Meu pai está finalizando seu segundo livro, no qual destaca a
história de minha mãe. De minha parte, embora eu ouse borrar esta tela com
algumas palavras mal-ajambradas sobre ela, reconheço ser escassa minha
competência para a empreitada. Prefiro, obviamente, não me estender sobre essa
figura que é central em minha vida.
Mamãe esteve prostrada por muitos dias, semanas, devido a um
de seus incontáveis ataques epiléticos. Caíra, ferindo-se e ficou paralisada
por uma terrível dor que a obrigava a estar quase sempre deitada. Duas de
minhas abnegadas irmãs, a mais velha e a caçula, cuidaram da mamãe durante
aquele período cruciante.
Mas, quis a Providência Divina que mamãe se curasse de uma
hora para outra, conforme conta meu pai. Certa feita, diz ele, ela se levantou
de madrugadinha, foi para o banho, vestiu-se, perfumou-se e retomou sua rotina
dirigindo-se ao alpendre para fazer suas orações. Isso se deu no último 12 de outubro – dia
dedicado à Padroeira.
Neste espaço – por respeito a leitores de outros credos, que
me são muito caros – não costumo ser apologista de minha fé. Embora eu me
considere bastante cético, e ainda com as devidas desculpas daqueles, afirmo
que houve, sim, um grande sinal. Mamãe não poderia ficar boa, do nada. Há algo
transcendental nesse episódio.
Estive em casa, conversei bastante com ela e lhe perguntei se
sente dores. “Ih, não dói nada não!” Respondia, fincando com força os dedos nos
flancos, para demonstrar quão curada está. Além do fim de suas dores, ela está
mais falante, espirituosa e, como sempre, brava. Perguntei sua idade:
“Cinquenta e sete!”, respondeu para dizer ‘setenta e cinco’. Comecei a fazer o almoço e ela se aproximou ressabiada. Guardava uma vasilha, que eu usaria,
e me oferecia outra, que eu não usaria. Enquanto eu ia mexendo com suas panelas
e seu fogão, ela continuava por ali, sem arredar pé, incomodada. De vez em quando
dava um palpite. Após fritar linguiça, quis aproveitar a banha da panela para
refogar a couve, seguindo a orientação do mestre Chico Buarque no clássico
‘Feijoada Completa’, mas a mãe interveio. “Não, tem que fazer a couve aqui!”,
disse decidida e já com uma frigideira à mão. “Não, mãe, vou aproveitar esta
caçarola”. “Não, não pode. Tem que ser na frigideira!” Bestamente, comecei a despejar
a couve na panela. A mãe, com a força de sua materna autoridade, demitiu-me do
‘cargo’ e me expulsou dali. “Você tem que ir trabalhar na roça. Isso aqui é serviço de mulher!” Saí amuado e
a deixei fazer como queria.
Mais tarde, quando todos saíram, fiz-lhe companhia. Notando-a
mais calma, aproximei-me e pudemos conversar por um bom tempo. Cheguei a
cochilar, enquanto ela ‘desenterrava’ tios, avós, padrinhos e toda aquela gente
ancestral. Contava histórias e, como é seu costume, falava sobre o aniversário
de cada um. De repente mudou o tom para dizer: “Ele vai embora no ano que vem e
eu não quero ficar aqui sozinha. Eu não fico sozinha de jeito nenhum!” “Quem
vai embora, mãe?”, perguntei. “O seu pai. Ele fez aniversário ontem
(anteontem)”. “Para onde meu pai vai, mãe?” “Vai para o céu!”
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