis aos olhos de Deus. Portanto, vamos nos esforçando, porque o tempo é ligeiro. As horas passam, os dias vão.

FILIPE

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

PEREIRÃO


Cheguei lá à tardinha. A porta estava aberta, a tevê desligada e a sala vazia de gente. Os cães, sim, estavam por ali, mas estranhamente quietos. A brancura daquele silêncio permitiu que eu ouvisse vozes sussurradas vindas das profundezas do corredor – da cozinha, talvez. Dei uma batidinha na porta e fui entrando, como de costume.  Uma mulher, que eu desconhecia, veio ao meu encontro, olhando-me desconfiada.  Perguntei pelo meu amigo. Ela respondeu que estava no quarto e quis chamá-lo. Acudi dizendo que o deixasse, que eu iria até lá. Fui incisivo, mas ela se adiantou, acendeu a luz e o despertou. O amigo estava deitado, tentando disfarçar o sono interrompido quando me viu. Com os olhos feridos pela luz, tentou sorrir, falando com indisfarçável dificuldade. “Como tenho sofrido esses dias...” Pensei no diabetes e perguntei: “Não está bem de saúde?” “De saúde até que estou bem, mas é muito aborrecimento.” “O que lhe aborreceu?” “Meu neto está preso.” “Ah, é?! Mas o que foi que houve?” Aqui minha pergunta foi desnecessária, talvez até ofensiva, mas precisava continuar a conversa com ele e o fio dessa prosa continha este indesatável nó. “É negócio de maconha”, respondeu sem titubear, e continuou: “Faz tempo que eu vejo um entra e sai aqui, e eu não gosto disso. Mas o menino cresceu e não me obedece mais. Antes eu ainda punha ordem, mas hoje não posso nem comigo”, disse levando a mão trêmula ao rosto, numa expressão de impotência e desolação.  ”A minha cabeça está quebrada. Eles chegaram de manhã e, por sorte, eu estava dormindo. Senão eu ia preso também, porque não ia deixar levar o meu neto. Logo ele, que fazia de tudo pra mim... Me dava comida, remédio, me levava ao médico. Agora eu não tenho mais ele comigo e nem sei pra onde vão me levar. Ah, mas se eu soubesse quem entregou o meu neto... eu ia fazer uma bobagem. Ah, se ia. Já me falaram que é pra deixar pra lá, que não vale a pena se enroscar com isso. Mas eu fico com muita vontade de ir atrás para saber quem fez aquilo.

Naquele quarto, o ar estava parado, viscoso, denso. Suando e esperando que o amigo concluísse, eu observava as paredes nuas e borradas pela umidade. Num canto, uma cadeira de rodas aguardava pacientemente o ‘seu senhor’ para um eventual passeio. Perguntei a ele se não queria que eu buscasse o ventilador. “Eu já vou pra sala”, disse tentando se sentar na cama. Ajudei-o a se levantar, conduzi-o até à sala e posicionei o ventilador de forma que pudesse se refrescar melhor. Ele ficou ali sentado, agora um pouco refeito das angústias. Lá dentro, duas mulheres continuavam falando baixinho, quase cochichando. De vez em quando, uma risadinha miúda marcava o fim ou o início de um assunto.

‘Pereirão’ – assim sua esposa se referia a ele – já passou por muitos solavancos ao longo de seus noventa anos. Perdeu filho, esposa, uma filha recentemente e agora o neto para a carceragem. Em seu consolo ficaram os cães, que não o deixam por nada. Enquanto sua barba era feita, um deles repousava no encosto do sofá, abraçando-lhe carinhosamente o colo.

FILIPE

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O TRIUNFO DO TERROR


Mal se equilibrando sobre as patas, um velho cãozinho vagueava pela rodoviária. Mais à frente estava o dono do animal, um senhorzinho também de muitos dias. “Ele tem dezessete anos e eu oitenta e cinco. Nós sofremos, viu... é duro ficar velho.” Aproximei-me daquele homem e quis conversar um pouco, quis ouvi-lo. Ele pegou uma sacola que estava no banco ao lado e pediu que eu sentasse. “Qual é o seu nome?”, perguntei. “Armando. Armando Pires. Esse cachorro é meu. Eu morava em São Paulo e adotei uma cadelinha chamada Biloca, que teve cinco filhotes. Ela foi envenenada e, quando vi, já não dava mais pra salvá-la, porque já estava morrendo. Vi ela morta e os cachorrinhos mamando nela... Deu uma tristeza danada. Aí eu cuidei dos bichinhos, que viveram muito tempo comigo. Este aqui é o último e já vai fazer dezessete anos dia (...).”

O homem queria conversar mais, mas meu tempo era curto. Tinha que voltar pra casa, terminar um texto para o blog – que decidi trocar por este. “Olha, muito prazer. Tenho que ir” “Ah, já vai?”, e continuou: “Vou votar no Haddad, viu? Aquele outro é psicopata. Você sabe o que é ‘psicopata’? É gente má. Ele não gosta de pobre, de preto, de homossexual, de gordo, de ninguém cá de baixo. Ele só gosta dos poderosos. A maior revista de economia do mundo, lá da Inglaterra, já falou que ele não presta. Mas o povo é burro”. “Toca aqui”, disse eu, dando-lhe a mão em concordância. Ele: “Já vi que você é uma pessoa inteligente, porque não vota no psicopata”, sorriu largo e acenou me despedindo.

Aqui quero abrir um parêntese para expressar minha furiosa angústia diante dos males que nos ameaçam e farei uma breve consideração sobre o capitão, cujo nome me recuso a grafar. Sobre ele, costumo afirmar com bastante convicção: vota-se no ‘capetão’ ou por ignorância ou por maldade. Quem tem alguma informação ou suficiente bondade, jamais apoiaria um apologista da tortura, que não tem adversários a vencer, mas inimigos a destruir – um ser do mal. Muitos, porém, na ânsia de querer ver resolvidos os problemas da violência, corrupção, contas públicas etc. apostam num boquirroto, que fala aos berros, prometendo que vai pôr ordem nessa ‘bagaça’. Mas, que ordem? Quais são os planos de governo? O que pretende fazer para pacificar a nação? Covarde, foge do debate como seu “companheiro” foge da água benta.

Esse homem, que pretende ser presidente, aposentou-se pelo Exército aos 33 anos de idade, acumulando salário parlamentar e soldo militar há trinta anos. Com certeza, não vai ferir interesses de sua gente, mas punirá os trabalhadores braçais, que deverão ralar para além dos sessenta e cinco anos para, então, receberem um salário mínimo como aposentadoria, se vivos ainda estiverem. Se eleito, vai pôr um general na pasta da Educação para fuçar nas universidades, impor currículos e banir do ensino médio sociologia, filosofia, antropologia e disciplinas afins. Terá na Defesa outro general, que criminalizará os movimentos sociais, tipificando-os como terroristas. Mas nada fará para extinguir ou moralizar as pensões vitalícias recebidas por filhas de militares e altos funcionários públicos, que sangram a sociedade em cerca de 10 bilhões de reais por ano. Não irá cobrar os 30 bilhões de reais de impostos dos latifundiários caloteiros nem vai extinguir o “imposto do príncipe”, que é uma taxa cobrada na aquisição de imóveis em determinadas regiões do estado do Rio de Janeiro, e que abastece anualmente com alguns milhões de reais as contas da família Orleans e Bragança, vulgarmente conhecida como ‘família imperial’.

Se eleito, o capitão não terá poder, porque um general fardado jamais receberá ordem de um ‘capitão reformado’. Mas, como todo ‘ser das sombras’, terá atuação subterrânea contra os pequenos: sem-terra, sem-teto, povos da floresta, operários etc. Contra estes, o terror!

FILIPE

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A VIÚVA ÓRFÃ


É domingo, dia do primeiro turno das eleições – se é que haverá um segundo turno (há), ou se é que haverá outras eleições neste país (não se sabe). Pôs roupa nova, foi bonito para a urna eletrônica, porque talvez vá para uma outra ‘urna’ sem que nunca mais vote.

Na fila de votação, começou a ler o jornal. De súbito, alguém atravessou a sua frente e foi logo dizendo: “Uai, ocê tá aqui?” “Sim, vim votar” “Se fosse mais velho, não ficaria na fila... Eu já votei.” Olhou para aquela mulher. Ela estava com um cão, que esticava a guia impaciente, querendo sair logo dali. Mas ela, sem pressa, puxou para si o cão e deitou falação: “Aquela fedepê da juíza me chamou lá e me disse muito desaforo. Ela quer que eu pague pensão pra minha sobrinha-neta, mas eu não posso pagar. Eu já pago tanta coisa, tantas contas dela, e isso há dezesseis anos já. Mas a fedepê da juíza me disse umas boas. Falou que vai investigar minha vida, que vai ver o que tenho de dinheiro e vai me obrigar a dar pensão pra menina. O pior é que eu velha, com mais de oitenta já, cheia de doença e precisando fazer tratamento. Mas a fedepê não quis saber de nada e ainda me expulsou da sala dela. Ela é muito sem educação!” Ele tentou falar alguma coisa, mas a mulher não deixava. Ela precisava desabafar e não tinha ninguém disposto a ouvi-la. Ele não estava para tanto, mas... Quando foi possível, falou algo, sendo novamente interrompido por ela. Mas foi tentando recuperar o fio, até que deu.

“Ouça agora. Espere um pouco. Depois a senhora fala. A juíza não pode tratá-la assim. Você estava com advogado?” “Não. Tinha um lá... mas é do fórum.” “Nada disso, a senhora tem que ter um seu, e dos bons.” “Mas já gasto tanto e vou ter que pagar advogado?! Eu não aguento tantas despesas...” “Sim, a senhora tem que gastar mais ainda para ter tranquilidade.” “Mas eu sou sozinha, viúva, doente e velha. Não posso passar por isso, meu Deus!”

Um parêntese. Essa senhora, que foi casada e não teve filhos, passou a vida como faxineira, doméstica, diarista, até se aposentar com um salário mínimo. Econômica, costumava cozinhar todo o almoço numa mesma panela para economizar gás. Conseguiu alguns bens, mas teve a infelicidade de perder o marido antes da sogra – já quase centenária. O irmão do falecido, com quem ela não se dava desde a juventude, cresceu o olho no patrimônio dela e arrancou o que pôde. Mais tarde, uma sobrinha-neta precisava de cuidados, e ela, compadecida, resolveu ajudá-la. Isso gerou um vínculo, que estourou no fórum. A moça é problemática; a mãe da moça é problemática; o pai da moça... nunca se viu. Mas a juíza cismou com ela e está na sua cola.

Ele prosseguiu: “Conta tudo isso para seu advogado, porque sem advogado não há justiça. Juízes e promotores maus têm que se haver com a OAB.” “Mas eu não tenho OAB...” “Eu digo advogado, que é associado à OAB”. “Mas ela não pode me maltratar assim, me mandar pra fora da sala, gritar comigo, dizer que vai investigar minha vida!” ”Não, não pode, e juiz não investiga vida de ninguém. Isso não é tarefa dele. E tem mais. A senhora é quem lhe paga o salário, e deve ser muito bem tratada por ele.”  Ela quis retomar o discurso inicial, logo interrompida: “Não, a gente vai ficar falando disso aqui a tarde toda e não vai sair do lugar. Vai, minha filha, vai embora e procure um bom advogado. Assim a senhora jamais será humilhada.” “Eu, coitada de mim, sem ninguém, uma viúva...” “Não conhece a história da ‘viúva órfã?’ Tá na Bíblia!” Aqui ele se deu com uma gafe, e todos da fila o olharam com curiosidade. “Viúva órfã... Caramba! Não é bem isso. Mas que seja. Órfã da Justiça!”, pensou. Ela se foi e ele voltou para o jornal, agora sem saber onde tinha parado.

FILIPE

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A ORDENHA


Ele chegou cedo, com o céu ainda estrelado, conforme costume. Encostou a moto, pegou os baldes e se dirigiu ao curral para a ordenha. As vacas não estavam por perto como sempre ficam, mas isso não lhe pareceu anormal. Entrando no curral, percebeu que uma das porteiras estava mal fechada. Parece que alguém entrou e pôs a tranca de forma diferente, teria pensado – ainda que não se assombrasse com isso. Pegou, então, uma pequena aguilhada e se dirigiu ao rebanho, chamando as vacas, cada qual pelo seu nome. Começou pela Boneca, depois Estrela e Açucena. Seguiu-se com a Roxinha, Princesa, Paixão... Todas foram nomeadas, mas desta vez algumas não lhe obedeceram. Estavam aflitas, assustadas, muito estranhas. A custo, conseguiu levá-las ao curral para, enfim, ordenhá-las. Nisso o dia já estava quase claro, dando para divisar melhor cada rês.

A produção naquele dia pareceu-lhe minguada, só um “pinguinho”. As vacas não soltaram o leite, como sempre fazem. Os pastos estão um pouco secos... talvez seja por isso, teria pensado. “Mas ontem, anteontem e nos dias anteriores, o volume de leite era bem maior, quase o dobro do que consegui tirar desta vez. O que será que está acontecendo?...”, teria perguntado em solilóquio.

Princesa, a mais assustada de todas, resistiu a entrar no tronco. Com muito jeito, porém, ele fez que ela se ajeitasse, mas a vaquinha o impediu que a tocasse no úbere, não permitindo que lhe tirasse o leite. Logo ela, sempre tão dócil... e agora arisca, quase brava. Mas o retireiro também estava apreensivo, porque o bezerrinho dela não estava junto aos demais. Com dificuldade, no entanto, conseguiu tirar duas canecas de leite da Princesa; noutros dias, porém, ela daria cinco ou seis canecas – uns dez litros. O bezerro escapou e deve ter mamado à noite toda. De todos, ele é o mais esperto e também o mais robusto – concluiu, agora cheio de certeza.

Após o serviço e já com o sol banhando a várzea, destrancou a porteira e liberou as vaquinhas. Nisto, uma apressada Princesa abriu caminho dentre as companheiras e saiu desembestada pasto afora, até chegar numa moita de mariazinha – uma gramínea dos charcos, de folhas longas e largas, que é nativa daquela região.

E então, um triste cenário se montava à vista do ordenhador. Desesperada, a vaca mugia e raspava o solo com as patas dianteiras. O vaqueiro, assustado com aquilo, correu até lá e viu sangue. Mais adiante, vísceras. Havia também a cabeça do bezerro e seu couro estendido sobre a mariazinha. De súbito, percorreu-lhe a espinha um arrepio de indignação. Pelo que viu, pôde concluir que o abate ocorrera poucas horas antes de sua chegada. O couro, bastante perfurado, denunciava resistência por parte da vítima, com morte lentamente dolorida, e a pauladas. Mais tarde, observou, com maior tristeza ainda, que a Princesa estava ferida. Ela não conseguia pastar, porque sua mandíbula fora fraturada a golpes de enxada.

Na ‘bovina’ tentativa de livrar da morte o filho, a mãe foi ‘desumanamente’ humilhada, mutilada, vencida... Por humanos!

FILIPE

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

E VEIO O MANO VÉIO!


Alegroso e proseiro, ele chegou à noitinha quando eu já havia saído para o serviço. Às altas horas quando retornei, já estava recolhido, dormindo o suave sono dos santos.

De manhã, às cinco, levantei-me. Às seis, pontualmente, ele chegou à sala onde eu estava fazendo minhas preces. “E aí, Filipão, bom dia. Tá rezando?”  “Sim, estou me preparando para a lida”. Ele permaneceu um pouco na sala, falou alguma coisa e saiu. E eu pulei algumas orações, porque o tempo avançava. Minutos depois eu estava ao fogão, preparando o café. “O que você toma?” “Chá. Chá com leite.” Estranhei a insólita combinação ‘chá com leite’, mas meu irmão sabe das coisas e cuida da saúde como poucos. Preparei-lhe o chá com leite, que ele tomou adoçado com açúcar mascavo. “Eu prefiro o demerara, que é menos calórico”, disse enquanto sorvia com avidez o chá “mascavado”.   

Saí, quase atrasado, e deixei o mano às voltas com um mamão. Gosta de frutas, mesmo que estas lhe sejam servidas após o café. “Não vai perder a hora por minha causa”, preocupou-se. “Não. São apenas ‘dez minutos’ de caminhada”, respondi, já quase na rua.

Volto da escola e meu irmão estava ciscando no celular. “Não quer usar o computador? Eu tenho outro, pode usar esse.” “Eu vi a senha, mas prefiro o celular. Tenho tudo aqui. Olha, eu já li todos os jornais. Ali estão eles”, apontou para a mesinha de centro onde estavam todos caprichosamente empilhados. “Lê rápido! Eu leio bem devagar”. “Ah, comigo é rapidinho!”, arrematou, enquanto eu percorria as manchetes.

“A que horas quer almoçar?” “Às onze e meia. Viajo às treze horas!” Entendido o recado, deixei o jornal e fui para o fogão, porque já passava das dez. Pouco depois o mano se aproximou, olhou-me curioso e disparou: “E aí, Filipão, só no fogão! Você gosta de cozinhar, né?” Eu ia dizer que cozinho sem gostar, que eu gosto mesmo é de comer, ler, tomar chimarrão, ouvir músicas etc. Mas com o mano não tem disso não. Ele faz uma observação ou uma pergunta, mas não espera a réplica. Logo, já emenda outro assunto e o interlocutor “come poeira”. Dessa vez, porém, ele não mudou de assunto e continuou: “Lá em casa, todo mundo teve que aprender a se virar. Mamãe doente... todo mundo no fogão. Lembro de quando trabalhava na roça, lá ‘atrás do morro’, uma fome danada e nada do caldeirãozinho de comida aparecer. Papai deixava o serviço e ia para casa fazer comida, porque a mamãe não tinha feito. Como a nossa vida foi difícil... Hoje, a molecada tem de tudo e não valoriza, só reclama”.

Pronto o almoço, começaram os elogios e eu me sentindo um mestre-cuca. Almoçamos. É hora de “vazar”. Chegamos à rodoviária com meia hora de antecedência. Animado com um encontro do qual participaria, ele ainda teria outros compromissos, muitos outros. “Se eu estiver trancado em casa por algum tempo, pode saber que estou doente. Gosto de viajar... Como gosto!” Entrou no ônibus e partiu. Observei o movimento na rodoviária e o ônibus, que sumira numa curva.

Em tempos de ‘relações líquidas’, segundo a moderna sociologia, ou de ‘laços quebradiços’, conforme defino, a visita do meu irmão foi para mim motivo de grande júbilo. Que mais pessoas se irmanem, se encontrem, fraternizem-se. Porque a vida é fugaz e não admite procrastinações.

FILIPE

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

VIDAS INTERROMPIDAS*


Por uma estranha razão, o ‘aborto’ voltou a dominar o debate nacional. O tema, que deveria ser assunto do Legislativo, entrou na agenda do Judiciário e daí veio a inflamar “lares e bares”. Não me parece tarefa fácil defender algo tão delicado como a “interrupção de uma vida”, até porque a decisão de abortar só pode ser tomada por alguém que teve a felicidade de não ter sido abortado.

Dentre os vários artigos publicados sobre o aborto, os jornais trouxeram recentemente alguns números inquietantes. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, 14% das mulheres ‘não mães’ não desejam ter filhos; 14% dos brasileiros defendem o aborto em qualquer situação; 59% dos entrevistados não querem mudança na lei – que permite aborto em alguns casos; mas 58% das pessoas ouvidas acham que a mulher que fez aborto deve ir para a cadeia. Essas estatísticas, sombrias e desconexas, causam-me profundo mal-estar.

Que a vida surge a partir de um óvulo fecundado parece ser consenso entre pessoas minimamente sensatas. Mas a vida embrionária não é levada a sério por quem adota a expressão “interrupção da gravidez” – um eufemismo grotesco para “aborto”. Ainda que não se possa concordar com a “interrupção da gravidez”, é preciso debater o assunto, porque a mulher que pretende fazer aborto costuma estar vivendo uma situação dramática: perseguições por uma gravidez não planejada, enfermidade grave ou estupro. As vítimas de predadores sexuais merecem especial atenção e jamais poderiam ser julgadas nem condenadas, mas acompanhadas. Nesses casos a Igreja, que sempre se posiciona contra o aborto, deve oferecer compreensão e misericórdia.

Mas o grande desafio é encontrar o “caminho do meio”, que parece não existir. De um lado estão setores progressistas da sociedade, que lutam pelo direito à vida dos empobrecidos, mas empunham a bandeira do aborto, negando esses mesmos direitos aos nascituros. Do outro lado dessa trincheira ideológica e contra o aborto, estão os carcomidos conservadores. Estes, que defendem ferrenhamente a vida intrauterina, não movem uma pluma em favor dos “nascidos” pobres, negando dignidade e sentenciando à morte prematura os deserdados dos bem terrenos.
 (*) Publicado no jornal A Tribuna de Amparo – edição de hoje.

FILIPE

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

HONESTIDADE


À noitinha, ele parou em frente ao portão, mas não tocou a campainha. Bateu palmas. “Oi, eu sou morador de rua e vim pedir ‘um real’. Ah, primeiramente parabéns porque hoje é Dia dos Pais. O senhor é pai?” “Sim, sou pai, mas dinheiro... um real? Sei não...” “Me dá um real, moço. Eu sou um desgraçado de um pingaiado e quero comprar uma cachaça, mas não tenho um puto no bolso! sendo sincero, pois mentir é feio. É pra comprar pinga mesmo.” “Eu vou lhe dar dois reais.” Peguei uma cédula de dois reais, examinei com cuidado para ver se era mesmo de ‘dois reais’ e dei ao pedinte. “Olha, eu fico muito agradecido. fez uma caridade prum morador de rua. Eu tava bebendo este perfume aqui (ergueu algo semelhante a um frasco), porque é difícil ficar sem a danada. Obrigado mesmo. Valeu.”

O homem não foi apenas sincero, foi honesto também. Não trapaceou dizendo estar há uma semana sem comer, que a mulher está acamada há meses e que o filho acaba de ser atropelado por um drone. Não, ele apenas queria comprar um corotinho de pinga e nada mais. De minha parte, nunca havia pensado que ‘dois reais’ pudessem fazer a fortuna de alguém, dando-lhe tanta alegria.

Refleti detidamente sobre o episódio acima e aproveito a inexpressividade deste blog, onde posso escrever bobagens sem ser incomodado, para fazer uma confidência: eu não sou honesto. Ou melhor, já fui desonesto. Na minha infância, furtei laranjas do quintal de vizinhos, comi furtivamente doces de uma tia, peguei muitas bananas-maçãs da despensa de meus avós e invadi uma roça para pegar melancias. O pior é que neste último delito eu “pequei em vão”, pois as melancias estavam verdes.  Bem mais tarde, já adulto e trabalhando nos Correios, eu peguei selos que se soltavam das correspondências e os aproveitava nas minhas cartas, que eu enviava sem custo para parentes e amigos. Arrependido, procurei o chefe para denunciar, não o meu crime, mas a tinta ruim que usavam nos carimbos, que era facilmente apagada com uma borracha. O chefe não deu bola e eu, contrariado, continuei na delinquência, economizando selos por mais algum tempo.

A minha desonestidade, contudo, são águas passadas. Esta semana, indo ao caixa eletrônico para fazer um pequeno saque, a máquina tropeçou na contagem e acabou me dando uma gorjeta de trinta reais. Trinta reais é uma baita grana, capaz de aquecer um sem-número de pingaiados com uma batelada de “corotinhos de felicidade”. E eu seria, pela definição daquele “meu” morador de rua, um homem afortunado. Mas não. No dia seguinte, liguei para o banco e pedi instruções para devolver a grana que não me pertence. A moça, inicialmente pasma, finalizou agradecida, dizendo que eu terei que procurar a agência. E já me aborreço, porque preciso pegar filas, senhas etc. Agora que me encontro “reabilitado”, gostaria de que houvesse uma lei garantindo ‘atendimento preferencial aos honestos’.

Quanto aos moradores de rua, consumistas contumazes que somos, temos muito o que aprender com eles, que tocam uma vida alternativa e frugal. Muitos trabalham duro e honestamente na coleta de recicláveis vendidos a preços vis. E de vez em quando molham o gogó com umas biritas. Que mal há nisso?

FILIPE

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

DONA IDA


A Capela de Nossa Senhora das Dores estava quase vazia. Numa urna, defronte ao altar, o corpinho de minha amiga repousava sereno quando amigos e parentes foram chegando pouco a pouco. Aproximei-me devagar e a vi. Seu rosto, agora livre das fadigas terrenas, expressava uma ternura angelical. O pequeno sino tocou e o sacerdote entrou reverente para dar início à celebração.  E nesse momento, exaltou o nome de dona Ida: “Mulher de muitas virtudes e de oração, dona Ida é digna de ornar-se com o terço que traz nas mãos!”. Sim, o padre Carlos tem razão. O terço foi companhia inseparável de dona Ida desde a infância. Nas visitas que eu fazia, nunca a vi sem o tercinho. Muitas vezes eu a encontrava adormecida, numa espécie de êxtase, mas numa das mãos estava lá o pequeno rosário.

Essa minha amiga viveu os últimos cinco anos cega e surda numa cadeira de rodas. Quando eu chegava, ela costumava perguntar quem sou. Mas na impossibilidade de me ouvir ou me enxergar, desistiu de fazer essa pergunta, indo logo ao ‘trabalho’: “Eu não sei quem é você nem o que veio pedir, mas Deus sabe e ele vai atender”. E assim, com a mão sobre minha cabeça, rezava um Pai-Nosso seguido de uma Ave-Maria, finalizando com a bênção de São Francisco.

Certa feita, isso aconteceu há uns dois meses, quando eu me ajoelhei diante dela em sua cadeira e pus sua mão sobre minha cabeça, como sempre fazia, ela me reconheceu de pronto: “É o Filipe!”. Sorriu, fez o Sinal da Cruz e começou as preces. Fiquei tocado com aquilo. Como pode, depois de tantos anos sem me reconhecer, nem ao menos me enxergar ou me ouvir, ela me identificar?! Que alegria eu senti!

Dona Ida viveu muitos anos em São Paulo, conforme me contou. Na mocidade, tentou entrar para o convento, mas não foi aceita. Então ela resolveu, por si, consagrar-se à Virgem Maria, com votos de pobreza e castidade, e tocou a vida. Criou sobrinhos, que eram órfãos, e se sustentou, trabalhando em fábrica de tecidos na Zona Leste. Na Igreja, exerceu trabalhos pastorais com menores carentes. Aposentada e com os sobrinhos já adultos, mudou-se para Amparo, onde continuou suas atividades na Igreja, como leiga engajada que sempre fora.

Quando os ventos dos anos lhe sopraram mais fortemente, dona Ida procurou abrigo no Lar dos Velhos, declinando dos cuidados oferecidos pela sobrinha. Embora tenha experimentado algum sofrimento na nova casa, dona Ida foi feliz ali. Tinha uma funcionária de sua confiança, a Maria, que todos os dias a ajudava. O seu quarto era limpo, organizado e havia uma ‘Madona’ sobre uma cômoda, que enfeitava o ambiente, fazendo do espaço uma pequena capela. Mas essa imagem foi maldosamente quebrada por alguém. Dona Ida, embora tenha ficado muito triste com isso, conseguiu que a “restaurassem”. Não acho que houve restauro. Comprou-se outra imagem e assim ela ficou satisfeita.

“Eu sofro muito, mas não reclamo. Apenas espero a hora em que Deus vai me chamar”, dizia aquela alquebrada senhora, amarrada na cadeira, com apenas um sopro de voz. E aos noventa e quatro anos, dona Ida partiu mesmo, mas ‘em odor de santidade’.

FILIPE

sexta-feira, 20 de julho de 2018

A TARDE VEM


Buscai o Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto”, disse Isaias, o mais poético dos profetas. De minha parte, ignorante nas Santas Escrituras e nas demais escrituras nem tão santas assim, tenho andado à procura do Senhor, mas não só. Procuro os amigos, próximos ou distantes. E vou desviando dos inimigos, alguns muito próximos.

Desta vez fui a Minas, que ainda teima em existir, e pude ver meus pais – já um pouco idosos, porém lúcidos e saudáveis. Revi colegas de infância e parte da irmandade – “apenas" seis dos onze que somos. Não alcancei dois amigos, que partiram antes de minha chegada. Mas revi uma amiga, que partiu logo após eu chegar e com quem troquei poucas palavras. Estava cansada, mas receptiva. Fizemos uma prece, talvez a última dela. Houve desses momentos de tristeza profunda, porque os amigos não são para sempre.

Senti falta do seu Jesus, um velho carapina a quem eu conhecia como Jeso. Da outra vez ele me contou pedaços de sua vida sofrida: treze filhos criados “no cabo da enxada”. A mais velha, adotiva. Ainda recém-casado, ele disse, aventurou-se em mudança para o Paraná. Vendera os poucos móveis, a colheita de milho e feijão e embarcara num trem com a esposa e dois filhos. Geara no Paraná e um deserto de gelo o aguardava. Mal chegara e já teria que retornar a Minas, nem se dando ao trabalho de descarregar o vagão com seus trastes. Teve que refazer a vida, comprar mantimentos, arrumar serviço etc. Eu queria ouvir mais o seu Jesus, que conhecia de longe, da estrada onde eu passava nos tempos de escola, e a quem temia dirigir a palavra por ser ele caladão, quase casmurro. Enganado, perdi a oportunidade de ouvir outras de suas muitas histórias.

Senti falta de seu Tonico, que ficara por anos prostrado numa cama hospitalar, recebendo cuidados da extremosa esposa.  “Como vai, seu Tonico?”  ”Bom eu não tô, mas tô pronto. Só esperando Deus me chamar”. E Deus chamou mesmo. Seu Tonico despediu-se do mundo, rezando, cantando louvores. Partiu devagarinho, suave, com a leveza de um santo.

Dona Crioula, ou Tarsila para os chegados, fizera ‘noventa e nove’ aninhos no último dia nove. Era sempre uma alegria encontrá-la. A sala-quarto em penumbra para não lhe ferir as retinas, e ela sempre deitadinha ali na sua cama, próxima à janela sempre fechada. “Eu estava sabendo que você vinha aqui. Estava esperando!” Ouvi dela essas palavras em janeiro último, que muito me envaideceram. Desta vez, falou menos. Queria descanso. Três dias depois fui ao seu velório.

Houve também momentos de descontração, de grande contentamento até. Mas não me faltaram escorregadas homéricas. A primeira delas: fui ao fogão com a empáfia de “mestre-cuca” e fiz um macarrão, que ninguém gostou e que virou piada “maldosa”. A segunda: meti-me à besta em discutir teologia com um irmão. Após me ouvir atento e em silêncio, desferiu-me umas duas ou três “botinadas”, conforme ele mesmo definiu a sua performance. Fui à ‘lona’ e deixei transparecer minha boçalidade nua e mal lavada. Mais piadas.

“Procurai enquanto se pode achar!”, bradou Isaias. “Tarde te amei, beleza infinita”, clamou Santo Agostinho, o poeta de Hipona. Portanto, não se deve adiar uma visita, um reencontro, um congraçamento, pois a tarde vem e não demora.

FILIPE

sexta-feira, 6 de julho de 2018

INTELIGÊNCIA E HABILIDADE


Muito já se estudou sobre a capacidade que o ser humano tem para dominar a si, a natureza, os recursos naturais... e o seu semelhante! A isso, convencionou-se nomear ‘inteligência’ e o homem se autodenominou um ‘animal inteligente’. Há pouco mais de trinta anos, porém, o americano Howard Gardner, pesquisador de Harvard, ficou famoso por propor a teoria das Inteligências Múltiplas. Segundo Gardner, não há apenas uma, mas nove inteligências. Pedagogos, esses mestres sem discípulos, amam referir-se as tais ‘inteligências’ como também amam citar Gardner em suas falações. É chique falar de assunto “top”, e muito mais chique é citar um autor “top” como aquele aclamado cognitivista, que se tornou guru dos pedagogos e oráculo dos cursos de pedagogia.

De minha parte, não tendo pisado em Harvard, não sendo pedagogo nem possuindo sequer uma das ‘nove inteligências’ enumeradas por Gardner, discordo desse premiado doutor. Atrevo-me a dizer que não há ‘inteligências múltiplas’, mas ‘habilidades múltiplas’. Essas habilidades até que poderiam ser numeradas de “1 a 9”. A desenvoltura no cálculo, na dança, na fala, na escrita, nos idiomas etc. não são ‘inteligências’, mas habilidades. Alguns sortudos têm várias delas – os tais “crânios”. Há, portanto, quem pareça dominar apenas uma dessas ‘habilidades’, mas com profundidade estonteante, e a estes chamamos de ‘gênios’.

Sem querer chocar o arredio leitor, ouso afirmar que nossas habilidades vêm do ‘instinto’ e não da ‘razão’. A capacidade de aprender não é exclusividade do homo sapiens, pois os animais costumam nos fazer inveja nesse quesito – com a palavra, o joão-de-barro. E tem mais. Tenho aqui uma modesta calculadora capaz de fazer, em menos de um segundo, cálculos que ninguém faria ao longo de uma vida. Pois é... na execução de tarefas, até as máquinas nos dão de “7 a1”!

Fui estudante por muitos anos, leciono desde o século passado e durante esse tempo, convivi com pessoas muito habilidosas, algumas geniais, mas poucas eu consideraria “muito inteligentes”. A habilidade de calcular e de memorizar pode trazer fama e até fortuna. Mas a reflexão, as indagações sobre os ‘quês e porquês’ da vida não suscitam olhares assim tão generosos.

Ao longo da vida, talvez eu tenha convivido com apenas duas pessoas de inteligência muito acima da média. Uma era comadre de meus pais: mulher montanhesa, analfabeta e pobre, que conheci já idosa. O outro era meu compadre: homem rural, de ‘muitos dias’, também analfabeto e pobre. Mais adiante, pretendo escrever algumas linhas sobre esses dois personagens.

Gardner talvez não saiba, mas com suas “nove habilidades”, consegue-se apenas dar algumas respostas às muitas aflições do cotidiano. Com inteligência, porém, é que se fazem as urgentes perguntas e os necessários questionamentos sobre a vida e seus mistérios.

FILIPE

sexta-feira, 22 de junho de 2018

VAI, BRASIL!


São exatamente sete horas da manhã de quinta-feira. Estou numa sala de aula fria e sem alunos quando ligo um pequeno notebook. O antigo, o ‘titular’, começou a falhar, como têm falhado os titulares das seleções que espraiam nos gramados russos nesta Copa – exceto o CR7.

Um professor entra na sala e faz breve reflexão sobre a vida, o trabalho, os embaraços da profissão e fala também sobre o abandono da educação, o desperdício de material didático etc. Livros caríssimos são descartados ainda dentro da embalagem – assim ele os recebe em uma fábrica de papelão onde trabalha à noite. Não fala sobre a Copa do Mundo, mas lamenta o mau humor dos brasileiros. Após breves e introspectivas lucubrações, conclui: “As pessoas estão amarguradas”. Concordo com o colega e volto ao teclado.

Por falar em Copa do Mundo, no segundo dia de jogos, eu estava na casa de um amigo, a quem visito regularmente, quando na TV passava Portugal e Espanha. Contra o esquadrão espanhol havia Cristiano Ronaldo que, sozinho, marcou três gols, empatando a “bagaça”. Alheio ao jogo, o meu amigo fazia perguntas, que eu respondia sem que ele compreendesse a resposta. Então ele repetia a pergunta e eu repetia a resposta para, enfim, dar-se por satisfeito.  

Havia também na sala dois jovens – um deles, neto do meu amigo. A certa altura, um dos rapazes, não o neto, perguntou: “Que dia o Brasil vai jogar contra a Suécia?” “Não é contra a Suécia, é contra a Suíça, corrigiu o neto” “Ah, não é a mesma coisa?... Pensei que fosse. Como começa com ‘s’, eu me confundi”, tentou disfarçar a gafe.

O jogo seguia: Cristiano Ronaldo contra o resto. O rapaz, agora refeito do vexame anterior, pareceu-se surpreso com uma tal ‘Arábia Saudita’, que jogaria a Copa. “Mas Arábia Saudita é um país? Pois eu não sabia. E onde fica a Arábia Saudita?” “Sei não, fica longe. Acho que é na África, né professor?”, respondeu o neto, pedindo reforço. “A Arábia Saudita fica bem longe daqui, depois dos mares, lá na Ásia. É um daqueles países cheios de petróleo”, acudi.

Na sala de aula, onde me encontro sem alunos e sem estresse, vou preenchendo formulários e, de vez em quando, testo meu computador. Não sei por quê, mas a tecla de ‘interrogação’ ficou amalucada e o sinal passou a sair de ‘ponta cabeça’. Aborrecido, pedi ajuda a uma professora, que resolveu o problema incontinenti. Obrigado, colega, porque agora posso voltar a ser feliz! 

Na sala de computadores, alguns alunos, que deveriam fazer pesquisas, divertem-se nas redes sociais. Um assiste a uma série, uma está no Facebook e outra, a meu pedido, pesquisa figuras planas: quadriláteros e triângulos. Os desenhos todos tortos, mas... eu me contento com pouco.

De súbito, um ‘fúnqui’ brota forte de um daqueles computadores e eu fico apavorado. Desligo o notebook e deixo a sala, lançando sobre todos um olhar severo, de quase maldição.  

Já em casa, assisto ao segundo tempo de Argentina e Croácia. Sofro porque torço pelos latinos, que sofrem em campo. Os croatas marcam o terceiro e os hermanos perdem o jogo e a cabeça.

Sexta-feira de manhã. Saio pelas ruas desertas, a cidade está silente. Na TV, a voz rouca e ufanista do “babão” deve estar narrando o jogo contra os costa-riquenhos; no gramado, meu xará abre o placar para o Brasil e o “brega júnior” amplia. Agora, sim, o Brasil vai para frente. Com este Brasil indo, eu prefiro voltar. Mas voltar para onde, se “Minas não há mais”?

FILIPE

sexta-feira, 8 de junho de 2018

O PAPA CONTRITO


Vivemos um tempo de aguçada polarização ideológica com duas vertentes contrapostas: “gente do bem” versus “gente do mal”. Ironicamente, os autodenominados “do bem” se parecem mais malévolos do que seus adversários supostamente “do mal”. E de uns tempos para cá, aquele antagonismo histérico, que se estabelecera na seara política, migrou para a religião. É o que assistimos particularmente entre católicos, onde os ânimos estão cada vez mais exaltados. A CNBB e o Papa Francisco têm sido continuamente atacados pelas tais “hostes do bem”.

Chama atenção o episódio envolvendo casos de pedofilia no Chile, praticado por padre e acobertado por bispo. A pedofilia, essa pestilência putrefata incrustada na humanidade desde tempos imemoriais, também está presente na Igreja. E o clero católico, embora humano, tem o divino dever de ser exemplo para seus fiéis e jamais poderia condescender com o crime. Mas no caso do Chile, o Papa Francisco tem sido injustamente acusado de omissão. Houve até quem dissesse, em homilia, que “se fosse com João Paulo II, isso não ficaria assim!”, fazendo uma comparação deselegante e injusta desses dois grandes pontífices.

O fato é que, quando as primeiras denúncias de abuso sexual chegaram ao papa, ele não as acolheu de imediato. Mas assim que soube de sua veracidade, Francisco penitenciou-se publicamente, recebeu vítimas no Vaticano, convocou o episcopado chileno para esclarecimentos, escreveu uma carta ao povo daquele país pedindo perdão e prometeu apurar os malfeitos, punindo os malfeitores. Mais tarde, em visita ao Chile, o papa voltou a pedir perdão aos fiéis, expressando ‘vergonha’ e ‘dor’ – fato registrado pela televisão portuguesa (RTP). Mas os desafetos da Igreja falseiam a verdade, afirmando que o Papa Francisco fora pressionado pelas vítimas e, somente por isso, apresentou “pedido desculpas”.

Não é preciso ler ‘dois livros’ nem ter ‘vida eremítica’ para saber algo tão elementar na vida de um cristão católico. Primeiro: em seu pastoreio, um papa jamais age sob pressão humana, mas sempre sob ação do Espírito Santo – daí o dogma da ‘Infalibilidade’. Segundo: um protocolar pedido de desculpas não tem a força de um solene pedido de perdão.

Pois o magnânimo Papa Francisco, avesso a pressões humanas e divinamente inspirado, pediu perdão ao povo chileno. Que seja duradouro o primado desse abençoado pastor!

FILIPE

sexta-feira, 25 de maio de 2018

TRISTE CENA, TRISTE SINA


A policial saca a arma e mata um bandido em frente à escola de sua filha. O momento era tenso, perigoso, havia muitas vidas em risco e parece que a agente cumpriu sua obrigação. No dia seguinte, o governador-candidato já estava faturando. Homenageou a policial com discurso e buquê de flores, e sentenciou garboso: “Quem ofender um policial corre risco de vida, pois a farda é a extensão da bandeira do estado!”

O discurso do governador está bem ajustado ao presente, quando uma onda ufanista se avoluma, mas se encaixa no pretérito também. Descobriu-se recentemente que os governos militares autorizaram a execução de “inimigos políticos”, contrariando, pasmem, a orientação dos Estados Unidos. Na época houve, inclusive, um incidente diplomático entre os dois países devido à rebeldia do governo brasileiro, descumprindo o recomendado.

Mas será que aquela policial agiu prudentemente? Soube-se depois, como era de se esperar, que o bandido não estava só. Ao menos um de seus comparsas já foi identificado. E se a policial errasse ou não conseguisse imobilizar imediatamente o assaltante, o que poderia ter acontecido? Sabe-se que bandidos não costumam agir com “muita responsabilidade” e um tiroteio resultaria em tragédia.

Na semana seguinte àquele triste episódio, a Folha de S. Paulo publicou resultado de uma pesquisa, afirmando que nos últimos anos apenas ‘oito por cento’ dos policiais saíram ilesos após reagirem a um ataque. A Folha explica que casos “bem-sucedidos” como o da policial acima não entram nessa estatística, porque ela não era alvo do bandido. ‘Oito por cento’, em boa aritmética, significam ‘dois em 25’. Em outras palavras, para cada 25 confrontos, 23 policiais ou morreram ou ficaram feridos. Conclusão: se a polícia, que é treinada para o enfrentamento, não se sai bem quando surpreendida pelo bandido, o que será do cidadão comum?  Esses números deveriam pôr fim à estultícia dos que querem armar o “cidadão de bem”.

Mas os tempos são outros e são bicudos. Pesquisas apontam uma crescente mortandade de jovens nas operações militares, mas ignorada pelo noticiário. A grande mídia destaca a “glamorosa” detenção de velhinhos muito em moda ultimamente. Políticos e empresários, alguns já anciãos, estão indo para o xadrez.

De minha parte, ser “do bem” causa-me engulhos, porque essa expressão foi sequestrada pela “gente do mal”. Eu queria ser “da paz”, mas a ‘paz’ também parece estar maculada. Não sendo do bem nem da paz, quero justiça e paz. Que o ‘bem’ prevaleça sobre o ‘mal’. Que os velhinhos corruptos sejam todos punidos, não com a prisão, mas com a expropriação. Soltos, porém pobres, sem o butim. Que criminosos contra a vida sejam todos presos e recuperados. Que se inspirem em Minas Gerais, que tem a APAC com suas prisões humanizadas, onde presos têm dignidade, recuperam-se, e sem que o sistema lhes seja condescendente.  

É, naquele Dia das Mães, pensei na minha mãe e em muitas outras mães, algumas já ausentes. Pensei na policial de posto modesto, também mãe e agora vulnerável após ter sua identidade devassada. Pensei também naquela mãe anônima, que teve como presente no seu dia o corpo do filho de 21 anos para sepultar.

FILIPE                                                                                 

sexta-feira, 11 de maio de 2018

A VELHICE


A velhice vem chegando, mas não de mansinho e arrastando as pantufas, como querem uns. A velhice tem pressa.

Não faz muito tempo, eu era um menino de ‘pés descalços e calças curtas’. O curso primário, que comecei aos seis anos e que parece ter sido ontem, fiz usando apenas duas peças: calção e camiseta. Para a solenidade de entrega do “diploma do quarto ano”, papai, orgulhoso de mim, pegou um casaco militar que ganhara de amigos e o deu a uma de suas irmãs para transformá-lo na minha primeira calça comprida. Até hoje eu me lembro do desconforto: as pernas, antes livres, agora embrulhadas no tergal que lhes embaraçava o movimento. Foi uma revolução para um corpo ainda “implume”, um marco, o rito de passagem da infância para a juventude. Com aquelas calças compridas eu me sentia um homem-feito antes dos dez anos.

Com os primeiros ventos da mocidade a roçar-me o buço, já comecei a me preocupar com a velhice. Não queria rugas, cabelos brancos e os demais “assessórios” reservados aos provectos. E quando completei ‘dezenove anos’, já me sentia um “ancião”. Tomado de angústia naquele dia, escrevi um longo desabafo, que começava assim: “Hoje completo dezenove anos – uma data que para mim deveria ser motivo de alegria, mas (...)

A velhice pode chegar aos 60, segundo o IBGE; ou aos 65, conforme a Constituição Federal; ou ainda aos 70, de acordo com o Código Penal. Mas ela pode se antecipar para alguns ou atrasar para outros, independentemente de convenções. Velho não é quem tem cabelos brancos, pele flácida ou documentos esmaecidos. Já quase ‘idoso’, descobri que o principal sintoma da velhice é a ‘teimosia’. Não importa a idade. Se você tem dificuldade para aceitar opiniões, mudar hábitos e fica ranzinza sem causa que a justifique, está velho, camarada!

Há pouco tempo, no metrô, inaugurei uma nova etapa em minha vida. Estava de pé quando um jovem se levantou e me ofereceu o lugar para eu sentar. Agradeci sem entender a deferência. Pensei na pequena mala que eu carregava, mas não era a mala. Eram os anos mesmo. Talvez isso explique algo que se tornou recorrente de uns tempos para cá. Com certa frequência, tenho sido interpelado assim: “Já se aposentou? Ainda não se aposentou?! Quanto tempo falta pra se aposentar?...” Não, não me aposentei e sabe por quê? Porque eu amo dar aulas! Quero morrer bem velhinho numa sala de aula, sufocado em pó de giz e nos flatos da galera, entendeu?” Embora eu tenha vontade, não respondo assim. Sou polido e quero ser reputado como “moço bem-educado”. E mais tarde, quero ser um velhinho simpático, sorridente, daqueles que dão bom-dia, boa-tarde ou boa-noite a todas as pessoas que encontram na rua.

Não, ainda não sou sexagenário, mas já estou quase lá. Meus companheiros de infância, um amigo de mocidade e até o irmão mais velho já se tornaram ‘sessentões’. E essa tal “melhor idade” já me toca os calcanhares e dela eu não me esquivo. Porque a velhice, somente ela, é capaz de silenciar a carne e serenar o espírito.

FILIPE

sexta-feira, 27 de abril de 2018

RUPTURAS


Rupturas acontecem ao longo de uma existência: vida mais longa, mais rompimentos. A velha aritmética demonstra isso, e convence. Entre os muitos enlaces e desenlaces, há entrelaçamentos de frágeis estruturas que trincam, vergam e desmoronam ao sabor das mais amenas emoções. Tudo parece ir bem, sem esforço, mas sempre da ordem para o caos – conforme manda a ‘entropia’.

Rupturas acontecem entre colegas, vizinhos e, acredite, ‘amigos’ de redes sociais. Aliás, essa forma de amizade parece tão sólida quanto uma paçoquinha. Eventualmente há nessas mídias alguma solidariedade, vale registrar. Todavia, a convivência cotidiana é o grande teste a que todos nos submetemos, e nele sucumbimos.

Romper-se com amigos ou familiares é rotineiro e dolorido. Não há por que comemorar o fim de uma proximidade, mas, apesar desses tropeços, a Terra continua em seu bailado girando, girando. E a vida segue sua trajetória curva. Nós, rápido ou devagar, vamos passando a passeio.

Uma fratura conjugal é a mais dramática de todas as rupturas. Ainda hoje, deparei-me com um caso desses. A mocinha confidenciou-me com olhos marejados a separação dos pais. Sem algo a lhe dizer, apenas balbuciei palavras do tipo “se precisar de um apoio emocional, conte comigo”. Ela agradeceu, dizendo: “Foi melhor para os dois!”

Aquele triste desfecho teria sido precedido de uma ‘fermentação’ não simples. Um religioso, quando “fermentado” por uma crise, pode reclusar-se em sua cela, consumir-se em ascese e arrebatar-se numa ‘experiência mística’. Para um casal em crise, no entanto, não há ascese nem mística que o auxilie. Terá que resolver suas pendengas “olhos nos olhos”, tête-à-tête. Nada de dormir no sofá, porque a crise só vai agudizar. A busca solitária de “novos ares” como botecos, viagens etc. selam inapelavelmente o fim da relação.

Muita gente parece não saber, mas o reatamento de um casal não é como a reconciliação de irmãos, amigos ou vizinhos. Aquele terno e lacrimoso abraço é para uma reconstrução fraterna. É lindo, maravilhoso, mas não cola "cacos conjugais". Na relação de um casal, não se oferece apenas o teto, a mesa, a mão. Oferta-se o corpo, esse sacrossanto e improfanável templo.

Nada justifica, contudo, o ódio pós-relação. Não sendo possível a convivência, que permaneça o carinho. A humanidade precisa mesmo é de amor fraterno – que sempre cabe, porque sua medida é justa.

Ao longo dos anos, encontrei pessoas amáveis, as quais não consegui retribuir afeto. Também encontrei pessoas amargas. Algumas daquelas adoçaram um bom naco da minha vida. Encontrei também amigos de verdade, mas alguns se afastaram, enquanto outros ‘perseveram’.
 
Com muitos ou poucos amigos, no fim estaremos sós. Ninguém estará conosco no momento derradeiro. A solidão, sim, é a mais fiel e íntima das companheiras. Abracemo-la porque com ela nunca romperemos. A solidão jamais nos abandonará!

FILIPE

sexta-feira, 13 de abril de 2018

CENAS URBANAS


Manhã ensolarada de terça-feira. Após meu primeiro turno de serviço, deixo a escola, subo a rua que margeia a Praça São Benedito e sigo em direção à igreja. Estou criando uma rotina de passar lá todos os dias no final da manhã. Na praça, dois jovens “queimam matinho”. Passo lentamente e disfarço a observação. Eles me olham sem disfarçar, mantendo um riso contido, dando impressão de que me conhecem. Claro que sim e eu me lembro de um deles na escola. Valentão, sempre foi um sujeito desaforado – como diziam os antigos de minha terra sobre tais tipos. Esteve preso por algum tempo, mas “a liberdade voltou a cantar”, conforme verseja a “poética cadeeira”.

Subitamente, uma viatura da GM aparece na descida. Os policiais vasculham a praça, espetam os olhos na dupla, estacionam em diagonal, descem do carro rapidamente e gritam: “Mãos pro alto!” Olho para os “manos”, mas eles não me olham mais. Estão ocupados, vestindo a camisa e vão ‘vazando de fininho’, como se ordem não lhes fosse dada. Os policiais permanecem próximo à viatura e não empreendem a ‘caçada’ conforme eu previra. Entro na igreja e olho mais uma vez para os lados da praça. Os rapazes já vão longe, apressados, mas sem polícia atrás.

Manhã ensolarada de quarta-feira. Saio da escola e subo a rua em direção à igreja. Na praça, vagueiam dois jovens no estilo “mano”. Observo-os sem disfarçar e vejo que não são os mesmos do dia anterior. Mas como aqueles, esses também me olham rindo, mas não sei por quê, e nem de quê. Talvez tenham sido meus alunos. Continuo andando, já quase os esquecendo, quando algo me chama atenção. Um homem forte pega na camisa de um, sacode e grita alguma coisa que não entendi. Segui, mas um barulho me faz parar e olho novamente para a praça: empurrões e chutes são dados no moço; o outro se afasta e se senta num banco a meia distância. Mais chutes... e gritos: “Eu errei, senhor, eu errei. Me deixa!” Não consegui ouvir o que o fortão dizia, mas deu para ver o que fazia: uma pistola era apontada para a cabeça do rapaz, compondo um quadro dramático. Pensei que fosse um policial civil em ação, mas não. Policial não age a sós em serviço. Além do mais, renderia os dois suspeitos, sem jamais deixar alguém em posição de tiro, como ficou o outro.

Caminhei sem saber o que fazer e um pensamento difuso me dominava. De início, queria aplaudir a atitude do possível policial na abordagem de um rapaz suspeitíssimo. Mas ele não era policial, até porque não agiu corretamente, torturando o jovem. Talvez fosse um miliciano ou, quem sabe, “chefe” da “boca” num acerto de contas, pois essas dívidas são cobradas de acordo os repulsivos códigos do crime.

Tudo isso acontecendo numa manhã ensolarada, e na região central de uma pacata cidade. Imagine outras cenas nas periféricas noites suburbanas. Triste jovens, tristes cenas!

FILIPE

sexta-feira, 6 de abril de 2018

LULA


Hoje é um dia triste para mim e, por isso, quebrando a tradição, escrevo fora do cronograma habitual. Para muita gente, no entanto, este é um dia de júbilo porque, finalmente, Lula, o “grande satã”, vai para as grades. O mais triste é ver pobres, beneficiários dos programas sociais do PT, comemorando o calvário de Lula. A mídia, essa entidade “onipotente”, “onisciente” e “onipresente”, faz desses “milagres”.

Não quero discutir erros do Lula nem do PT. Certamente houve, e muitos. Mas, e os acertos... não contam?  Quantas vidas foram salvas naquele período de 13 anos de Lula e Dilma!... A fome foi praticamente extinta com o Bolsa-Família; o Pró-Uni colocou milhares de jovens nas universidades particulares; as cotas para estudantes de escolas públicas nas universidades federais; o ‘Mais Médicos’ prevenindo e curando doenças do povo da periferia e do sertão; linha de crédito para pequenos agricultores; o Minha Casa, Minha Vida; o incentivo a cooperativas rurais, e muito mais.

“Decisão judicial não se discute, cumpre-se” – esse é um surrado bordão que só se aplica aos pequenos. Recentemente, o presidente do Senado foi afastado pelo STF. No entanto, o senador negou-se a cumprir o mandado e continuou presidindo a Casa.

O Supremo Tribunal não mesmo supremacia e a história recente demostra isso claramente. Durante o regime militar, os ‘supremos magistrados’ viviam agachados perante os generais; no confisco da caderneta de poupança, perpetrado por Collor, o que fez o STF? Nada! Agora, por decisão daquela corte, o ex-presidente Lula pode ser preso. E quem vai mandá-lo “às galés” é seu desafeto paranaense, que deveria estar impedido.

A prisão de Lula é injusta, desumana, cruel. Não cometeu crime contra a vida, não é ameaça à paz social, não anda armado. O crime, segundo dizem, é a posse ilícita de um apartamento, que ele nega. Se o “apê” não tem dono, porque a Justiça não confiscou o ‘bendito’ imóvel para leiloá-lo? O Judiciário seria mais justo se agisse assim. Havendo um bem de origem duvidosa, que seja confiscado, leiloado e doado seu valor a entidades beneficentes. Hospitais públicos, asilos e creches esperam desesperadamente por verbas.

O PT não entendeu o significado de “governança de coalizão”, ou seja, ‘compadrio’. Um governo bem-sucedido precisa se compor não só com o Parlamento, mas com o Judiciário também. Dilma caiu, não por desvio de conduta, mas por ignorar isso. De cada dez pessoas, onze não sabem por que Dilma sofreu impeachment. Já no estado de São Paulo, o ‘governador-candidato’ a presidente sabe muito bem como agir. Na Assembleia Legislativa, jamais prospera uma CPI contra seu governo. No Judiciário paulista não é diferente: os processos sofrem de ‘paralisia crônica’. Talvez por afeto, carinho ou gratidão, um presidente do TJ se aposentou para assumir a Secretaria da Educação.

Quanto a Lula, ele fez mal em resistir à prisão. Há tempos, deveria ele ter se apresentado aos juízes, implorando, de joelhos até, que o prendessem. Não fez assim. Agora, sugiro que resista bravamente! Crie fatos para a mídia. É preciso que o mundo veja como é o Brasil, essa terra sempre dominada por coronéis e bacharéis – os oligarcas de sempre.

FILIPE

sexta-feira, 30 de março de 2018

MISTÉRIOS


A imagem que ilustra esta crônica pareceu-me intrigante. Antes que o leitor escorregue distraidamente pela página, sugiro que volte os olhos para a foto e tente decifrá-la. O que está ali?... Após examiná-la, continue a leitura. Ao final deste “tobogã”, outra imagem o aguarda para fechamento do texto.

Confesso ao ‘ausente leitor’ minha dificuldade para acreditar em milagres, que acontecem, mas sem estardalhaços. A tecnologia, por exemplo, é um milagre do engenho humano – apesar da horrorosa ‘tomada de três pinos’! A tríade (vida, morte e ressurreição) é o mais sublime dos milagres – obra-prima do Criador. Mas há outros ‘sinais’ que nos inquietam cotidianamente.

A história é a seguinte. Uma amiga, freira por mais de trinta anos e a quem chamo carinhosamente de ‘Irmãzinha’, deixou o convento. Houve desentendimentos com a “chefia”, dos quais não tenho ciência, mas dou “carradas de razão” à amiga, que não se ocupa de outra coisa senão rezar e fazer o bem. Eis uma autêntica ‘irmã de caridade’, conforme nomeavam-se as freiras nos tempos antigos.

Essa amiga, ao sair do mosteiro e sob o risco de virar uma sem-teto, foi acolhida pela Diocese. Ajeitaram para ela uma casinha ao lado de uma capela abandonada, da qual tornou-se zeladora. Mas, quando da entronização do Santíssimo e não havendo aquela ‘vigilante’ lâmpada conforme manda a tradição, a religiosa acendeu uma ‘vela de sete dias’, que se tornou a ‘sentinela’ do Altíssimo por um tempo. A vela derreteu, transbordou e formou no mármore a imagem que encima este texto. Por ceticismo, insensibilidade, ignorância ou até mesmo sabedoria, alguém poderá descartar qualquer interpretação que transcenda a materialidade daquela cera. Com ou sem ‘delírios místicos’, o leitor tire suas conclusões ao final da leitura.

Comigo já aconteceu algo bastante curioso, que escrevi aqui há tempos. Quando criança, um boi invadia o nosso roçado para comer as espigas de milho. Eu o expulsava, mas ele voltava. Então peguei a espingarda, caprichei no carregamento e mirei o bicho. Era Sexta-feira Santa e, por sorte nossa, mais minha do que do boi, a espingarda quebrou e o tiro não saiu. Mas há outra história ainda mais interessante do que essa.

Era uma também uma Sexta-feira Santa – de jejum e abstinência. Embora meu pai sempre cumprisse e nos recomendasse a observância das normas doutrinais, sempre vacilei nesses preceitos. Mas naquele dia eu estava jejuando. Na hora do almoço, foi-me oferecida uma bacalhoada, que recusei sem muita convicção. Houve insistência. Resisti. “Não é pecado! Coma, vai...”  “Hoje não!”, repliquei quase cedendo. De repente, misteriosamente, o prato espatifou-se no chão, ficando na mão apenas a parte em que os dedos seguravam. Uma massa de cacos, molho, batatas e bacalhau confundiu-me mente e espírito, e eu nunca me esquecerei daquilo.

Mas os grandes sinais são sutis, e sua beleza não se vê com os olhos carnais. Para enxergá-los, é preciso ter a fé dos simples, a fé da Irmãzinha.

Abaixo está a foto do sacrário onde repousam as Espécies Sagradas. A vigilante vela se desfez e esculpiu a imagem que, sem esforço de imaginação, remete à asa de um dos guardiães que adornam o tabernáculo.

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FILIPE

sexta-feira, 16 de março de 2018

A IRMÃ MAIS VELHA


Escrever sobre a “Irmã mais velha” exige tempo, zelo, memória e o talento de um escritor que não sou. Ouso, contudo, pôr nesta página pequenos retalhos da vida dessa singular figura, que não teve uma infância ajardinada e multicolorida como toda criança deveria ter.

Muito cedo, ela teve de assumir compromissos domésticos – ao suceder à mãe impossibilitada pela enfermidade –, começando a fazer nossa comida, lavar as roupas, cuidar da casa e dos irmãozinhos. Por ser ainda tão pequenina, não conseguia alcançar as panelas sobre o fogão, também pequeno. Então, meu pai teve de improvisar, pondo um caixote de madeira para que nele subisse e pudesse manusear conchas e escumadeiras.

A nova cozinheira trouxe-nos conforto, oferecendo-nos refeições nas horas devidas, mas a menina custou a se organizar, atrapalhada que ficava com o serviço se avolumando cada vez mais. De manhã, quando papai se levantava para fazer o café, ainda havia vasilhas no fogão para serem lavadas. O pai ficava confuso, pois era “louça” para todo lado. Eu disse louça, mas eram panelas de ferro e pratos esmaltados. Naquele tempo, porcelana se achava apenas nas cristaleiras dos vizinhos abastados.

Mas papai foi orientando a filha, ensinando-a aos poucos. Na cozinha, havia uma mesa onde ficavam pratos, panelas e outros utensílios prontos para serem usados. Então papai sugeriu: “Filha, vou lhe passar um programa. Assim que uma panela for usada e você não puder lavá-la naquele momento, ponha-a debaixo da mesa, para que não atrapalhe o serviço. Quando puder, lave-a e a coloque junto às demais. Este deve ser seu ‘programa’ a partir de hoje”. O irmão mais velho, rapazinho muito trabalhador, mas sapeca à beça, provocava a irmã: “Olha o ‘programa’ debaixo da mesa!”, dizia às gargalhadas, apontado o dedo para as panelas sujas, deixando a coitadinha por demais furiosa.

Embora frágil na aparência e de saúde delicada, essa irmã nos surpreendeu. Em pouco tempo, aprendeu o ofício, tornando-se uma cozinheira de mão-cheia, mas não só. Foi arrumadeira, costureira, educadora, e uma segunda mãe para todos os irmãos, especialmente para os mais novos. Lembro-me de que, ao anoitecer, ela punha água morna numa bacia e banhava cada pequerrucho, enfileirando-os sentadinhos sobre um banco de madeira. Assim, após enxugar cada um, ela os vestia e os punha na cama para dormir.

É, a nossa vida naquele tempo não foi fácil. Certa vez, quando eu tinha oito anos, papai me pediu para que, na volta da escola, trouxesse dois pãezinhos para minha irmã, que estava adoentada. Um parêntese: pão lá em casa era artigo de luxo, que raramente podíamos comprar. Então, após as aulas, fui à padaria comprar os dois pãezinhos. Era bem de tardinha, quase anoitecendo e eu estava com uma fome danada. O cheiro do pão fresco aguçava ainda mais meu apetite e não resisti. Comecei a roer o pãozinho da mana ao percorrer a longa estrada até a casa. Fui pegando de mansinho e furtivamente um pedacinho do miolo, depois mais um pedacinho e mais um pedacinho. Ao chegar em casa, sem que eu percebesse, os pães tornaram-se dois canudos, sobrando deles apenas a casca. A irmã, naturalmente, não gostou e foi reclamar com o pai. Fiquei preocupado com a bronca, que certamente receberia. Mas não. O velho calou-se numa sofrida impotência por não conseguir comprar um simples pão para cada um dos filhos.

Essa irmã, guardiã dos pais e acervo da memória da família, reverencio genuflexo.

FILIPE