sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

SOB FLECHAS


Ao final de cada ano letivo tenho o mau costume de pedir aos alunos que avaliem meu trabalho. Pego uma folha sulfite e a divido em oito partes iguais, dando um pedaço de papel a cada aluno. Num lado, peço que escreva sobre este professor; no outro, sobre o próprio aluno. Sugiro que fiquem à vontade para espinafrar o professor, e que o façam anonimamente. Obedientes, pelo menos nesse momento, os alunos não perdem tempo. Após isso, peço a um deles que recolha os papeizinhos, que separo por classe de forma que eu fique sabendo o que pensa de mim determinada turma, mas não o aluno.

Para mim não é tarefa das mais prazerosas ler as impressões de meus alunos sobre meu trabalho, porque alguns deles, inclementes, dão-me impiedosas flechadas. Já aconteceu de tudo. Houve um tempo em que eu usava chicletes para mitigar minha ansiedade. E na avaliação, um deles escreveu: “Parece uma vaca velha mascando!” Velho, embora, já não me chamam mais de ‘vaca velha’, porque parei de usar chicletes. Também já criticaram minha letra, meu modo de falar etc., sem, contudo, me deixar aborrecido, porque essas observações são verdadeiras.

Neste ano, contudo, fiquei bastante chocado. Não havendo mais provas para corrigir nem lançamentos a serem efetuados, peguei os tais papeizinhos e fui para uma sala vazia. Separados os montinhos, comecei a lê-los, reservando para o final uma classe com a qual eu me dava bem. “Pelo menos eu sairei daqui animado”, pensei.

As críticas e eventuais elogios obedecem um padrão, não diferindo muito uma turma de outra. Ainda assim foi possível notar certa empatia de determinada classe contraposta ao desconforto de outra.

Finalmente, abri o último bloco. Devo ter ficado ruborizado ao ler o primeiro bilhete; o segundo também; o terceiro, o quarto... Por fim, fui me acostumando com o malho a que voluntariamente me submeti. Muitos desses alunos disseram que sou parcial no trato, preferindo a uns em detrimento de outros. Pior: que prefiro os mais inteligentes e desprezo os que têm dificuldade. Mentira!

Tenho o péssimo defeito de dar atenção apenas às pessoas com as quais me identifico e não costumo me aproximar daquelas cujas ideias não me agradam, e isso é fato. De algumas pessoas, confesso envergonhado, tenho uma quase repulsa. Mas confesso, agora sem estar envergonhado, que tenho lutado contra esse comportamento. Mas é difícil mudar isso. Ô luta inglória!

Também não me perturba a crítica quando a considero justa. Podem me tachar de feio, burro, ignorante, medíocre etc. Mas dizer que sou “puxa-saco dos inteligentes”!?... Não posso aceitar isso passivamente. Nunca bajulei gente inteligente, poderosa, influente, rica etc.  Isso nunca!

Portanto, deixo aqui este protesto, não pela necessidade de protestar, mas pela necessidade de cumprir minha agenda, atualizando este blog.

Desculpa qualquer coisa, raríssimo leitor!

FILIPE

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

A AULA INTERROMPIDA


Eu gostaria de escrever sobre algo pitoresco que acontece no meu jardim. No pé de mamona, que plantei recentemente e que já tem a altura da casa, um pombinho silvestre começou a fazer ninho, mas sua “esposa” não se animou com a gambiarra e ambos desistiram do projeto. Deixo para o final esse caso e vou cuidar de uma coisa chata, mas necessária.

Corria o mês de outubro. O Chile ardia conflagrado com multidões nas ruas. A polícia reprimia, atirava, matava. O povo não se intimidava e resistia. No Brasil sob chamas, ardiam as matas e seus guardiões. Em Brasília, as reformas avançavam sobre escassos direitos do povo, ficando este cada vez mais sem horizonte e sem lideranças – que foram presas, amordaçadas ou assassinadas.

Desacorçoado com o momento político que vivemos, entro na sala para mais uma aula. Nas mãos tenho um jornal, que deixo sobre a mesa. Pego um giz e vou à lousa. Paro, olho para os alunos, todos na faixa de 15 anos, e penso: “O que será desses jovens?...” E volto para mais uma lição de logaritmos, ou trigonometria, ou funções exponenciais, ou nada disso. Tudo ali perdia importância diante dos fatos recentes no país e no mundo, onde o fascismo avança tresloucadamente. Dirijo-me aos alunos.

“Olha, gente, o que acontece no Chile! Fiquem atentos, porque aqui no Brasil não será diferente. O Chile foi um grande laboratório para a equipe econômica desse governo. Por que os chilenos protestam, se a economia está indo bem e a inflação está sob controle? É porque isso não é suficiente se não há justa distribuição de renda. É como numa família, em que os pais trabalham muito, ganham dinheiro, enriquecem, mas deixam os filhos à míngua. Para que serve a riqueza de um país, se o povo é excluído? No Chile é assim. Os números socioeconômicos, se vistos de forma desatenta, são invejáveis. Mas 70% dos aposentados ganham menos de um salário mínimo, enquanto 1% da população detém 33% de toda a renda nacional. Se avançarmos mais para o topo da pirâmide social, encontramos 0,5% da população abocanhando 19,5% de toda a renda nacional.”

Empolgado com essa explanação, decidi avançar no campo ideológico, e disparei: ”Aprendam uma coisa: rico não gosta de pobre. Portanto, pobre que somos, não devemos votar em candidatos dos ricos. Nas eleições, deem uma olhada nas movimentações dos ricaços da cidade. Observem quem são seus candidatos e votem contra!” Nisso, uma aluna levantou a mão e disse: “(...)”. Não entendendo, tive a infelicidade de pedir que repetisse. “Fala... Qual a sua pergunta?” “A aula. O senhor se esqueceu da aula!”  “Ah, sim. Mas isso também é aula”, repliquei bastante desconcertado. “Aula de matemática, professor”, reafirmou. “Mas aqui tem matemática também”, tentei consertar e continuei: “Desculpe-me. Vamos retomar a aula. Onde é que paramos mesmo?...”

Encerrado o assunto acima, prefiro falar da natureza: das árvores e de seus pássaros –  enquanto existirem. Quanto ao ninho abandonado na minha mamoneira, seu projeto foi retomado e em breve estará pronto. Agora, por um sabiá.

FILIPE

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O SONO INTERROMPIDO


A viagem foi tranquila apesar do cansaço que se intensifica com o avançar da idade. Chegando, no meio de um dia nublado e quente, encontrei papai feliz pela visita deste filho. Mamãe, como sempre, fica alegre com a presença de seus inúmeros filhos, mas parece um pouco atrapalhada com a movimentação de tantas chegadas e despedidas.

Desde que mamãe se acidentou e ficou internada por uma semana, muita coisa mudou em sua vida. Seu pequeno “latifúndio” – antes composto de algumas cômodas além da cama e de uma varandinha onde tomava sol todas as manhãs – foi reduzido a um leito hospitalar. Nele mamãe espera pelas refeições, recebe visitas e os cuidados de sua filha mais velha, a quem ouso nominar carinhosamente de “Mana Véia”.

Durante dois dias pude presenciar o labor dessa irmã, que, de vez em quando, é auxiliada por uma filha ou por nossa irmã caçula. Mas é a ‘Mana Véia’ quem fica “vinte e quatro horas” à disposição de nossos pais. Observando a maneira tão singular com que essa irmã lida com nossa mãe, veio-me à memória uns fragmentos muito antigos. Num passado distante, devido à enfermidade de nossa mãe, ela cuidou dos irmãozinhos; depois, com a mesma dedicação e competência, criou seus filhos; agora, esmera-se nos cuidados de nossos velhinhos: papai fez 89, e mamãe, enferma, tem 80.

Na primeira noite de minha visita, fomos dormir cedo: eu, por cansaço da viagem; meu pai, por costume e sabedoria. Tanto que um de seus lemas é: “A noite foi feita para a gente dormir!” E por isso, quero abrir um parêntese.

Certa vez, estando eu na companhia de dois irmãos, engatamos um bate-papo que se estendeu noite adentro. Lá pelas tantas, meu pai acendeu a luz e veio ao nosso quarto, dizendo: “Vocês não dormem?... Quem não dorme morre cedo. Meu tio (...) morreu com 56 anos porque vivia nos bailes. Eu já tenho quase noventa e estou aqui!” Desabafou e voltou para cama, talvez com o propósito de esticar ainda mais os seus dias. Meu irmão, zombeteiramente, me disse: “Cinquenta e seis?! O tio de meu pai morreu com a sua idade... toma cuidado!”

Voltando. Então, nessa primeira noite em que dormi cedo, acordei antes das quatro da manhã e já sem sono. Papai, que também estava acordado mandando e recebendo mensagens pelo celular, resolveu telefonar para a Mana, chamando-a com urgência. A Mana mora no terreiro de casa, mas a modernidade exige que tudo seja resolvido por telefone. E meu pai ficou moderno. Perguntei ao pai o que aconteceu. “A sua mãe está atravessada na cama e é preciso ajeitá-la”. “Não precisa chamar a Mana, pai. Eu mesmo arrumo”. Ele decidiu que deveria ser a Mana e foi enfático. Eu quis insistir, mas recuei e esperei pela irmã, que chegou um minuto depois.  A Mana, toda sonolenta, viu minha mãe tentando sair do “berço”, mas não se assustou com isso. O que a assustou de verdade, e que me fez correr ao quarto, foi outra coisa. Um escorpião embaixo da cama de meu pai. Eu, que tenho pavor de aracnídeos, tive que agir e não poderia errar. Se o bicho escapasse, como encontrá-lo depois?... Vi meu pai assustado e a irmã terrificada. A minha mãe, sem saber dos riscos, queria apenas descer do “berço” e dar uma voltinha. Dei uma chinelada... e papai deu um pulo. Pensei: “Errei”. Mas não.

Por fim, entendi por que minha irmã teria que estar ali àquelas horas. Papai tinha razão.

FILIPE

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O AMIGO SILENCIOSO


Hoje o Cido me pareceu tristonho. Quando chego à sua casa, sempre ao anoitecer das sextas-feiras, bato à porta e um pequeno sino fazendo as vezes de campainha anuncia minha presença. Então dona Maria, sua esposa, deixa os afazeres na cozinha e vem apressadamente abrir a porta. Do sofá, o amigo esboça um tímido sorriso enquanto uma mão trêmula procura o controle-remoto para desligar a TV. Mas hoje a TV continuou ligada enquanto ele permanecia cabisbaixo, quase indiferente a mim. Dona Maria pediu que ele desligasse a televisão, mas eu pedi que a deixasse ligada.

Uma matéria num canal que desconheço me chamou a atenção. Na tela, um repórter vai a um bairro da periferia do Rio de Janeiro, numa encosta sob risco de desmoronamento, e entra no barraco de um senhor idoso e doente. As paredes de lata, o vaso sanitário dividindo espaço com o fogão, roupas penduradas. Um colchão sob o chão úmido de terra batida, um armário com a porta despencando e uma televisão antiga, daquelas “bundudas”, eram seus únicos bens. E nada mais havia ali além de umas caixas de papelão entulhadas de roupas – talvez por lavar. Dona Maria fixou os olhos na TV durante a reportagem e, ao final, exclamou: “É... A gente às vezes reclama da vida, mas, se olhar bem, vê que tem gente vivendo muito pior, não e mesmo?...”  

A vida daquele casal sempre foi dura. Ele nasceu lá pelos lados de Minas Gerais, mas em solo paulista. Ela me parece que é mineira de Ubá, mas foi criada no norte do Paraná. Eles se conheceram nesta cidade, aqui se casaram e trabalharam por muito tempo em fazendas da região até que, vinte e cinco anos atrás, o Cido sofreu um grave acidente. Com afundamento do crânio, teve que fazer várias cirurgias e ficou meses em coma. Recuperou-se parcialmente, mas ficou “tetra”, precisando de cuidados muito especiais. Com os filhos morando distante e sem poder pagar uma cuidadora, dona Maria é quem lhe faz de tudo. Ultimamente, porém, ela também apresenta problemas de saúde e já tem dificuldade de cuidar do marido sozinha.

Foi então que eu soube por que o meu amigo estava aflito. Enquanto eu conversava com a dona Maria sobre isso e outros assuntos mais prosaicos como: “Está chovendo, graças a Deus. Que bom. Agora deve dar uma esfriada, né?...”, o Cido acenava para nós, como sempre faz: a mão esquerda levemente espalmada (a outra não tem movimento) apontava na minha direção e, ao mesmo tempo, olhava para esposa, pedindo-lhe que o traduzisse. Olhei para ela e nem foi preciso perguntar. “Ele está falando que vamos mudar daqui.” “Vocês vão mudar?! Quando?...” “Amanhã!” “Para onde?” “Vamos lá pro São Dimas! Vou morar perto da minha filha pra ela poder visitar o pai mais vezes. Aqui é muito longe e ela quase não vem.” “Que pena... Não vou poder visitar mais vocês.” Ao ouvir isso, o meu amigo começou a chorar. Mas remendei a tempo o estrago e disse: “Não vou poder visitar todas as semanas! Mas pode deixar, seu Cido, que vou continuar vendo você, tá bom?”. Ele sorriu.

FILIPE

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

CADÊ A ENXADA?


Bom, não sei se isso é um título que se preze, mas a crônica que se segue também não deverá ser prezada por alguém. E nem por isso o título deixa de ter razão para estar lá em cima.

Visito com relativa frequência uma casa de idosos. Ao me aproximar de cada um, começava sempre com platitudes do tipo: “tá frio”, “tá calor”, “será que vai chover?” “cadê a chuva?” etc. Então decidi inovar, sobretudo com os homens, cuja maioria tem aspecto de gente da roça. Mudei a forma de abordagem para “Cadê a enxada?...”

Até que estava dando certo. O seu Antônio respondeu: “Ih, rapaz, eu não trabalhei na roça, mas meu serviço era ainda mais pesado. Trabalhei numa olaria por mais de trinta anos”.

Trabalhar em olaria, fazer tijolos... Isso não é pra qualquer um. Quando jovem, trabalhei por um ou dois dias na olaria de um tio, e até hoje estou cansado. Aquele tio consumiu a vida nesse árduo trabalho, e se cozinhou juntos às inúmeras caieiras de tijolos por ele queimadas. O fogo era aceso à noite e ele varava madrugadas pondo lenha e calafetando com barro as paredes para que o calor ficasse retido. De muito longe, na mais espessa escuridão, podia-se ver aquele brasido, que era um colosso de tijolos incandescentes. E o hálito ardente daquela fornalha impedia que curiosos se aproximassem impunemente.

Mas, naquele asilo, há quem de fato tenha trabalhado na roça. Um diz: “Vixe, quero saber mais de enxada não, moço!” Outro: “Até que se eles deixassem, eu queria uma enxada para capinar um pouco. Sabe, eu gosto e aqui tem bastante espaço. Eu queria plantar milho, mas acho que não pode, né?...” Ainda outro: “Ih, moço, já trabalhei muito nessa vida. Capinei, sim, mas não só. Até caminhão já dirigi. Mas essa danada da enxada judia da gente!” Um deles não disse que capinou, mas vem com esta: “Não quero, não. A enxada matou meu pai!” Peço a ele que explique, mas não explica nada e repete como um mantra: “A enxada matou meu pai.”

Em outros tempos, o seu Zé, que já partiu, era assim provocado por um funcionário: “Seu Zé, eu comprei uma enxada novinha. Então amanhã você já pode começar a capinar”. Mas o seu Zé ficava uma fera. Dentre impublicáveis impropérios, resmungava: “Eu não vou capinar. Nunca capinei, não sei capinar e ninguém vai me obrigar a capinar.”

Da última vez em que estive no asilo, vi um novato. Era um caboclo já meio roído, mas não tão velho e estava bem vestido. Pensei: “Com este nunca falei, mas vou provocá-lo”. Aproximei-me devagar e disparei: “Olá, tudo bem?” Ele me olhou meio desconfiado e não disse palavra. Mas eu precisava completar o serviço e emendei: “Cadê a enxada?” Dessa vez a coisa não funcionou. “Tá achando que eu sou algum filha da puta?!” “Mas por quê?...”, repliquei. “Eu sou escrivão, sei escrever e nunca tive que usar enxada!” Eu, muito sem graça, respondi: “Ah, então eu sou esse ‘filha da puta’? Porque sempre usei enxada, sou um capinador.”

FILIPE

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

FINITUDE


Ultimamente, tenho pensado bastante na tal da “indesejada das gentes”. Manuel Bandeira tem um belo poema sob o título de “Consoada”, no qual ele assim se refere à morte, que também recebe o epíteto de “iniludível”.  Tenho lembrado de pessoas que partiram há muitos anos, especialmente do meu avô Sebastião.

Vovô era um homem trabalhador. Embora analfabeto, tinha orgulho de saber escrever as iniciais de seu nome: ‘SLL’ (Sebastião Lopes de Lima), que costumava gravar com formão no cocho das porteiras que ajudava meu pai a fazer. Certa vez, ele levantou a barra da calça e me mostrou umas varizes – as veias formavam a letra ‘S’ – e me disse orgulhoso: “Aqui está a letra do meu nome!”

Vovô Sebastião cuidava de uma boa porção de terras, uma verdadeira fazendinha. Levantava bem cedo, pegava uma guiada e começava a chamar suas vaquinhas para a ordenha. Com sua inconfundível voz metalizada, ele nomeava uma a uma. Tinha várias, mas lembro do nome de apenas duas:  Açucena e Cocada. Lembro também de alguns bois carreiros: Roxinho e Ouro Fino eram “bois de coice”, aqueles que sustentam o cabeçalho do carro;  as juntas Senado e Escovado, e Tesouro e Sete Ouro eram de “bois de guia”, aqueles que ficam à frente, obedecendo o candeeiro ou tentando passar-lhe os chifres. Da “junta torneira”, que fica no meio, entre os “coiceiros” e a “guia”, eu não lembro os nomes, porque eram os ‘novatos’, que estavam em treinamento. Mais tarde, dando certo, seriam “promovidos” para o “coice” ou para a “guia”. Na sua última aquisição, vovô comprou uma junta bastante desigual: o bonachão Mascote, um boi holandês que curtia a solidão dos brejos, e o endiabrado Coração, um boi preto com um coração branco tatuado na testa, que quase matou meu pai com um coice, quebrando-lhe umas três costelas. Esse danado tentou me acertar diversas vezes. Atravessando um rio, quase passou por cima de mim com o carro e tudo. Consegui me safar a nado, jogando-me na correnteza.

A fazendinha de meu avô era muito bem organizada. Tinha um terreiro cheio de galinhas, vários porcos de engorda, canavial e cafezal. Tinha também um simpático pomarzinho que me oferecia furtivamente deliciosas laranjas e bananas-maçãs. Ah, tinha o Queimado, um cavalo de sela e charrete, que era meu objeto de aventura. Quando ia ao pasto pegá-lo para meu avô, eu aproveitava para dar uns bons galopes. Mas o bicho era manhoso...  Às vezes, estava lá paradinho, pensando na vida, mas quando me via chegando, já dava uma abanada de cabeça e começava a sair de fininho. E não adiantava eu apressar o passo, porque ele sabia que eu não o alcançaria. Eu teria que negociar com ele, conversar mesmo, até que cedesse e resolvesse aceitar o cabresto. Depois disso, era só bamboleio! Encostava o   ‘corcel’ num barranco e, nem bem me ajeitava no seu lombo, ele já saia em disparada.

O sonho de meu avô era instalar confortavelmente a minha avó em sua casa na “rua”, conforme se diz na nossa terra sobre aqueles que moram na cidade. Ele tinha uma casa velha onde passavam fins de semana, mas comprou outra casa. Esta, uma das mais antigas da cidade, foi reformada mantendo-se quase intacta sua arrojada arquitetura. Certo dia, já na casa nova, vovô disse à minha avó: “Luzia, se eu morrer amanhã, não deixarei nenhuma dívida para você. Hoje paguei o resto que estava devendo.” Na manhã seguinte, dia em que eu completava doze anos, vovô partiu. Aos setenta.

FILIPE

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

NOTÍCIAS ESCOLARES


Ao som de “Música Antiga”, um belíssimo programa produzido pela Rádio MEC que o ‘coiso’ pretende fechar, deixo o jornal e começo a dedilhar o teclado do notebook em busca de algo para a postagem de hoje. Na Folha de S. Paulo, uma matéria sob um bem-sucedido programa de alfabetização de adultos me chamou a atenção. Há 45 anos o Colégio Santa Cruz, um dos mais tradicionais do país, oferece gratuitamente aulas, transporte e lanches a um público carente e cada vez mais crescente. Por outro lado, nas escolas oficiais, que são mantidas pelo Estado, o antigo supletivo está deixando de existir por falta de alunos.

Noutro recorte de jornal, este do início da semana, uma notícia trágica: “Professor é esfaqueado por aluno dentro de escola na Grande São Paulo”. Lendo a matéria, soube que o professor dá aulas de geografia, tem 55 anos e estaria em estado grave num hospital da região. O algoz é um rapaz de 14 anos, seu aluno. Segundo a reportagem, o professor é querido, apesar de rígido; o agressor, por sua vez, é tido por estudioso, bem-comportado, um “bom moço”! Fiquei sem entender como um jovem “tão bom” pudesse ser assim tão covarde, tão atroz. Ah, o agressor feriu-se também, talvez querendo ‘empatar o jogo’, mas sem gravidade. Parece que a fúria maior seria contra o professor, porque ele apenas se arranhou com a lâmina.

Eu me vi “na pele” daquele professor. Um homem já esfolado pela vida e pelos anos, tentando realizar um trabalho cada vez mais penoso. A maioria de nossos jovens não se interessa por leitura nem pela escrita, nem por nada que não seja troca de mensagens nas redes sociais ou joguinhos eletrônicos. Mas há coisas muito tenebrosas nessas mídias que ocupam mente e espírito juvenis, e muito mais nocivas do que os inocentes jogos. Melhor não saber.

No Brasil, onde 11 milhões de pessoas com idade de 15 anos ou mais não conseguem ler sequer um bilhete simples, segundo reportagem da Folha, professores são ameaçados, agredidos e até esfaqueados pelos seus próprios alunos. Muito triste!

Acabou o programa da Rádio MEC e acho que a Rádio MEC também acabou. Sem “Música Antiga”, perdi a inspiração e encerro o texto por aqui. Sorte do eventual leitor, porque eu estaria disposto a destilar um balde fel nas linhas seguintes. Eu seria lamurioso, chato, muito além do habitual. Então vou nos poupando dessa neura.

FILIPE

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

OS FRANCISCANOS ESTÃO DE PARTIDA


Publicado na “Tribuna de Amparo”, edição de hoje.

Dia desses, enquanto aguardava na fila de um supermercado, fui despertado da leitura do jornal pelo seguinte diálogo: “Sabia que vão trocar os santos da igreja São Benedito?”, dizia uma senhora à sua amiga, tentando impressioná-la. “Vão, mas não só, porque a igreja nem vai continuar sendo São Benedito. Vão mudar até o nome da paróquia também”, exagerou a outra. “O quê?! Não são apenas os freis?... Se até os santos vão embora, eu também saio de lá”, interveio uma terceira.

Exageros à parte, há dias ouço rumores de que os frades franciscanos estariam deixando a Diocese de Amparo, mas nunca dei crédito a tais notícias, que mais me pareciam boatos. Mas agora parece sério.

Os franciscanos instalaram-se aqui em 1911, há mais de um século, e nestas terras fundaram convento, formaram comunidades, edificaram capelas, evangelizaram e encantaram o povo com sua abnegação e despojamento. Não me parecia crível, porém, que eles nos deixassem justamente neste momento tão difícil, quando os ânimos andam tão acirrados fora e até mesmo dentro da Igreja.

Frei Vanilton e seus dois companheiros, que ora conduzem a Paróquia são Benedito, são formidáveis. Suas homilias são encantatórias porque sucintas e contextualizadas, e as celebrações não cansam a assembleia. Também não se vê nessa tríade nenhum traço de vaidade clerical, algo bastante encontradiço noutras paragens, infelizmente. A sintonia com o bispo diocesano e com o Papa Francisco é outro atributo desses bravos religiosos.

Mas já há certeza. Os nossos freis vão mesmo nos deixar e será em breve. Porque eles hão de singrar outros mares e suas redes deverão ser lançadas em águas ainda mais profundas.

Ah, quão alvissareira seria uma réplica a este artigo sob o título: “Os franciscanos não estão de partida!”  Não custa sonhar.

FILIPE

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

ENCONTRO COM O POETA


Era de manhã, eu ia para o serviço, quando, de repente, eis que cruzo com uma criatura muito fofa. Paro e a fixo por um instante, e tento pará-la. Mas ela tinha pressa e não podia ser interrompida por mim. A rua estava deserta, mas à frente havia uma avenida bastante movimentada, e era para lá que se dirigia apressadamente a desajuizada “criança”. “Por que a pressa?”, quis perguntar mas desisti. E digo logo do que se tratava: um filhotinho de gambá. 

O gambazinho queria arriscar a vida na avenida, mas não permiti. Abri o jornal e lhe fiz acenos para que voltasse, ele quis me desobedecer, mas fui enfático. Então o bichinho deu meia-volta, retornando com indisfarçável mau humor. E assim, fui conduzindo o ‘timbuzinho’ que, de vez em quando, me olhava furibundo. Contudo, manteve-se obediente num trote miúdo que fazia o corpo tremular e o rabinho oscilar, indo até o Jardim Público. Diante do meio-fio – para a diminuta criatura uma “muralha intransponível” – quis desistir, e, mais uma vez o meu jornal entrou em ação. Amedrontado, foi beirando a guia até encontrar uma fenda na qual pôde pôr as patinhas e escalar. Dali para diante, deixei que ele decidisse por si. Entrou num gramado, cruzou a passarela e se embrenhou no mato com muitas árvores. Ufa! 

Mas esse não é um “encontro com o poeta”, mas um “encontro com a poesia”! Com o poeta foi noutro dia. 

Eu voltava da escola, já bem noite, caminhando pela calçada oposta a um bar quando ouvi: “Professor, quero te dar os parabéns!” Pensei: “Não faço aniversário, não ganhei prêmios, não há por quê...” Mas, para cumprir o protocolo, cruzei a rua até a calçada onde havia umas mezinhas e ‘gente jovem reunida’. “Por que os cumprimentos?”, perguntei. O ‘Poeta’, era ele, me disse: “Gostei muito do que você escreveu.” Fiquei perplexo. Veio-me um filme antigo, de quando mandei algumas notas ao jornal contestando o “Poeta”. Num artigo, chamei-o de “extemporâneo da arcádia” – um xingamento, claro. Mas não. O Poeta referia-se a um texto que escrevi sob o título de “Carta ao Eremita”. Disse ter gostado muito e que levou o texto ao bispo diocesano. “Você já conversou com o bispo? Precisa conhecê-lo. É um dos nossos. Quando viu seu artigo, ele me disse: ‘Olha, que bom que alguém rebateu. Assim, não foi preciso que eu fizesse isso, porque ficaria muito chato’”, finalizou. 

Sem ter como retribuir a ‘mesura’, pensei em falar alguma coisa que pudesse agradar meu interlocutor. Fui com esta: “Olha, também leio seus textos, tenho um livro seu e gosto muito, viu?” Ele me pareceu meio desconcertado, mas achei que a dose foi pequena, fraca mesmo. Então aumentei a carga: “Estamos sem Príncipe dos Poetas. Paulo Bomfim morreu e a cadeira está vazia. Por que você não se candidata?” Ele me respondeu: “Depois de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Guilherme de Almeida... Sabia que após a morte de Guilherme de Almeida, passaram-se anos até que alguém, no caso, Paulo Bomfim, se apresentasse?... E agora, quem vai ter a ‘cara de pau’ – e eu digo ‘cara de pau’ mesmo – de achar que pode ser ‘Príncipe dos Poetas’?” 

A conversa foi curta, mas saí impressionado com o Poeta, com quem já tive sérias divergências e, contudo, ele sempre me tratou cordialmente. Não menti. Leio suas crônicas e poemas e admiro sua intelectualidade. Como poucos, ele tem domínio da escrita e memória prodigiosa. Confesso que esse encontro me deixou arrependido de um dia já ter brigado com o Poeta. 

FILIPE

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

PEQUENAS VERGONHAS


Nossas vergonhas nem sempre são públicas e muito menos devem ser publicadas. De minha parte, já passei boas vergonhas – algumas até simpáticas. A seguir, devo citar umas três ou quatro, mas o raro leitor não terá sua curiosidade plenamente satisfeita, porque ainda tenho alguma lucidez.

Por exemplo, por um sem-número de vezes, um motorista para, interrompe minha caminhada e minha leitura, e, com um papel na mão, talvez uma nota fiscal, pergunta cheio de aflição: “Por favor, onde fica a rua Humberto Beretta?” “Rua Humberto Beretta...”, fico matutando enquanto o motorista aguarda ansioso. “Olha, eu moro aqui há pouco tempo e não conheço nada na redondeza”. Ou: “Ih, moço, eu não sou daqui!...” Mentira. Moro há dez anos neste pedaço e a Humberto Beretta fica há duas quadras de casa. [Será mesmo?...] Houve uma vez que atendi com toda convicção a um motorista. Mandei-o cruzar a cidade, seguindo sempre à direita até seu destino. Eu tinha tanta certeza e fui tão convincente, que senti até certo orgulho de minha sabedoria. Só uns passos adiante é que me dei conta de que o endereço procurado pelo desditoso motorista ficava a menos de cem metros de sua pergunta.

Outra. Na escola, sempre peguei a fila com a molecada para merendar. Mas houve um tempo que me cansei de ficar na fila. Amparado pelas minhas cãs e alegando a necessidade de me antecipar aos alunos na volta para a sala de aula, cismei de ir direto ao balcão de serviço. Fiz isso por algumas vezes até que uma merendeira recém-chegada me disse: “Professor tem que respeitar a fila!” Fiquei mais envergonhado do que chateado e dali por diante nunca mais furei fila.

Mais uma. A minha mais recente vergonha foi na igreja. Era Dia dos Padres e havia uma homenagem ao sacerdote no final da missa. Um senhor pegou um papel, empostou a voz e deitou falação. Houve uma pausa e eu pensei que já tivesse terminado. Estranhei o fato de todo mundo ficar quieto e pensei: “Que chato... Ninguém aplaude?!...” E tomei a inciativa começando a bater palmas sozinho. Me veio um calafrio, mas já era tarde e eu tentei terminar o serviço mal começado. Pus-me de pé e aplaudi com mais vigor. Somente eu, porque o homem ainda não havia terminado a leitura. No final, é claro, houve os esperados aplausos. Desenxabido, fiquei aguardando lá fora. Nisto, veio um senhor, já idoso e muito simpático, e começou a falar comigo sobre a chuva que começava e o animava com seu pomar. A chuva, dizia ele, vai aumentar a produção figos. Eu lhe disse que tenho duas figueiras que nunca deram nem flor. Ele me orientou a podar e adubar. “Ah, posso pôr o adubo ‘FCK’?”, perguntei como alguém que entende muito bem de adubos. Ele: “Bom, esse aí eu não conheço, mas ponha o ‘NPK  20 - 5 - 20’”. Somente mais tarde é que me dei conta de que não existe nada com o nome de ‘FCK’.

FILIPE

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

PATRULHEIROS


O assunto seria outro e eu nem sabia ao certo de que eu trataria na postagem de hoje. Estava propenso a falar de uma tristeza profunda que me abate nestes tempos inglórios, quando nosso horizonte tem sido cada vez mais obscurecido por alguns usurpadores – esses “seres das trevas” ora no Poder. E além disso, sendo já quase sexagenário, descobri que, a partir desta data, terei de trabalhar por mais ‘956 dias’ para requerer aposentadoria. Estou triste por essas e outras coisas, que hão de passar.

Mas, terrificado pelas notícias sempre assombrosas que brotam na tela do computador, tento espairecer, escrevendo bobagens neste blog. E assim aconteceu há duas quinzenas, quando publiquei o texto “Na Sala dos Professores” – uma crônica bem-humorada, mas que despertou inesperada fúria em alguns colegas de trabalho.

Talvez não venha ao caso, mas preciso explicar aos meus “algozes” que ‘crônica’ é algo bem diferente de ‘artigo de opinião’ ou ‘reportagem’. Por tempos considerada um gênero literário menor, de pouco prestígio, foi Rubem Braga quem deu à crônica certa nobreza. Nela, o autor não tem compromisso com a veracidade dos fatos e sua narrativa é livre, quase sempre satírica, irônica e vem lambuzada de humor. Ah, mas é preciso ter senso de humor e alguma argúcia para entrar no ‘clima’. Não tendo uma coisa nem outra, é melhor partir para o noticiário político ou para o jogo de dominó ou, quem sabe ainda, procurar uma pista de ”dança tântrica”. Prestigiada ou não, e pela sua irreverência, a crônica é meu gênero favorito, que leio vorazmente e tento rabiscar algumas.

Mas, talvez por desconhecimento e não por maldade, alguns professores não me entenderam e, de forma velada e cruel, atacaram-me impiedosamente. Tachado de antiético, ridículo e outras belezuras, fiquei estupefato. Contudo, para desgosto daqueles, outros me apoiaram, fazendo-me imerecidos elogios.

Sinal dos tempos, uma ministra, aquela que esteve num pé de goiaba, falando com Jesus, recentemente baixou instrução proibindo publicação de livros infantis em que há estórias de fadas, duendes e bruxas. Pela mente doente daquela senhora, todo o rico fabulário que coloriu a infância de inúmeras gerações deverá ser banido. Sendo assim, Pequeno Polegar, Branca de Neve, A Bela Adormecida e tantas outras eternas obras de referência deverão ir ao fogo que, espera-se não ser eterno.

Censurado ou não, devo continuar publicando minhas crônicas aqui. Convido ao raro leitor, se ainda o tenho, que as leia criticamente. Não tenho intenção de ferir ninguém e, caso alguém se sinta atingido, que use a caixa de comentários. Aproveite-a, também, para apontar meus muitos erros de Língua Pátria, e eu ficarei agradecido por tão generosa intervenção. Mas sem patrulhamento, por favor!

FILIPE

sexta-feira, 19 de julho de 2019

NA SERRA DA MUTUCA


Numa tarde ensolarada deste inverno, acompanhado de meu irmão caçula e de seu filho, fui ao lugar onde ficava a casa de Antônio Vermieiro – um caboclo que conheci já velho e escarpado pela dura lida do campo. Naquele recanto, sem luz elétrica nem água encanada, seu Antônio viveu por anos com a esposa dona Fiinha – mulher “sem leitura”, mas uma das criaturas mais argutas que já vi.

Subindo sempre, percorrendo pequeno trecho de bosque permeado por furnas de pedra, chegamos às ruínas da antiga edificação.  A casa, há tempos demolida, deixou um teimoso alicerce de pedra bruta, que insiste em delimitar o contorno de cada cômodo: a sala, onde seu Antônio ouvia um velho rádio de pilha, os quartos, uma despensa e a cozinha, que ficava um pouco abaixo do corpo da casa.  Um montinho de terra é o que sobrou do fogão a lenha onde dona Fiinha assava saborosas broas de fubá. Lembro-me de que, em certa manhã, eu tomava chimarrão e ela me ofereceu café com um pedaço daquela broa. Como não bebo café, ela me deu água com açúcar, que aceitei. A partir de então, em todas as minhas madrugadas, quando tomo água doce antes do chimarrão, eu me recordo da simpática dona Fiinha.

Percorrendo as cercanias da antiga casa, encontramos vestígios da engenhoca que seu Antônio usava para fazer garapa de cana para seu café (o açúcar era reservado às visitas). Encontramos também o que sobrou d’uma chaleira, uma foice e algumas enxadas. Eu quis trazer comigo uma enxadinha, não apenas como recordação, mas para usá-la mesmo. Esse cacumbu, que para mim é uma relíquia, foi abençoado pelas mãos daquele montanhês, um dos últimos remanescentes dessa estirpe de bravos camponeses. Do pomar que ele cultivou, ainda restam frondosas mangueiras, um pé de cacau, limoeiros, bananeiras e um abacateiro.  

Em êxtase, meu irmão filmava, fotografava e explicava cada detalhe: “Aqui havia um chiqueiro, ali um galinheiro, lá o paiol, e estes paus eram os troncos do engenho.” Mais:  “Eu tinha um cavalinho, e o padrinho amarrou uma corda nele para tocar a engenhoca. Eu ficava montado no cavalo dando voltas enquanto ele ia pondo cana na moenda para fazer garapa”. Depois: “Cara, eu sou um Peter Pan... Sou um Peter Pan!”, citava o famoso personagem que não aceitava abandonar a infância. E a infância desse irmãozinho foi realmente fantástica junto àqueles seus padrinhos. E assim, ciscando aqui e ali, o caçula ia removendo espessas camadas de três décadas de história, revendo um passado sempre presente em sua vida. Enquanto isso, tal qual o desbravador Indiana Jones, meu sobrinho abria caminho com um machado improvisado.  

Numa de minhas ultimas visitas àquela família, encontrei dona Fiinha bastante doente. Seu Antônio, preocupado com ela porque não se alimentava, desceu até a vendinha e comprou alguns quibes para a esposa. “Eu busquei umas quibas, mas nem isso ela quis”, disse-me desacorçoado. Acamada e com doença grave, aquela mulher nunca reclamou de dores e partiu enquanto rezava. Eu soube com atraso da morte dela, e subi para visitar o amigo, que estava desolado. Lembro-me de sua expressão: reclinado e em silêncio, aquele homem olhava fixamente o chão.

Pouco tempo depois, seu Antônio seguiu sua companheira. Estava sentado, conversando com um parente, quando um estranho silêncio interrompeu o assunto. O companheiro pensou que seu Antônio cochilasse, mas não. Ele partiu tão serenamente como viveu.

FILIPE

sexta-feira, 5 de julho de 2019

NA SALA DOS PROFESSORES


Eu estava na sala dos professores e cuidava da grossa burocracia: fechamento de notas, contagem de faltas, preenchimento de fichas etc. Alguns professores corrigiam provas, outros mexiam no celular e havia quem não fazia nem uma coisa nem outra, apenas matracava falando da vida alheia – como todos gostamos de fazer, inclusive as almas mais santas.

Esse é sempre um momento mágico que vivencio a cada fim de semestre. A sensação do dever cumprido se mescla a certa frustração de não se alcançar determinados objetivos. Mas, a despeito de pequenos dissabores, o recesso que se avizinha refresca corpo e mente fatigados de tantas lousas.

Uma professora, com mais maquiagem do que beleza – melhor do que eu, sem maquiagem nem beleza – reclama do marido, que ronca a noite toda e não a deixa dormir. Por isso as olheiras. Um professor gorducho chega esbaforido, reclamando de que no pátio há três ou quatro alunos. “O que esse povo vem fazer aqui hoje, meu Deus?! Acabaram as aulas, e com esse frio...” “Vieram fazer prova de recuperação!”, responde outro. Uma professora liga o computador e põe uma música suave quando alguém pergunta: “É Bach?” “Não! É Rossini!”, corrige. Para mim poderia ser Bach, Rossini ou Puccini porque, embora eu aprecie música clássica, não consigo identificar sequer o gênero. “La Traviata, de Verdi”, exclama tonitruante um convicto professor. “Que horror! Expliquei todo dia as formas verbais particípio, gerúndio e infinitivo, mas metade da classe ainda erra... Uma aluna chegou a confundir ‘gerúndio’ com ‘girino’! Até quando vou ter que bater nisso?!”, desabafa a professora com uma pilha de provas ainda por corrigir. “Gerúndio... Acho que isso é de Português. Estou enganada?...”, pergunta alguém – que ficou sem resposta.
  
No outro dia meu serviço já está em ordem e aguardo o fim do expediente. Pego um livro e começo a ler, mas não dá para ser na sala dos professores. Aquele burburinho de entra e sai não permite a mínima concentração. Vou para uma sala vazia e singro solitariamente aquelas páginas – doce oceano. De repente, chega alguém e sai rapidamente sem dizer palavra. Não quer me incomodar e eu fico agradecido.

Mais tarde, no fim da jornada, encontro uma colega que fez a caridade de ajudar um novato atrapalhado no preenchimento dos diários de classe.  “E aí, refez os diários dele?”, perguntei. “Sim. Daqui para frente é com ele. Eu fiz o que pude. Ensinei e pedi a ele que comprasse um caderno de caligrafia. A letra dele, coitado, é sofrível. Ele disse que comprou o caderno e já está praticando, e que sua letra vai ficar bacaninha. Vamos ver.” Essa professora estava feliz por ter praticado uma boa ação. Mas quando já nos despedíamos, e desejando ‘boas férias’, ela confidenciou: “Olha, eu quase morri de vergonha. Só eu, porque o professor ainda deu risada da situação.” “O que aconteceu de tão trágico?”, eu quis saber. Ela: “Não é que, enquanto eu dava as últimas orientações àquele professor, a sala cheia, e ele me solta um baita peido?!”

FILIPE

sexta-feira, 21 de junho de 2019

CARTA AO EREMITA


Artigo publicado no jornal amparense ‘A Tribuna’.
  
Caro eremita Vanderlei de Lima, paz e bem!

Num texto recentemente publicado neste jornal, o senhor afirma inicialmente: ”A moral católica ensina que, ao contrário de algumas ‘doutrinas errôneas’, é lícito matar alguém em defesa própria”. O senhor continua: “(...) é lícito matar quando um agressor ameaça tomar ou destruir bens de grande valor, não havendo outra maneira de pará-lo”. O senhor vai além: “(...) a legítima defesa é um direito que se torna grave dever, caso seu descumprimento possa expor o próximo a sérios perigos, inclusive de vida. Nesse caso, há que se impedir o injusto agressor, ainda que se recorra às armas, letais ou não”. E o senhor conclui: “Para se cumprir essa nobre missão de defender a vida de terceiros, há a chamada ‘graça de estado’”.

A “graça de estado” eu desconheço. Talvez seja uma espécie de salvo-conduto para matar impunemente, penso eu. Mas, com “graça” ou sem “graça”, confesso que fiquei animado, lendo esse seu ensaio tão estimulador dos meus instintos nada pacíficos. Há por aí um sem-número de perigosos gangsteres pondo em risco não a minha vida, mas a de muitos deserdados deste mundo. Todavia, o temor de me tornar um deserdado no outro mundo, além deste do qual nada herdei, é que me faz um homem contido, para não dizer acovardado. Porém, deixando de lado minhas firulas linguísticas, volto a seu texto no intuito de desenvernizá-lo.

Caro eremita, embora suas asserções sejam baseadas em trechos do Catecismo e em determinados autores católicos conservadores, elas depõem contra o Santo Magistério. A Igreja de Cristo, a quem o senhor diz servir num eremitério, tem como premissa maior a vida, e jamais a morte. Disso dão testemunho os santos mártires, que abdicaram de sua vida, doando-a. Mas se o testemunho dos nossos mártires não lhe bastam, detenha-se sobre esta passagem das Sagradas Escrituras: “Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a sua túnica, dá-lhe também o manto!” Não lhe parece bastante cristalina essa sentença encontrada no evangelho de Mateus?
  
Posto que movido pela sanha militarista que obscurece e assanha a nação, o nobre eremita, que me parece refratário aos ensinamentos sagrados, fica convidado a refletir sobre a luminosa frase de um militar – que não era um simples “capitão reformado”, mas um respeitado marechal.  Nas suas incursões pelo sertão, dizia Cândido Rondon aos seus comandados: “Morrer se preciso for, matar nunca!”

FILIPE

sexta-feira, 7 de junho de 2019

HONESTIDADE


“Honestidade não é favor, mas dever. Sejamos honestos em tudo!”

A frase acima foi rodapé de uma avaliação aplicada aos meus alunos nesta semana. Há tempos, venho insistindo na temática da ‘humildade’, ‘empenho’ e ‘honestidade’, que são valores fundamentais da cidadania. A aprendizagem requer humildade, o reconhecer-se ignorante num assunto. Somente assim e com muitas interrogações é que podemos nos apossar de algum conhecimento. Mas é preciso empenho. Um matemático, dono de uma plataforma digital que prepara legiões de jovens para concursos e vestibulares mundo afora, disse em entrevista, que a preparação decente de um candidato exige a resolução de ao menos dez mil exercícios. Claro que isso varia de acordo com o sujeito. Há alunos que aprendem determinado conteúdo em apenas uma aula; outros, no entanto, passam o ano sem saber sequer começar, e ainda vêm com a pergunta: “Onde vou usar isso?” Resposta: “Em lugar nenhum, porque você não aprendeu!”

Tudo bem que para aprender é preciso doses variadas de humildade e empenho. Os gênios, que são raros, estão quase dispensados desses atributos. Mas... e a honestidade? Ah, desta não se prescinde. Todos temos a obrigação moral de ser honestos. Mas honestidade não se reduz a ser ‘bom pagador’, não. Temos que ter honestidade em outros aspectos menos visíveis de nossa vida. Posso pagar o pó de café que peguei emprestado da vizinha, devolver a caneta ao colega, guardar e depois devolver os óculos da dona Maria etc. Posso até entregar religiosamente o dízimo, se religioso eu for. Contudo, talvez eu ainda não seja honesto. Explico.

Um ‘‘cidadão de bem’’ que apoia as trapaças do ‘capiroto’, tais como: desobrigação do uso de cadeirinhas  em automóveis para transportar crianças, armamento da população, desativação de radares nas rodovias, desmatamento e abertura de garimpos na  Amazônia, extinção de bolsas universitárias e corte de verbas da educação etc. etc. etc., não é ‘cidadão de bem’ coisíssima nenhuma, mas um tremendo  de um (...).

Sempre que vejo imagens de um júri, quando o tribunal está repleto de juristas, todos de ar grave, solene, ostentando valores morais e grandes saberes – uns deles quase divinos – penso: “São honestos? Será que alguém ali colou ou tentou colar na escola? Avançou sinal vermelho? Atropelou e fugiu? Escapou de multa? Sonegou impostos? Sonegou direitos sociais?...” Isso me faz lembrar um antigo conto que li na infância, em que um macaco enrolou o rabo, sentou-se em cima e começou a zombar do rabo dos colegas. Mas, infelizmente, ali não há macacos apenas zombando do rabo alheio.

Encontradiça em variados e nos mais inusitados lugares, a desonestidade é praga inextinguível. No momento devido, devo registrar neste “confessionário” alguns desses arroubos meus, dos quais sempre me penitencio.

FILIPE

quinta-feira, 23 de maio de 2019

MAMÃE, AOS OITENTA


É, mamãe já está ficando velhinha. Não pelos oitenta anos que completa neste 23 do mais mariano dos meses. Oitenta anos nem são tantos assim, mas há tempos mamãe deixou de ser a lépida jovem que conheci no alvor de meus dias – hoje vivendo reclusa em seu cantinho. Antes do amanhecer, contudo, ela já se levanta e começa a fazer suas muitas preces. Depois, apoiando-se na parede, caminha até o banheiro. Feita a toalete matinal, empreende uma “longa caminhada” até a varandinha da sala. Ali, sentadinha num sofá, espera pacientemente o abraço morno de um sol ainda sonolento, cujos longos braços perpassam os eucaliptos na encosta do “morro do Tatão Tibúrcio”. Aquecida, ela fixa o horizonte, apertando os olhos num aparente esforço para se manter desperta, mas sucumbe a um breve cochilo quando a caneca de café com leite e bolacha chega pelas mãos do Zezé, seu fiel esposo e escudeiro incansável.

Quando nasci, mamãe era uma jovem de vinte e dois anos – uma adolescente! Sendo um dos mais velhos da prole, pude conviver com ela em seu pleno vigor físico. Muitas vezes a jovem mãe reunia os filhos para o banho, trocava-os e saía para um passeio à casa de minha avó Jacira ou à casa de uma de suas muitas comadres. Mamãe atravessava pastos, passava sob cercas de arame farpado, sobre pinguelas. Não tinha medo: nem de boi nem de cão nem de nada. Poderia ter um rebanho no seu caminho ou uma matilha ladrando, que ela nunca desviava de seu curso. A intrépida senhora não parava nem olhava para trás, indo apressada e a passos firmes.

Numa de suas visitas, ela me escolheu como companhia. Saímos para a casa da dona Bilinha numa manhã de sol, após uma chuvarada. Chegando ao arraial de Vilas Boas, entramos à esquerda e tivemos que passar num riacho com águas bastante revoltas. Estava difícil, mas mamãe quis arriscar a travessia, segurando-me pelo braço. Nisto, veio a mulher do seu Dirceu Paiva, que morava próximo. Era uma senhorinha já ‘quase’ idosa, mas muito esperta. Chegou rápido e, apoiando-se num porrete, atravessou comigo ao colo.  Depois deu a mão à minha mãe e passou com ela também. Nunca me esqueci dessa cena, desse gesto, mas não me lembro do nome daquela doce criatura.

Noutra ocasião, fomos visitar a dona Neusa do Zé Lúcio, comadre de minha mãe, que morava no alto de uma montanha. Saímos ao meio-dia e voltamos já bem tarde, descendo a serra com noite escura. Mamãe veio conversando comigo pela estrada e eu tentei falar de alguns dramas existenciais, que já me acometiam nos meus oito ou nove anos. Lembro-me deter perguntado: “Por que as pessoas são tão desonestas?” Perguntei sem ter a mínima ideia do que seja ‘desonestidade’, mas pelo prazer de usar uma palavra nova, que ouvi em algum lugar e achei interessante. Não lembro o que mamãe respondeu. Talvez apenas tenha rido de meu incipiente pedantismo.  

Também naquele tempo, mamãe gostava de cultivar um minúsculo jardim no terreiro de casa. Ao lado direito da porta da sala, num rústico canteiro, ela plantava moça-velha, bonina, crista-de-galo e outras flores silvestres, que não se veem mais. Na sala, sobre a soleira da janela, havia um pequeno vaso de duas-horas. Toda tarde, desabrochavam-se flores que, no dia seguinte, já murchas, mamãe cortava com uma tesoura.

Foram-se as visitas, foram-se as flores, mas ficaram as memórias – agora ainda mais perfumadas no octogésimo aniversário de mamãe.

FILIPE

sexta-feira, 10 de maio de 2019

FITA DUREX


Já escrevi neste espaço sobre a serventia do ‘prego’ – um dos grandes inventos da humanidade. Sem o prego, a vida dos antigos deveria ser bem difícil. Mais complicado ainda terá sido viver sem o ‘arame’ – o primo compridão e magricela do prego. Com um prego, um pedaço de arame e um tiquinho de inventividade, é possível fazer engenhocas formidáveis. Penso que o homem jamais pisaria na Lua sem que se inventassem primeiro o prego e o arame. Depois deles veio o parafuso, mas este é um sujeito sofisticado, meio metido até. Prefiro falar de coisas mais simples e discretas.

O primeiro prego que conheci ficava na parede do quarto de meu pai, onde ele pendurava um velho cinto de couro vermelho. O ‘corrião do papai’, conforme a ele nos referíamos, tinha a nobre função de lhe amarrar as calças, mas costumava ser usado também para “alguns acertos” com os filhos mais atrevidos.

Por falar em arame, no meu tempo de pequeno ele era bastante raro. As nossas cercas, que eram feitas de bambu, amarrávamos com cipó-são-joão – mais resistente do que seu congênere, o cipó-tripa-de-galinha. Hoje já não se veem nas casas rurais nenhuma cerca amarrada com cipó, arame, nem fixada com pregos. A modernidade expulsou cipó, prego, arame... e até o soberboso ‘parafuso de rosca soberba’.

Nostalgias à parte, preciso exaltar outra obra-prima do engenho humano: a fita adesiva ‘Durex’ (marca registrada, mas que escreverei em minúsculo). Gente, o que faríamos sem o durex? Eu seria um homem triste! Tenho alguns baldes rachados, mas perfeitamente funcionais graças ao durex. Uso durex em quase tudo porque, diferentemente do arame, ele é suave (não me fere as mãos) e o acabamento é perfeito. O plugue do meu telefone quebrou. Então, colei um durex e não precisei substituí-lo. O aparelho telefônico tinha uma campainha estridente. Para regulá-la, seria preciso procurar o manual e lê-lo – um trabalhão danado. Muito mais cômodo foi colar uma pequena fita durex no orifício emissor e ficou tudo resolvido.

Mas cuidado! Há coisas que não se resolvem com prego, arame nem durex. Uma roupa que se rasga, por exemplo. Aconteceu comigo. Minha calça estava bastante velha e puída, vindo a rasgar subitamente – sorte que em casa. Por um nada eu teria entrado na ‘moda de calça rasgada’ perante os alunos. Chegando ao portão de casa, quando fui pegar a chave no bolso... um rasgão! Meu Deus, que perigo! E esta já foi a segunda vez que isso me ocorre. Melhor ficar esperto.  Minha mãe sempre gostava de dizer: “Terceira vez é sinal de forca!”  Nunca soube ao certo o que ela queria dizer com isso, mas é bom ir se prevenindo, porque economia tem limites.

FILIPE

sexta-feira, 26 de abril de 2019

A ÚLTIMA CRÔNICA


Na manhã do último domingo, recebi o jornal e vi uma chamada: “A minha última crônica”, de Antonio Prata. “Como pode o meu colunista preferido parar de publicar suas crônicas?...”, pensei e apressei-me a lê-la.

As crônicas de Antonio Prata (escreve-se sem acento) me remetem a um passado muito distante. Essa lembrança não está associada à literatura, mas a uma coisa muito doida: os pratos de comida de minha infância. Nem sempre havia carne nas nossas refeições, porque, nas ‘panelas pobres’, as tais “misturas” eram artigo de luxo. Há até um ditado meio besta, que diz: “quando pobre come frango, um dos dois está doente”.

E volto à ‘lembrança’. Na hora do ‘rango’, pegávamos arroz (quando tinha), feijão, canjiquinha (fiel companheira), angu e a tal mistura, que poderia ser torresmo, um pedacinho de carne ou até mesmo um ovo frito – que costumava ser dividido para alimentar mais bocas. Começando pelo irmão mais velho, todos cumpríamos um ritual que parecia ser genuinamente nosso. Comíamos primeiramente o arroz, o feijão, a canjiquinha etc. A ‘mistura’, que era a iguaria, deixávamos por último. Limpado o prato, vinha o deleite final: íamos desfiando suave e solenemente o pedacinho de carne, fazendo daquele momento uma apoteose; se fosse ovo, comíamos primeiramente a clara, desnudando sua gema e a tornando uma autêntica pepita de ouro. Dava gosto ver o irmão mais velho no ofício: um perito nessa “ourivesaria”.

Aqueles tempos são velhos e nada têm a ver com a atualidade. Na escola em que trabalho, por exemplo, vejo pratos cheios de comida, recheados de carne, sendo despejados no lixo. Dói-me ver aquilo. De todos os gêneros alimentícios, a “proteína animal’ é o mais sagrado, porque não se colhe filé de frango ou alcatra em árvores. Esse alimento, é imperioso refletir, tem origem na dor do animal que foi abatido. Não se deve, portanto, desperdiçar alimento algum. Muito menos a carne, que é fruto de um ‘sacrifício’, quando a morte se reverte em vida.

Voltando ao meu escritor favorito e numa rotina já antiga, os seus textos deixo sempre reservados para o final da semana. Na sexta-feira, quando encerro minha jornada na escola, venho caminhando embalado pela crônica do domingo último.

Mas a crônica do Antonio Prata que li hoje não poderia ser a ‘última’. Aborrecido, mandei mensagem para o jornal, e muitas outras mensagens também chegaram. Felizmente, Antonio desistiu de desistir. A vida anda tão chata e as poucas coisas que nos animam não podem desaparecer assim, tão inexplicavelmente. Que bom que no meu jornal ainda tem uma “mistura”!

FILIPE

sexta-feira, 12 de abril de 2019

A CONVERSÃO DO CORAÇÃO


Pulicado no jornal ‘A Tribuna de Amparo’, edição de hoje.

Nas homilias proferidas pelos sacerdotes, sobretudo na Quaresma e mais particularmente quando se aproxima a Festa da Páscoa, é comum a exortação para a “conversão do coração”. Para que os cristãos católicos possam participar mais dignamente do Tríduo Pascal, faz-se necessária uma mudança de atitude, um ‘voltar-se para Deus’ – ensina-se.

Mas o que é essa ‘conversão do coração’, esse ‘voltar-se para Deus’? Essas palavras podem perder significado quando sou indiferente ao sofrimento de meu próximo. Um ‘coração convertido’ tem que ser benevolente, generoso, paciente e compassivo. É preciso olhar com mais carinho as pessoas que nos cercam: um colega de trabalho, um colaborador, um benfeitor, um vizinho ou o empacotador do supermercado. Reconhecer que, embora tenhamos sempre vontade de acertar, mas limitados que somos, erramos. Mas, cuidado: a soberba costuma vir travestida de impaciência! A “um coração convertido” não se permite a reprimenda pública a um irmão em erro. A correção fraterna, que todos somos obrigados a praticar, deve ser discreta e feita segundo critérios cristãos. Já o corretivo como espetáculo é típico dos pagãos.

A ‘conversão do coração’ é sempre uma proposta da Campanha da Fraternidade, e neste ano tem como tema “Fraternidade e Políticas Públicas”. Espera-se que, com isso, nossa Diocese se engaje mais nas questões sociais. Temos em nossa cidade um contingente crescente de moradores de rua e seria oportuna a criação de uma pastoral para dar assistência espiritual e alguma dignidade a esses irmãos deserdados, cobrando das autoridades as tais ‘políticas públicas’. Uma missa campal com os ‘moradores de rua’ seria um bom ponto de partida, porque ‘os preteridos da sociedade são os preferidos do Reino’.

O Papa Francisco e a CNBB conclamam os fiéis a nunca se omitirem diante dos flagelos sociais. Prega o Bom Papa, que a ‘Igreja deve ‘sair da sacristia e pisar a lama das periferias existenciais’. Então é preciso descer do “Monte Tabor” e amassar o barro na planície, onde está o povo que sofre e espera. Mas os pronunciamentos pontificais nem sempre reverberam em nossos “inconvertidos” púlpitos, infelizmente.

FILIPE

sexta-feira, 29 de março de 2019

EU, EMPREENDEDOR


A aula fluía suavemente. O conteúdo: juros simples e compostos – assunto que desperta a curiosidade até de quem não gosta de estudar e que costuma lascar a fatídica pergunta: “Onde vou usar isso?” –  que respondo de bate-pronto: “Em lugar nenhum. Onde você usaria a rica Literatura Brasileira, os conhecimentos de Geografia, os tópicos de História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea?...” Mas não. Um aluno, dos melhores que tenho, perguntou: “Professor, você aplica no Mercado Financeiro, no Tesouro Direto?” “Não, não aplico e nem tenho grana para isso.” “Mas não precisa muito... E quem sabe matemática pode ganhar muito dinheiro em aplicações!” “É, mas já digo por que não mexo com isso.” [Deixo para o último parágrafo a explicação dada ao aluno]

Desde minha infância, tive alguma preocupação em ganhar dinheiro, em ser independente. Aos dez anos, fiz uma parceria com uma vizinha, a dona Angelina Tibúrcio. Eu colhia mamona e ela fazia azeite, que vendíamos e dividíamos o dinheiro. Deu certo enquanto havia mamoneiras. Tempos depois, quando eu já tinha uns doze anos, colhi sementes de capim-jaraguá e de capim-gordura. Cortava os cachos, amontoava-os para que as sementes se desprendessem. Depois ensacava e vendia tudo para uma fazendeira da cidade. Lembro que levei uma charrete lotada com sacos de semente. Mas quando atravessei o rio e a sacaria entrou em contato com a água, pensei: a semente molhou, aumentou o peso e não me parece justo vender assim. Chegando à fazenda, a dona veio até o alpendre e me pediu para seguir para seu depósito, onde a semente seria pesada. Eu falei que passei no rio e a semente molhou. Ela disse não se importar com isso, porque a diferença seria pequena. Entreguei a mercadoria e recebi, feliz, meus suadíssimos caraminguás.

Mas meu “empreendedorismo” não ficou apenas em sementes e azeites. Frustradas ou bem-sucedidas, tive outras experiências que ainda devo registrar neste espaço. Mas uma das minhas mais desastradas empreitadas foi quando me meti a comerciar ovos, que comprava de alguns tios e vizinhos, especialmente da dona Caetana. Esta bondosa senhora tinha dezenas de galinhas e me reservava toda a sua produção. Em determinado dia da semana, antes de sair para o ginásio, eu passava na casa dela, enchia um cesto e levava para a venda do Sr. Antônio Moreira, em Guiricema. Ele contava os ovos, examinando um a um, vendo se não estava com a casca ‘trincada’ etc. Não passava uma vez sem que ao menos um ovo fosse descartado. E meu lucro, que era muito pequeno, ia para o ralo.

Um dia, porém, desisti do comércio de ovos. Isto se deu quando ia levando meu cesto cheio, pesado, e duas moças, que também estudavam no ginásio, me ofereceram carona. Aceitei. Segurando com muito cuidado o cesto, subi na charrete e me ajeitei ao lado delas. O cavalinho disparou naquela estrada cheia de buracos. Nem o cavalo nem as moças sabiam da minha aflição. Foram tantos solavancos... O cesto ia, voltava e quase escapava de minhas mãos. Enfim, chegamos à cidade. Agradeci, desci da charrete e caminhei mais um pedaço até a venda do seu Antônio. Pus o cesto no balcão e não havia surpresa: vários ovos quebrados empapando os que se salvaram. O prejuízo foi enorme. Quebraram-se os ovos e quebrei eu. Falido, nunca mais comprei nem vendi ovos.

Ah, sobre o aluno lá em cima, eu disse a ele que apenas algumas “raposas” conseguem se dar bem no Mercado Financeiro. São pessoas que têm informações privilegiadas do Governo. Não à toa, certos políticos enriquecem sem que possam ser presos como ladrões – que de fato são.

FILIPE

sexta-feira, 15 de março de 2019

CHOVE LÁ FORA




Chove lá fora e eu aqui tentando escrever um texto, que pretensamente chamo de crônica.

A três metros de mim, uma samambaia abriga uma família de pombinhos silvestres. Esta é a segunda vez que eles ocupam o espaço. Na primeira vez, como registrado aqui, ajudei o casal a fazer o ninho, que aceitou sem, contudo, me agradecer. Também desta vez eu tentei, mas a minha ajuda foi recusada pelos ‘mal-agradecidos’ columbinos. As folhas, que ajeitei meticulosamente no pratinho de plástico, foram solenemente rejeitadas, sendo descartadas uma a uma.

No ninho, os dois filhotinhos já emplumes têm o sono velado pela mãe, que, feito um anjo da guarda, fica a postos na “cabeceira”. Tenho vontade de fotografá-los, mas o flash vai assustá-los. E eu não quero e nem posso perturbar o sono desses meus dóceis ‘inquilinos’.

Um carrilhão anuncia ‘vinte horas’. Estou apenas no começo deste texto, mas vou dar uma enrolada e verei se dá para publicar algo.

No jardim, há capim-santo, manjericão, gengibre, açafrão, um pequeno cipó de maracujá e... acho que é só. Ah, tem uns dois pés de couve, que não colho há tempos. Lagartas e lesmas resolveram cuidar dessa minúscula horta e eu não tenho pato que lhes dê cabo. Havia um sapo morando escondido ali, mas há muito tempo que não me manda notícias. Tá tudo meio bagunçado, mas meu jardim é como minha gaveta, minhas coisas e minha cabeça: uma barafunda.

Muita gente vê e elogia o jardim, mas fico meio desconfiado. Depois que observei os elogios falsos que se veem aos monturos no ‘feice’, fiquei cabreiro e passei a não dar muita bola, nem para críticas e muito menos para essas mesuras.

Mas o meu jardim é encantatório. Há nele um arbusto que não se encontra em outro jardim: uma mamoneira que floriu abundantemente. Certa vez, peguei semente dessa espécie no Taquaraçu, um bairro de minha cidade natal, que é conhecido como “Tacuruçu”, e que nos meus tempos de criança era tido por má fama. A “má fama” não vinha de seus habitantes, que sempre foram boníssimos, mas de sua pobreza. A pobreza sempre foi causa de preconceito da grã-finagem. Cresci ouvindo isto: “pobre é preguiçoso e rico é trabalhador”. Naquele tempo, o ‘Tacuruçu’ era o bairro dos pobres, e seria para Guiricema o que a “Rocinha” é para a Cidade Maravilhosa.

O carrilhão dá ‘nove badaladas’ e volto os olhos para o jardim. Daqui, donde estou, vejo as folhas molhadas da mamoneira brilhando à luz da rua. Mas, na penumbra, não vejo seus cachos cor de fogo nem suas flores: brancas, belas e efêmeras. Mas já não chove lá fora. Porque a chuva, como as flores de meu jardim, é bela e efêmera.

FILIPE

sexta-feira, 1 de março de 2019

VIOLÊNCIA JUVENIL


Hora do recreio. Entro na fila da merenda na escola em que trabalho. Nas mãos, tenho um jornal com artigo de Suzana Herculano-Houzel, uma renomada neurocientista que deixou as universidades brasileiras para se radicar nos EUA, onde desenvolve pesquisas em sua área. Seu último texto versa sobre algo que domina como poucos: isquemia cerebral. Tiro os olhos do jornal e tento enxergar o balcão de serviço da cozinha, que continua longe de mim. De uns tempos para cá, tenho observado um fenômeno que talvez desperte algumas mentes mais argutas, como às de sociólogos: enquanto a fila da cantina da escola encolhe cada vez mais, a da merenda espicha consideravelmente. Parece que a grana da moçada está miúda ultimamente. Volto à leitura.

De súbito, algo faz meus olhos se deslocarem do jornal para a “zona de dispersão”, onde pratos cheios de macarrão com molho e frango desfiado tomam rumos diversos. Uma professora esbraveja com alguém que eu não conheço, e que parece não ouvir ou não querer escutar a reprimenda. Em pouco tempo eu soube do que se tratava. Um rapaz, de quase dois metros, espancava um garoto com dois terços de seu tamanho. Em vão foram os apelos para que ele deixasse o moleque, que, estirado no chão, era socado com volúpia diabólica. A custo, o algoz, um tipo ‘mano‘ enfiado num moletom com capuz, foi retirado pela professora e conduzido à direção. A vítima, que nem pôde merendar, foi para uma sala onde permaneceu à espera dos pais, que logo chegaram para tomar as urgentes e necessárias providências contra o agressor.

Outro caso, infelizmente ainda mais grave do que aquele, aconteceu noutra escola do interior paulista. Um professor com mais de sessenta anos foi covardemente agredido por um adolescente. A imagem que vi na tela de um celular era a de um homem simples, como um lavrador, mostrando a face lacerada e a camisa ensanguentada. Provavelmente aquele homem terá entrado tardiamente no magistério, tentando melhorar de vida ou realizando um sonho antigo. Seus olhos aflitos expressavam algo bem mais do que tristeza. Havia neles indignação, impotência, frustração.

Ontem, voltando do serviço e descendo por uma rua, próximo a um cruzamento, uma bicicleta passou rasante e velozmente por mim na minha calçada. Não mais do que um segundo foi o tempo que me livrou de um atropelamento com possíveis fraturas. Olhei para o ciclista, que já ia distante, e vi um moletom cobrindo um corpo comprido com uma cabeça também encapuzada – como o agressor do pátio da escola.

Enquanto a violência grassa forte nos pátios, corredores e salas de aulas, o atarantado ministro colombiano está preocupado com ‘hino nacional’ e demais símbolos pátrios, que nem ele sabe para que servem.

FILIPE

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

PRECISO FALAR DE LULA


“Lula é sempre um risco para os plantonistas do Planalto.  Daí as reiteradas condenações ao degredo, ao ostracismo, ao alijamento da cena política.”

Enviei a mensagem acima, sem esperança de que a Folha de S. Paulo a publicasse. Publicou. Na edição de sexta-feira passada, estava lá, no alto da página, abrindo a seção de correspondência do Painel do Leitor, seguida de outras três ou quatro mensagens com a mesma impressão: Lula é um injustiçado.

A cada condenação do ex-presidente, um engulho me toma de assalto. É certo que até há pouco tempo, eu o tinha por culpado. Mas com o desanuviar dessa paisagem macabra, passei a pensá-lo inocente. Então, para mim, Lula é inocente; criminosos são seus algozes. E essas sucessivas condenações são planejadas para afastá-lo para sempre do cenário político – assim acredito.

Desde que o juiz de Curitiba atropelou as instituições no afã de condenar Lula, conduzindo-o coercitivamente, varejando sua residência e humilhando a ele e a seus familiares, já estava claro que havia cálculo político. Mais tarde, esse magistrado deixa o cargo para ser ministro. Defensor da liberação de armas, ele se encontrou ‘privadamente’ com representante da Taurus para falar ‘amenidades’, é claro.  E essa mesma Taurus – que vendeu milhares de pistolas com defeito para as polícias militares, e teve que recolhê-las porque muitas disparavam sozinhas – deverá encher as burras, armando a população.

A mesma pressa que aquele ex-juiz tinha para apurar, julgar e condenar petistas e afins não existe em casos mais assombrosos. O ‘Temerário’ (alguém se lembra dele?) saiu do Planalto na ‘maciota’ sem ser incomodado; um senador por SP tem na ‘cacunda’ a suspeita de desvios eleitorais de 23 milhões de reais, mas continua ‘de boa’; segundo a noticiosa UOL, a gatunagem nos últimos quatro anos em SP poderá ser responsável pelo desvio de 1,3 bilhão de reais do Rodoanel; somente no trecho norte dessa obra, o rombo é de 625 milhões, conforme denúncia protocolada no MP.  E tem mais. Tem o ex-senador mineiro, aquele do ‘aeroporto’ e de “depois a gente mata”, com sua “Cidade Administrativa" em BH; tem o senador, filho do ‘bozo-bufão’; tem milicianos, foragidos, acobertados e...  tem o Queiroz!

Mas o ancião Lula, com mais de setenta anos, tem que ficar trancado numa cela, porque solto Lula é sempre um “risco”. É, estamos nas trevas mesmo... Ô peste!

PS.: Aos poucos leitores – se me restam alguns (pelo menos um amigo, que foi leitor assíduo, me abandonou) – confesso que não me apetece escrever sobre política. Gosto mesmo é das reminiscências, dos recortes já desbotados de minha rica infância, vivida na pobreza. Mas era preciso falar de Lula.

FILIPE