sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

DE PASSAGEM

“Vamos fazer uns exames? Depois dos cinquenta é preciso monitorar a saúde. Então, vou listar os procedimentos que você deverá realizar para a próxima consulta”. Essas foram as palavras de um médico muito simpático, embora ele não seja cubano. Após a breve entrevista, estendeu-me o formulário seguido de um aperto de mão. “Até mais”, eu disse. “Até”, respondeu o doutor, economizando o ‘mais’.

Foi uma trabalheira danada para, finalmente, eu receber um calhamaço do laboratório com os resultados. Ao conferir um por um fui me animando, porque parecia que eu estava muito bem. Caso fosse um exame de vestibular ou concurso público, eu teria excelente média, com chance de passar entre os primeiros. Mas, há um ‘porém’: em termos de exames médicos, a ‘média’ não faz sentido algum. Você tem que “tira notas boas” em todas as “matérias”, pois não adianta ter colesterol de fazer inveja num atleta olímpico, mas taxa de glicemia pré-tumular.

Alguém aí já se deparou com a palavra “citratúria”?  Pois bem, ela existe e significa uma substância produzida pelo nosso organismo – e eu a tenho de sobra. E “plaqueta”? Essa é uma velha conhecida. Qualquer estudante de ciências, em séries iniciais, sabe do que se trata. Essas pequenas placas compõem o nosso sangue ao lado de leucócitos, hemácias etc. O problema é que as minhas plaquetas estão escassas e o médico está bastante preocupado – mais ainda do que o seu paciente. Agora, se a média fizesse sentido eu estaria ‘tinindo’. O excesso de citratúria supriria com folga o déficit de plaquetas, mas as coisas não funcionam assim. Dessa forma, devo repetir procedimentos, procurar especialistas.

Todos nós temos apreço pela saúde e gostaríamos de conservá-la ad infinitum. Mas a Natureza pensa e age de outra forma. Ela não se importa com nossas preocupações e nem sonha os nossos sonhos. Cada um de nós é peça de uma grande engrenagem; apresentando defeito, é logo descartada e imediatamente substituída.  A Natureza zela pela espécie, apenas; quanto ao indivíduo, despreza-o sem formalidades.

Não, caro leitor, não estou me ocupando destas mal traçadas para fazer autocomiseração e não se apiede de mim. Aparentemente, estou pleno de saúde física e mental. Eu disse mental?... Ah, acho que estou bem dos miolos também. Mas o que gostaria de destacar é que nossa saúde é provisória. Mais dia menos dia, o organismo vai acender luzes amarelas, vermelhas..., até não se acenderem mais luzes. No meu caso, embora eu ainda não chegue a ser uma “árvore de Natal”, uma luzinha está piscando. Se for amarela, tá bom. Caso seja uma luz vermelha, buscarei a serenidade necessária para o desafio que ora se apresenta. Não quero pedir ao meu Senhor que remova do caminho os obstáculos, mas força para transpô-los.

São Paulo, dentre outras virtudes, ‘combateu o bom combate’; de minha parte, porém, fugi da batalha sempre que pude. Mas, agora talvez não haja rota de fuga. Desta ou doutra vez, há que se fazer a travessia – isso é o que há de mais certeiro na vida.

Nesta locomotiva, portando alegria ou tristeza, somos todos passageiros. E em cada estação, uns descem e outros sobem. Estamos de passagem, é bom lembrar, mas o mais importante é que este passeio seja bem alegre.


FILIPE

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

FASCISMO À VISTA

Todos são testemunhas de meu despreparo intelectual para falar de política, religião, história, até mesmo de lavoura. Se eu fosse ganhar a vida como hortelão, estaria, há anos, morando embaixo de uma árvore. A prova disso: plantei uns pés de couve, que antes me pareciam promissores, agora estão a me dar vergonha, tal o estado de penúria em que se encontram.

Para ser minimamente sensato, eu deveria ler e ouvir, apenas. Mas, eis que um teclado, pouco exigente, ostenta sua placidez e eu me atrevo a usá-lo. Portanto, seguem-se umas linhas impregnadas do nada que trago comigo, e do tudo que me atormenta neste momento.

A Comissão Nacional da Verdade acaba de apresentar seu relatório sobre os crimes da ditadura militar. Expôs uma coisa nojenta, tão fétida como a que se tornou conhecida há umas décadas: o dossiê “Brasil: Nunca Mais”. Esses crimes perpetrados pelos militares e por uma casta de civis já deveriam ser do conhecimento de todo brasileiro suficientemente alfabetizado. Mas não são, ­­­­infelizmente.

Estive no Exército, quando a ditadura já “respirava por aparelhos” e ainda assim pude experimentar um pouco de seu fel. O desprezo dos milicos pelos civis era tanto, que havia na caserna o seguinte ditado: “Paisano no quartel é mulher de soldado”.

Claro que não se deve generalizar. Se havia gente fardada “do mal”, havia também “do bem”. Certa ocasião, durante um acampamento, eu estava com uma ferida infeccionada e tinha febre. Meu mal-estar era tão grande, que quase não conseguia caminhar, pressentindo desmaiar a qualquer momento. Deixei meu grupamento e fui até a barraca da enfermaria para pedir um remédio. Ao chegar, alguns oficiais e praças graduados estavam sentados, conversando amenidades. Apresentei-me batendo continência e pedi pelo socorro. Um tenente me expulsou dali, como se expulsam cães abandonados. Tamanha foi minha humilhação, que acho até que sarei. Enquanto me retirava, ouvi algo estranho, parecendo não mais ser conversa de amigos. Soube depois que um subtenente reprovara a atitude de seu superior. Mais tarde, esse homem (pai de um amigo) me disse que teve vontade de disparar contra aquele oficial iníquo.

Registro essa passagem a fim de desfazer a ideia preconceituosa de alguns, de que todo militar é mau.  Da mesma forma, deve-se admitir a existência de ‘bons’ e ‘maus’ em quaisquer “tribos”: de políticos, religiosos, operários, empresários, professores etc.

Mas não há bons na tribo dos fascistas. E eles estão chegando, pregando o ódio, a divisão, a cizânia.  Antes, por burrice, vileza ou por ambas, pediam a anulação da eleição de Dilma ou seu impeachment; agora, eles clamam pelo retorno dos militares, tacham suas vítimas de terroristas e fingem desconhecer o universal “direito de resistência à tirania”. Portanto, quem pegou em armas contra o regime autoritário, fê-lo exercendo esse consagrado direito. Pior é o Estado, que agiu subterraneamente, como agem os bandidos, torturando e exterminando pessoas desarmadas.

Quem defende torturadores e/ou pede a volta dos militares é ignorante ou malvado. Na primeira hipótese, merece alguma comiseração; mas na segunda, não. Deve ser execrado, como se execram os tiranos. Vade-retrocoisa-ruim!

FILIPE