Meu pai já foi professor, mas
isso há quase setenta anos. Dentre seus muitos alunos, havia uma menina, que
mais tarde veio a se casar com ele. Essa mocinha, hoje minha octogenária
mãezinha, deve ter se encantado com o mestre pela sua cultura, honestidade,
talvez beleza ou outros bons atributos, mas não pela paciência, que nunca foi o
forte de meu pai. É meu pai mesmo quem diz isso, mas em outras palavras. O
rigor para com os alunos costumava ser convertido em varadas. Certa vez, após
um breve recreio dado aos alunos, muitos tardaram a retornar à sala de aula.
Então, uma vara de “vassourão-branco” (eu conheço essa planta) deu o recado. E,
não muito tempo depois, uma das premiadas com as lambadas tornaria sua esposa. Hoje,
papai e mamãe festejam as Bodas de Ébano (são 66 anos de casados).
Ao se casar, meu pai parou de
lecionar, mas acompanhava as lições dos filhos. De vez em quando, ele chamava
um por um e vistoriava os cadernos. A minha irmã mais velha recebia sempre merecidos
elogios; meu irmão mais velho, não muito. Enquanto ele checava as lições de
alguém, eu ia acertando as lições em atraso, mas não dava tempo e ele não
deixava barato.
Muitas vezes, antes de eu entrar
na escola, via meu pai ensinando o irmão mais velho a fazer contas. Papai
ensinava e depois cobrava. “Bom, eu fiz essa para você, e agora você vai fazer
esta para mim. Vamos lá!” Meu irmão, todo encolhidinho, tentava, tentava e nada!
Papai ficava nervoso, fazia um “zuerão”
danado, mas acabava deixando o menino em paz. Eu ficava de longe, observando o irmão
com aquele lápis de ponta rombuda e a outra parte mastigada.
Antes de completar dez anos, terminei
o curso primário, mas sem saber fazer “conta de dividir”. Certo dia, peguei um
caderno e pedi ao meu pai para me ensinar as tais “contas de dividir”. “Pois
não, meu filho. Vamos lá.” Na sala da nossa casa havia uma mesa com duas
cadeiras, que seriam quatro, mas o tempo deu cabo de duas e as que restavam já não
gozavam de boa saúde. Papai sentou numa cadeira e me apresentou a outra. Pegou
o lápis e foi calmo. “Aqui você tem tanto, que dividido por isso vai dar
aquilo; depois esse tanto para aquele outro tanto vai dar isso; depois você faz
isso aqui mais aquilo ali, que vai dar aquele número lá. Entendeu?” Sem
entender bulhufas, murmurei: “Ah, pai, acho que entendi...”. “Bom, só se
aprende, fazendo. Agora é você quem vai fazer.” Quando fui tentar fazer a
conta, veio à minha mente a imagem do meu irmão com o lápis de ponta rombuda e
a outra parte mastigada. Eu pensava no meu irmão e tremia e a conta não saía. Meu
pai já se impacientava e aí é que eu não conseguia, mesmo. Meu pai intervinha
repetidas vezes: “Esse número dividido por aquele... Quanto dá?” Eu apenas
dizia: “Bom... Deixa eu ver...” Meu pai desistiu e eu também.
Queria muito que meu pai desse
umas aulas para uma figura notória da República. O dito-cujo afirmou
recentemente, sem ficar vermelho, que ‘menos quatro mais cinco dá nove’. Mas meu
pai teria que usar a “vara de vassourão-branco” também.
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