sexta-feira, 2 de julho de 2021

UMA GENGIVITE

Hoje foi um dia de profunda reflexão para mim. Pus-me a pensar no sofrimento que atinge grande parte da população totalmente desassistida. Uma simples gengivite me deixou inoperante por todo o dia e, pelo jeito, terei um final de semana bastante dorido. Essa inflamação começou lenta, mas foi crescendo, crescendo até me dominar por completo. Não consegui dormir nem trabalhar nem ler nem rezar. Dei uma enrolada na patroa, na chefia e nos alunos, mas preciso fazer amanhã tudo que ficou no atraso hoje. O problema é que não consigo ficar em pé por meros cinco minutos sem que mire o horizonte à procura de uma cadeira ou, quem sabe, uma cama para repousar.

Isso, no entanto, me deu uma boa oportunidade para refletir sobre o sofrimento das pessoas. Quanta gente está passando por perrengues muito maiores do que uma ‘’simples gengiva inflamada’’, e sem perspectiva de tratamento... Tem muita gente sofrendo, meu Deus! O que sinto não é nada.

Voltei a um passado não muito distante e me lembrei de quando fui a um asilo e vi uma senhora que chorava feito criança. O que tinha? Dor de dente. A dona do asilo (aquele asilo tinha uma dona) esbravejava com a velhinha. Fiquei indignado com aquilo e defendi a interna, mas a megera disse: “Liga não. Isso é manha dela. Ih, conheço de longa data!...” Saí de lá embasbacado, sem saber o que fazer. Noutro momento, soube que a ‘megera’, de posse de uma mangueira com esguicho, mirou um velhinho e deu-lhe um indesejado banho de água fria. As coisas, porém, mudaram e talvez tenham melhorado, porque aquele “asilo” foi fechado pela Justiça.

Nessa volta ao passado, avancei mais um pouco e cheguei à minha infância, lá na roça de Guiricema. Uma vizinha, a dona Angelina Tibúrcio, uma senhora negra, alta, esguia, e que trabalhava na cozinha e na enxada, sofria com lancinante dor de dente. Então ela pedia minha irmã mais velha, que tinha a idade de uns dez anos, para acompanhá-la até a cidade para arrancar dentes. Era uma longa caminhada, de uns sete quilômetros, em estrada de terra e sob sol quente. Na volta, dona Angelina trazia junto à boca um pano para limpar o sangue que escorria sob o calor do meio-dia.

O dentista da dona Angelina era um senhor branco, alto e muito temido pelo seu boticão. Muita gente saía de lá chorando de dor, dizendo que o homem era muito bruto. Foi da boca ferida da dona Angelina que chegou aos meus ouvidos pela primeira vez a palavra ‘boticão’. “O ‘boticão’ machuca a boca da gente!”, dizia.

Naquele tempo, parece que o ofício do dentista era apenas a ‘extração’. Pelo menos os pobres de minha terra iam ao dentista para arrancar seus mastigantes, e nunca para restaurá-los ou prevenir cáries.  

De minha parte, não posso reclamar porque já tenho agendada uma visita à dentista para a próxima segunda-feira – que me parece uma eternidade. Mas... e os sofredores sem recursos, sem assistência, sem esperança?...

 

FILIPE


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