sexta-feira, 28 de novembro de 2014

MISTÉRIOS DE MAMÃE

Meu pai está finalizando seu segundo livro, no qual destaca a história de minha mãe. De minha parte, embora eu ouse borrar esta tela com algumas palavras mal-ajambradas sobre ela, reconheço ser escassa minha competência para a empreitada. Prefiro, obviamente, não me estender sobre essa figura que é central em minha vida.

Mamãe esteve prostrada por muitos dias, semanas, devido a um de seus incontáveis ataques epiléticos. Caíra, ferindo-se e ficou paralisada por uma terrível dor que a obrigava a estar quase sempre deitada. Duas de minhas abnegadas irmãs, a mais velha e a caçula, cuidaram da mamãe durante aquele período cruciante.

Mas, quis a Providência Divina que mamãe se curasse de uma hora para outra, conforme conta meu pai. Certa feita, diz ele, ela se levantou de madrugadinha, foi para o banho, vestiu-se, perfumou-se e retomou sua rotina dirigindo-se ao alpendre para fazer suas orações.  Isso se deu no último 12 de outubro – dia dedicado à Padroeira.

Neste espaço – por respeito a leitores de outros credos, que me são muito caros – não costumo ser apologista de minha fé. Embora eu me considere bastante cético, e ainda com as devidas desculpas daqueles, afirmo que houve, sim, um grande sinal. Mamãe não poderia ficar boa, do nada. Há algo transcendental nesse episódio.

Estive em casa, conversei bastante com ela e lhe perguntei se sente dores. “Ih, não dói nada não!” Respondia, fincando com força os dedos nos flancos, para demonstrar quão curada está. Além do fim de suas dores, ela está mais falante, espirituosa e, como sempre, brava. Perguntei sua idade: “Cinquenta e sete!”, respondeu para dizer ‘setenta e cinco’. Comecei a fazer o almoço e ela se aproximou ressabiada. Guardava uma vasilha, que eu usaria, e me oferecia outra, que eu não usaria. Enquanto eu ia mexendo com suas panelas e seu fogão, ela continuava por ali, sem arredar pé, incomodada. De vez em quando dava um palpite. Após fritar linguiça, quis aproveitar a banha da panela para refogar a couve, seguindo a orientação do mestre Chico Buarque no clássico ‘Feijoada Completa’, mas a mãe interveio. “Não, tem que fazer a couve aqui!”, disse decidida e já com uma frigideira à mão. “Não, mãe, vou aproveitar esta caçarola”. “Não, não pode. Tem que ser na frigideira!” Bestamente, comecei a despejar a couve na panela. A mãe, com a força de sua materna autoridade, demitiu-me do ‘cargo’ e me expulsou dali. “Você tem que ir trabalhar na roça.  Isso aqui é serviço de mulher!” Saí amuado e a deixei fazer como queria.

Mais tarde, quando todos saíram, fiz-lhe companhia. Notando-a mais calma, aproximei-me e pudemos conversar por um bom tempo. Cheguei a cochilar, enquanto ela ‘desenterrava’ tios, avós, padrinhos e toda aquela gente ancestral. Contava histórias e, como é seu costume, falava sobre o aniversário de cada um. De repente mudou o tom para dizer: “Ele vai embora no ano que vem e eu não quero ficar aqui sozinha. Eu não fico sozinha de jeito nenhum!” “Quem vai embora, mãe?”, perguntei. “O seu pai. Ele fez aniversário ontem (anteontem)”. “Para onde meu pai vai, mãe?” “Vai para o céu!”


FILIPE

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

NO BAR

O homem surge das entranhas do boteco trazendo consigo um guardanapo, que é chacoalhado freneticamente contra uma mosca que teima em dar rasantes sobre um bife na chapa. Coloca o pano sobre o ombro, pega a espátula e começa a raspar ruidosamente a chapa. Empurra para um canto fragmentos de queijo, carne e coisas outras. Passa pra lá e pra cá a lâmina, que reluz, e dá umas viradas no bife, que começa a chiar. O pano, que serviu para afugentar a mosca, agora é usado para enxugar as mãos. Ainda com ele, dá uma passada no balcão, molha-o na torneira da pia e o passa novamente no granito, que brilha. “Deus amou a limpeza e eu gosto de tudo bem limpinho!”, diz com a convicção de quem acredita em Deus e na limpeza. Aquele pano, de cor indefinida, vai agora para o ombro enquanto pega uma cerveja no freezer para um cliente. Vira-se para mim, olhos miúdos, baixinho, atarracado – como diria meu pai –, suando bicas devido ao calor desta estação e com o acréscimo da chapa fumegante. Passa o pano pela testa molhada, dá uma breve bufada e pergunta: “O que vai tomar?” Sem querer beber e mais interessado naquela cena de boteco, disse-lhe que estava pensando ainda no pedido. Ficou por alguns instantes ali, pensativo, tamborilando os dedos sobre o balcão. As mãos peludas, os dedos gordos e engordurados pareciam revelar algo mais sobre quem “ama a Deus e a limpeza”.

“A vaca, a vaca!”, assustei-me: O quê?! Uma vaca na rua, desorientada, nervosa, poderá meter o chifre em todo mundo, pisotear... Já ameaçava fugir, quando vi um homúnculo oferecendo umas cartelas de loteria, dizendo que só faltava vender o bilhete da vaca. Segundo ele, eu deveria comprar, pois é quase certo que seria premiado. Dizia, sem me convencer, que fazia tempos que a vaca não vem. “Deixa a vaca quieta lá no pasto. Não jogo e detesto jogo!”, pensei, esforçando-me para ser educado, enquanto agradecia ao bilheteiro. “Se há grandes chances de ‘dar vaca’, por que ele não arremata tudo para ficar milionário? Pelo menos deixaria essa vida miserável de ‘mascate da sorte’!”, refleti.

Olhei a estufa de salgados. Havia três bandejas vazias e uma coisa frita noutra, mais afastada. Parecia um salsichão pelo formato cilíndrico. A má aparência sugeria algo rançoso. Haja fígado para essas guloseimas!

”Do barril, ou de marca?”, perguntou o botequeiro a um cliente. “Do barril mesmo. A de marca é cara!”, respondeu este. De um só gole foi quase toda a pinga. Pôs o copo no balcão, olhou cuidadosamente para os lados antes de cuspir, mas não foi feliz no intento. Um grosso fio de baba desistiu de seguir caminho com a “turma” e ficou grudado na barbicha, mas uma mão ligeira tratou logo de resolver aquilo, esfregando a coisa pelo bigode e adjacências. Até que deu para disfarçar, mas eu vi tudo.

Olhei de soslaio as mesinhas, quase todas vazias. Ao fundo, um casal namoricava feito periquitos apaixonados. Da calçada, um cãozinho tentava observar o que se passava ali dentro. Arredio, esticava-se todo, mas não entrava, mantendo sempre para fora as patas traseiras. Quando alguém se aproximava, ameaçava ir-se, mas não ia. De súbito, um brado feroz e uma panada: “Fora daqui!” O cão saiu humilhado, e o pano voltou para o ombro e para dentro do boteco.

“Deus amou a limpeza. E eu gosto de tudo bem limpinho!”


FILIPE