sábado, 27 de agosto de 2022

DESARMAI-VOS!

De pequeno, eu já sonhava com uma arma. Comecei com arco e flecha feito de bambu, depois evoluí para canivete, faquinha de ponta, espingarda e... Parei na espingarda, interrompendo uma trajetória que teria me levado a uma cobiçadíssima ‘garrucha calibre 22’.

Meu primeiro canivete foi um presente de meu pai quando completei dez anos. Lembro bem do dia em que meu irmão mais velho e eu fomos à cidade com o dinheiro dado pelo Velho, que seria a conta de pagar o presente. Era um domingo de verão com céu nublado e chão molhado. Após caminhar por mais de hora numa estrada barrenta, chegamos à vendinha do Jurandir, em Guiricema, e compramos os canivetes. O meu irmão escolheu um com cabo branco e o meu tinha o cabo em tons escuros.  Aquele foi um dia de grande contentamento para mim, porque com um canivete no bolso eu passei a me sentir um homem feito. Naquele tempo era assim mesmo. O passaporte masculino para a idade adulta era uma pequena arma ou cigarros.  

A história da espingarda foi diferente. Mas antes da espingarda, preciso contar outra história. Depois do canivete, eu queria “evoluir” e desejava uma ‘arma de fogo’, chegando a fazer uma artesanalmente. Peguei um cano de guarda-chuva e um pedaço de madeira. Depois amassei e dobrei uma parte do cano e lavrei a madeira até que ela ficasse com cara de coronha. Enfim, fiz uns encaixes, amarrei o cano na coronha com arame e usei um elástico para fazer com que o gatilho pudesse ser armado e disparado. Pronta a minha “bazuca” eu precisava testá-la. Comprei pólvora, chumbo e espoleta. Soquei a pólvora com uma boa carga de chumbo e saí em busca de um alvo, mas não tive coragem de puxar o gatilho. O cano me pareceu muito frágil e aquela maçaroca explosiva poderia me chamuscar a fuça. Desisti.

Agora a espingarda. Quando eu tinha uns quinze anos, procurei um tal Chico Alfredo, que tinha uma espingarda para vender. Ah, você não sabe quem é o Chico Alfredo? Não se preocupe porque eu também não sei. Mas isso não importa. Antes de me encontrar com aquele armeiro, pedi permissão ao meu pai. Aqui umas observações: não sei como tive coragem de pedir autorização ao papai para comprar uma espingarda, não sei como meu pai pôde me autorizar a possuir uma arma e não sei como o Chico Alfredo teve coragem de armar um moleque. Estava tudo errado, mas como papai sempre confiou em mim, consegui comprar a espingarda e dei alguns tiros com ela. Passado um tempo, dei fim naquele troço e mudei meus planos, que se tornaram pacifistas.

Hoje, já homem velho, exorto a todos que se desarmem. Arma é eficiente para atacar e não para se defender. Até fins dos anos noventa, havia uma propaganda institucional sobre segurança pública dizendo: “Nunca reaja a um assalto”. E as estatísticas apontavam que em 18 reações, o placar dava ’17 a 1’ a favor do bandido. Até aquele tal Jair que se diz Messias já teve sua arma levada por um assaltante.

Infelizmente está de volta a sanha armamentista. Nos últimos três anos, segundo alguns estudos, o número de armas com a população civil foi multiplicado por seis, havendo mais armas com o povo do que com as forças de segurança. Pergunto: quais bandidos estão lucrando com isso?

FILIPE

sábado, 13 de agosto de 2022

DIA DOS PAIS

Dia desses, conversando sobre meu velho pai e as dificuldades por que passamos ao longo da vida, observei que papai plantou abundantemente, cultivou com esmero e nos deixou fartura. Graças a ele, eu disse, temos hoje generosa colheita. “Sim, devemos colher, mas não podemos esquecer de semear também”, ouvi e concordei dizendo que vamos colher as espigas, debulhá-las e semear os grãos!

Metáforas à parte, papai deixou um rico legado de trabalho, honestidade e desprendimento. Em mais remota memória, vejo meu pai lavrador: cultivando roças de milho, arroz e feijão; pedreiro: assentando tijolos, tirando nível e prumo; carapina: lavrando madeira com enxó, plaina e formão; enfermeiro: aplicando injeções, enfaixando braço quebrado (o meu); professor: lecionando, alfabetizando vizinhos e filhos; rezador: rezando terço em velórios e promovendo reuniões para oração na redondeza.

Esse era meu pai: um homem de oração e de ação, mas não só. Papai vivia sempre apertado financeiramente. Adoentado, tinha esposa doente e muito filhos para alimentar, vestir e educar. O que ele plantava e colhia nem sempre era suficiente, fazendo com que se endividasse na vendinha no Tatão Aleixo, onde  comprava fiado. De vez em quando, também pegava um dinheirinho emprestado com seu compadre Tatão Tibúrcio. Contudo, papai cumpria à risca todos esses compromissos. Muitas vezes ajudei levar frangos para vender. Eram umas aves tão magras, que pouco rendiam, e esse pouquinho ficava lá na venda para abater a dívida, que só crescia. E assim, sempre que recebia uns ‘cobres’ por um serviço prestado ou por algo que vendesse, papai ia pagando as contas, evitando o constrangimento de uma cobrança.

Num passado muito distante, a vendinha do Tatão Aleixo fora de meu pai, onde se vendia o básico para as famílias rurais da redondeza. Tinha lá macarrão, querosene, alho, cebola, açúcar, sal etc. E como toda vendinha rural decente, tinha pinga também! Naquele tempo, papai teve dissabores com seu comércio – não com os cachaceiros, mas com os caloteiros. Lembro que em casa havia um rolo amarrado por um barbante contendo muitas dezenas de papéis nos quais eram marcadas as despesas não pagas pelos clientes. Papai nunca foi atrás de seus devedores, talvez porque fossem todos muito pobres e deles se compadecesse.

Um caso mais recente e de grande relevo se deu na venda de um gado. Papai confiava no comprador e lhe vendeu várias reses. Aconteceu que aquele senhor sofreu um golpe de um mercador e então repassou o prejuízo para frente, e um dos “premiados” foi meu pai. Houve quem fosse atrás do homem, confiscando qualquer coisa que ele tivesse a fim de minorar o prejuízo, mas meu pai ficou quieto e não o incomodou. Certa vez, meu pai entrou na agência bancária para receber o benefício, viu o devedor lá. O homem ficou tão desconcertado diante de meu pai, que parecia estar procurando um buraco para se esconder. Então papai se aproximou, pôs a mão no ombro dele e lhe disse: “Olha, fique tranquilo. Eu sempre confiei em você e sei que você vai me pagar. Pode tocar sua vida em paz, porque eu estou bem e posso esperar o tempo que for necessário”. O homem, tomado de espanto, agradeceu emocionado ao meu pai e saiu ruborizado da agência. Papai sempre dizia se sentir muito feliz por ter conseguido aliviar um pouco o fardo que pesava sobre aquele homem, que poucos dias depois teve morte súbita.

Neste Dia dos Pais, papai não está mais aqui para receber meu abraço. No entanto, sua presença é seu legado, que tento abraçar.

FILIPE