sexta-feira, 30 de julho de 2021

UM MESTRE RIGOROSO

Meu pai já foi professor, mas isso há quase setenta anos. Dentre seus muitos alunos, havia uma menina, que mais tarde veio a se casar com ele. Essa mocinha, hoje minha octogenária mãezinha, deve ter se encantado com o mestre pela sua cultura, honestidade, talvez beleza ou outros bons atributos, mas não pela paciência, que nunca foi o forte de meu pai. É meu pai mesmo quem diz isso, mas em outras palavras. O rigor para com os alunos costumava ser convertido em varadas. Certa vez, após um breve recreio dado aos alunos, muitos tardaram a retornar à sala de aula. Então, uma vara de “vassourão-branco” (eu conheço essa planta) deu o recado. E, não muito tempo depois, uma das premiadas com as lambadas tornaria sua esposa. Hoje, papai e mamãe festejam as Bodas de Ébano (são 66 anos de casados).

Ao se casar, meu pai parou de lecionar, mas acompanhava as lições dos filhos. De vez em quando, ele chamava um por um e vistoriava os cadernos. A minha irmã mais velha recebia sempre merecidos elogios; meu irmão mais velho, não muito. Enquanto ele checava as lições de alguém, eu ia acertando as lições em atraso, mas não dava tempo e ele não deixava barato.

Muitas vezes, antes de eu entrar na escola, via meu pai ensinando o irmão mais velho a fazer contas. Papai ensinava e depois cobrava. “Bom, eu fiz essa para você, e agora você vai fazer esta para mim. Vamos lá!” Meu irmão, todo encolhidinho, tentava, tentava e nada! Papai ficava nervoso, fazia um “zuerão” danado, mas acabava deixando o menino em paz. Eu ficava de longe, observando o irmão com aquele lápis de ponta rombuda e a outra parte mastigada.

Antes de completar dez anos, terminei o curso primário, mas sem saber fazer “conta de dividir”. Certo dia, peguei um caderno e pedi ao meu pai para me ensinar as tais “contas de dividir”. “Pois não, meu filho. Vamos lá.” Na sala da nossa casa havia uma mesa com duas cadeiras, que seriam quatro, mas o tempo deu cabo de duas e as que restavam já não gozavam de boa saúde. Papai sentou numa cadeira e me apresentou a outra. Pegou o lápis e foi calmo. “Aqui você tem tanto, que dividido por isso vai dar aquilo; depois esse tanto para aquele outro tanto vai dar isso; depois você faz isso aqui mais aquilo ali, que vai dar aquele número lá. Entendeu?” Sem entender bulhufas, murmurei: “Ah, pai, acho que entendi...”. “Bom, só se aprende, fazendo. Agora é você quem vai fazer.” Quando fui tentar fazer a conta, veio à minha mente a imagem do meu irmão com o lápis de ponta rombuda e a outra parte mastigada. Eu pensava no meu irmão e tremia e a conta não saía. Meu pai já se impacientava e aí é que eu não conseguia, mesmo. Meu pai intervinha repetidas vezes: “Esse número dividido por aquele... Quanto dá?” Eu apenas dizia: “Bom... Deixa eu ver...” Meu pai desistiu e eu também.

Queria muito que meu pai desse umas aulas para uma figura notória da República. O dito-cujo afirmou recentemente, sem ficar vermelho, que ‘menos quatro mais cinco dá nove’. Mas meu pai teria que usar a “vara de vassourão-branco” também.

FILIPE


sexta-feira, 16 de julho de 2021

O SAMBA DO MILICO DOIDO

Ninguém me pediu opinião sobre o que se passa no Brasil, como ninguém quer saber o que penso dessa vida nem da outra.  A minha opinião vale tanto quanto um flato do Bozo.

Começando pelo meu vizinho, que tinha um galo que cantava e me encantava nas madrugadas. “Socorro! Socorro! Socorro!”, ele sempre gritava lá de cima de sua árvore. Se não pude socorrer nem o meu amiguinho penado, quem pode contar comigo?... Se o galinho foi depenado e está no além, eu não sei, mas torço para que ele esteja feliz em outro terreiro, cercado de outro harém.

Sobre o presidente, que nunca me encantou, não sei se está mesmo mal das tripas. Caso esteja, não lhe desejo mais sofrimento e muito menos a morte. Quero-o, sim, são e lúcido, mas no banco dos réus, respondendo pelos seus crimes.

Esse parece ser o governo mais militarizado de toda a história da República, e os militares que o compõem revelaram-se incapazes de servir a nação em trajes civis: uns incompetentes e corruptos. Ainda assim, de forma bastante diversa das pessoas mais pensantes, não acho que poderíamos descartar as forças armadas, como alguns países já fizeram. Nosso país tem dimensões continentais e o Estado não se mantém de pé sem uma força armada que lhe dê sustentação. Contudo, não espero nada desses oficiais que emergiram na pandemia, negociando propinas na compra de vacinas. Eles deveriam ser defenestrados das forças armadas e encaminhados a uma prisão. Mas estamos no Brasil, né?...

Se fosse no Uruguai, Argentina e Chile... Esses países, cada qual a seu modo e a seu tempo, acertaram e continuam acertando as contas com militares criminosos. Lá, volta e meia, um alto oficial vai para a prisão pelos mais variados motivos. No Brasil, não. Todos os que se imiscuíram nas instituições civis, ao invés de sofrerem punição, foram promovidos ou premiados com cargos em ministérios.

As coisas não iam bem para os fardados desde que o ex-ministro da Saúde foi convocado para depor numa CPI. Nunca na história deste país um general da ativa fora intimado a se apresentar a uma comissão de civis para interrogatório. Mas aconteceu e, temeroso de ser preso, o covardão mendigou habeas corpus junto à corte suprema – também de civis. A nota do ministro da Defesa, em tom de ameaça, não tem outra função que não seja um desagravo diante desses acontecimentos. Se a CPI for valente de fato, irá  convocar muitos oficiais, da ativa ou da reserva, porque há muita coisa fétida na banda podre das forças armadas.

De forma trágica, cômica ou ridícula, a República escorrega para um abismo de sandices. Em Brasília, um cabo de polícia teve prerrogativa de comandar uma rodada de negociação com várias pessoas, dentre os quais um coronel; um sargento da reseva ocupava uma chefia no Ministério da Saúde, tendo como auxiliar (subordinado a ele) um coronel. Há tanto rolo nesse governo, que ele parece ser uma nova versão de “O samba do crioulo doido”.

FILIPE

sexta-feira, 2 de julho de 2021

UMA GENGIVITE

Hoje foi um dia de profunda reflexão para mim. Pus-me a pensar no sofrimento que atinge grande parte da população totalmente desassistida. Uma simples gengivite me deixou inoperante por todo o dia e, pelo jeito, terei um final de semana bastante dorido. Essa inflamação começou lenta, mas foi crescendo, crescendo até me dominar por completo. Não consegui dormir nem trabalhar nem ler nem rezar. Dei uma enrolada na patroa, na chefia e nos alunos, mas preciso fazer amanhã tudo que ficou no atraso hoje. O problema é que não consigo ficar em pé por meros cinco minutos sem que mire o horizonte à procura de uma cadeira ou, quem sabe, uma cama para repousar.

Isso, no entanto, me deu uma boa oportunidade para refletir sobre o sofrimento das pessoas. Quanta gente está passando por perrengues muito maiores do que uma ‘’simples gengiva inflamada’’, e sem perspectiva de tratamento... Tem muita gente sofrendo, meu Deus! O que sinto não é nada.

Voltei a um passado não muito distante e me lembrei de quando fui a um asilo e vi uma senhora que chorava feito criança. O que tinha? Dor de dente. A dona do asilo (aquele asilo tinha uma dona) esbravejava com a velhinha. Fiquei indignado com aquilo e defendi a interna, mas a megera disse: “Liga não. Isso é manha dela. Ih, conheço de longa data!...” Saí de lá embasbacado, sem saber o que fazer. Noutro momento, soube que a ‘megera’, de posse de uma mangueira com esguicho, mirou um velhinho e deu-lhe um indesejado banho de água fria. As coisas, porém, mudaram e talvez tenham melhorado, porque aquele “asilo” foi fechado pela Justiça.

Nessa volta ao passado, avancei mais um pouco e cheguei à minha infância, lá na roça de Guiricema. Uma vizinha, a dona Angelina Tibúrcio, uma senhora negra, alta, esguia, e que trabalhava na cozinha e na enxada, sofria com lancinante dor de dente. Então ela pedia minha irmã mais velha, que tinha a idade de uns dez anos, para acompanhá-la até a cidade para arrancar dentes. Era uma longa caminhada, de uns sete quilômetros, em estrada de terra e sob sol quente. Na volta, dona Angelina trazia junto à boca um pano para limpar o sangue que escorria sob o calor do meio-dia.

O dentista da dona Angelina era um senhor branco, alto e muito temido pelo seu boticão. Muita gente saía de lá chorando de dor, dizendo que o homem era muito bruto. Foi da boca ferida da dona Angelina que chegou aos meus ouvidos pela primeira vez a palavra ‘boticão’. “O ‘boticão’ machuca a boca da gente!”, dizia.

Naquele tempo, parece que o ofício do dentista era apenas a ‘extração’. Pelo menos os pobres de minha terra iam ao dentista para arrancar seus mastigantes, e nunca para restaurá-los ou prevenir cáries.  

De minha parte, não posso reclamar porque já tenho agendada uma visita à dentista para a próxima segunda-feira – que me parece uma eternidade. Mas... e os sofredores sem recursos, sem assistência, sem esperança?...

 

FILIPE