Aurélio de Moura, meu saudoso avô
materno, teria feito cem anos no último dia 12 de fevereiro. De vida frugal,
sofrida e solitária, vovô foi um homem doente, e por diversas vezes levado ao Colônia
– um hospital psiquiátrico em Barbacena tristemente retratado no livro “Holocausto
Brasileiro”, de Daniela Arbex . Quando internado, trabalhou duro cortando lenha,
dando banho em pacientes e ajudando a pôr cadáveres em caminhões – que chegavam
a dezenas por dia. Naquele tempo, havia por lá as abomináveis sessões de
eletrochoque e, segundo diziam, um temível “chá da meia-noite”. Sobrevivendo
aos choques e sem tomar o “chá”, vovô sempre voltava do Colônia mais gordo, de
cabeça raspada e queimado de sol. Lacônico, guardava para si as muitas histórias
daquele ‘manicômio’.
Uma sutil mudança de comportamento
indicava a fragilização psíquica de meu avô. Começava insone, perambulando pela
casa ao lume de uma lamparina; depois, punha uns óculos de sol e saía pelas redondezas,
fazendo rápidas visitas, distribuindo terços. O homem, antes caseiro e taciturno,
tornava-se ‘andarilho e falante’. Era chegado, então, o momento da internação. Criança
ainda, acompanhei de perto algumas de suas dores como essas, mas também o drama
sentimental vivido com o fim do casamento.
Certa vez, minha avó decidiu
voltar ao antigo lar para uma visita. Vovô morava na companhia de um filho e,
sabendo da novidade, ficou animado. Foi à vendinha, comprou “quitandas” e fez
um café bem caprichado para a ‘amada’. Na sala, uma bem-comportada vovó
permaneceu solene, como convém a uma visita distinta. Levei o bule com o café
para ela enquanto ele ficou por ali ‘meio escondido’, pensando na vida, mas
satisfeito. Eles não se encontraram, infelizmente.
Vovô era um homem sem vaidade. Andava
descalço, as calças um pouco arregaçadas e, nos rigores do inverno, usava um
paletó escuro. Gostava de ficar em casa,
saindo apenas para buscar água na fonte ou para fazer pequenas compras. Homem
piedoso, rezava o terço frequentemente. Ao se aposentar, teve certa dignidade,
podendo fazer suas caridades. Mas sempre que pegava o ordenado, passava primeiramente
na igreja e deixava lá o seu dízimo.
Arredio, nunca me lembro de meu
avô sentado à mesa, participando conosco de uma refeição ou de um bate-papo.
Estava sempre de passagem, chegando ou saindo. No almoço ou no jantar, pegava
seu pratinho de comida e se escondia num canto. Terminada a refeição, sumia. Ia
dar água aos porquinhos, milho às galinhas, recolher ovos etc.
Crianças, certa vez, fomos dormir
na casa dos avós. Era tarde e tagarelávamos, incomodando o vovô. Irritado, ele
contou esta história: “Havia uns meninos desobedientes, que não respeitavam ninguém.
E numa dessas ‘desobediências’, eles saíram para um passeio no mato. Nisto, apareceu
um homem com uma capa preta, que foi se aproximando. Quanto mais se aproximava,
maior ficava aquela ‘criatura’. Quando chegou bem perto, ele se agachou sobre
as crianças, cobrindo-as com a capa. Embaixo da capa ficou tão escuro, que elas
não conseguiam sair dali. Então começaram a rezar até que os pais chegaram e as
libertaram. Somente depois souberam que aquele ‘ser’ era o diabo”. Depois disso
eu não dormi, mas o avô ficou em paz.
Já adulto, novamente pernoitando em
sua casa, havia por lá uma irmã dele bem idosa e meio ‘gagá’, falando sem parar.
Então vovô disse: “É, comadre, estamos numa fila. Você vai na minha frente, mas
logo eu vou também. Todo mundo está nesta fila e ninguém escapa”. Tempos
depois, a ‘comadre’ partiu; mais um tempo, partiu meu avô. Eu continuo na fila...
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