Hoje foi um dia de profunda reflexão
para mim. Pus-me a pensar no sofrimento que atinge grande parte da população
totalmente desassistida. Uma simples gengivite me deixou inoperante por todo o
dia e, pelo jeito, terei um final de semana bastante dorido. Essa inflamação
começou lenta, mas foi crescendo, crescendo até me dominar por completo. Não
consegui dormir nem trabalhar nem ler nem rezar. Dei uma enrolada na patroa, na
chefia e nos alunos, mas preciso fazer amanhã tudo que ficou no atraso hoje. O
problema é que não consigo ficar em pé por meros cinco minutos sem que mire o
horizonte à procura de uma cadeira ou, quem sabe, uma cama para repousar.
Isso, no entanto, me deu uma boa oportunidade
para refletir sobre o sofrimento das pessoas. Quanta gente está passando por
perrengues muito maiores do que uma ‘’simples gengiva inflamada’’, e sem
perspectiva de tratamento... Tem muita gente sofrendo, meu Deus! O que sinto
não é nada.
Voltei a um passado não muito
distante e me lembrei de quando fui a um asilo e vi uma senhora que chorava
feito criança. O que tinha? Dor de dente. A dona do asilo (aquele asilo tinha
uma dona) esbravejava com a velhinha. Fiquei indignado com aquilo e defendi a interna,
mas a megera disse: “Liga não. Isso é manha dela. Ih, conheço de longa data!...”
Saí de lá embasbacado, sem saber o que fazer. Noutro momento, soube que a ‘megera’,
de posse de uma mangueira com esguicho, mirou um velhinho e deu-lhe um
indesejado banho de água fria. As coisas, porém, mudaram e talvez tenham
melhorado, porque aquele “asilo” foi fechado pela Justiça.
Nessa volta ao passado, avancei mais
um pouco e cheguei à minha infância, lá na roça de Guiricema. Uma vizinha, a
dona Angelina Tibúrcio, uma senhora negra, alta, esguia, e que trabalhava na cozinha
e na enxada, sofria com lancinante dor de dente. Então ela pedia minha irmã
mais velha, que tinha a idade de uns dez anos, para acompanhá-la até a cidade para
arrancar dentes. Era uma longa caminhada, de uns sete quilômetros, em estrada
de terra e sob sol quente. Na volta, dona Angelina trazia junto à boca um pano
para limpar o sangue que escorria sob o calor do meio-dia.
O dentista da dona Angelina era
um senhor branco, alto e muito temido pelo seu boticão. Muita gente saía de lá
chorando de dor, dizendo que o homem era muito bruto. Foi da boca ferida da
dona Angelina que chegou aos meus ouvidos pela primeira vez a palavra ‘boticão’.
“O ‘boticão’ machuca a boca da gente!”, dizia.
Naquele tempo, parece que o
ofício do dentista era apenas a ‘extração’. Pelo menos os pobres de minha terra
iam ao dentista para arrancar seus mastigantes,
e nunca para restaurá-los ou prevenir cáries.
De minha parte, não posso
reclamar porque já tenho agendada uma visita à dentista para a próxima segunda-feira
– que me parece uma eternidade. Mas... e os sofredores sem recursos, sem
assistência, sem esperança?...
FILIPE
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