sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

DE PASSAGEM

“Vamos fazer uns exames? Depois dos cinquenta é preciso monitorar a saúde. Então, vou listar os procedimentos que você deverá realizar para a próxima consulta”. Essas foram as palavras de um médico muito simpático, embora ele não seja cubano. Após a breve entrevista, estendeu-me o formulário seguido de um aperto de mão. “Até mais”, eu disse. “Até”, respondeu o doutor, economizando o ‘mais’.

Foi uma trabalheira danada para, finalmente, eu receber um calhamaço do laboratório com os resultados. Ao conferir um por um fui me animando, porque parecia que eu estava muito bem. Caso fosse um exame de vestibular ou concurso público, eu teria excelente média, com chance de passar entre os primeiros. Mas, há um ‘porém’: em termos de exames médicos, a ‘média’ não faz sentido algum. Você tem que “tira notas boas” em todas as “matérias”, pois não adianta ter colesterol de fazer inveja num atleta olímpico, mas taxa de glicemia pré-tumular.

Alguém aí já se deparou com a palavra “citratúria”?  Pois bem, ela existe e significa uma substância produzida pelo nosso organismo – e eu a tenho de sobra. E “plaqueta”? Essa é uma velha conhecida. Qualquer estudante de ciências, em séries iniciais, sabe do que se trata. Essas pequenas placas compõem o nosso sangue ao lado de leucócitos, hemácias etc. O problema é que as minhas plaquetas estão escassas e o médico está bastante preocupado – mais ainda do que o seu paciente. Agora, se a média fizesse sentido eu estaria ‘tinindo’. O excesso de citratúria supriria com folga o déficit de plaquetas, mas as coisas não funcionam assim. Dessa forma, devo repetir procedimentos, procurar especialistas.

Todos nós temos apreço pela saúde e gostaríamos de conservá-la ad infinitum. Mas a Natureza pensa e age de outra forma. Ela não se importa com nossas preocupações e nem sonha os nossos sonhos. Cada um de nós é peça de uma grande engrenagem; apresentando defeito, é logo descartada e imediatamente substituída.  A Natureza zela pela espécie, apenas; quanto ao indivíduo, despreza-o sem formalidades.

Não, caro leitor, não estou me ocupando destas mal traçadas para fazer autocomiseração e não se apiede de mim. Aparentemente, estou pleno de saúde física e mental. Eu disse mental?... Ah, acho que estou bem dos miolos também. Mas o que gostaria de destacar é que nossa saúde é provisória. Mais dia menos dia, o organismo vai acender luzes amarelas, vermelhas..., até não se acenderem mais luzes. No meu caso, embora eu ainda não chegue a ser uma “árvore de Natal”, uma luzinha está piscando. Se for amarela, tá bom. Caso seja uma luz vermelha, buscarei a serenidade necessária para o desafio que ora se apresenta. Não quero pedir ao meu Senhor que remova do caminho os obstáculos, mas força para transpô-los.

São Paulo, dentre outras virtudes, ‘combateu o bom combate’; de minha parte, porém, fugi da batalha sempre que pude. Mas, agora talvez não haja rota de fuga. Desta ou doutra vez, há que se fazer a travessia – isso é o que há de mais certeiro na vida.

Nesta locomotiva, portando alegria ou tristeza, somos todos passageiros. E em cada estação, uns descem e outros sobem. Estamos de passagem, é bom lembrar, mas o mais importante é que este passeio seja bem alegre.


FILIPE

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

FASCISMO À VISTA

Todos são testemunhas de meu despreparo intelectual para falar de política, religião, história, até mesmo de lavoura. Se eu fosse ganhar a vida como hortelão, estaria, há anos, morando embaixo de uma árvore. A prova disso: plantei uns pés de couve, que antes me pareciam promissores, agora estão a me dar vergonha, tal o estado de penúria em que se encontram.

Para ser minimamente sensato, eu deveria ler e ouvir, apenas. Mas, eis que um teclado, pouco exigente, ostenta sua placidez e eu me atrevo a usá-lo. Portanto, seguem-se umas linhas impregnadas do nada que trago comigo, e do tudo que me atormenta neste momento.

A Comissão Nacional da Verdade acaba de apresentar seu relatório sobre os crimes da ditadura militar. Expôs uma coisa nojenta, tão fétida como a que se tornou conhecida há umas décadas: o dossiê “Brasil: Nunca Mais”. Esses crimes perpetrados pelos militares e por uma casta de civis já deveriam ser do conhecimento de todo brasileiro suficientemente alfabetizado. Mas não são, ­­­­infelizmente.

Estive no Exército, quando a ditadura já “respirava por aparelhos” e ainda assim pude experimentar um pouco de seu fel. O desprezo dos milicos pelos civis era tanto, que havia na caserna o seguinte ditado: “Paisano no quartel é mulher de soldado”.

Claro que não se deve generalizar. Se havia gente fardada “do mal”, havia também “do bem”. Certa ocasião, durante um acampamento, eu estava com uma ferida infeccionada e tinha febre. Meu mal-estar era tão grande, que quase não conseguia caminhar, pressentindo desmaiar a qualquer momento. Deixei meu grupamento e fui até a barraca da enfermaria para pedir um remédio. Ao chegar, alguns oficiais e praças graduados estavam sentados, conversando amenidades. Apresentei-me batendo continência e pedi pelo socorro. Um tenente me expulsou dali, como se expulsam cães abandonados. Tamanha foi minha humilhação, que acho até que sarei. Enquanto me retirava, ouvi algo estranho, parecendo não mais ser conversa de amigos. Soube depois que um subtenente reprovara a atitude de seu superior. Mais tarde, esse homem (pai de um amigo) me disse que teve vontade de disparar contra aquele oficial iníquo.

Registro essa passagem a fim de desfazer a ideia preconceituosa de alguns, de que todo militar é mau.  Da mesma forma, deve-se admitir a existência de ‘bons’ e ‘maus’ em quaisquer “tribos”: de políticos, religiosos, operários, empresários, professores etc.

Mas não há bons na tribo dos fascistas. E eles estão chegando, pregando o ódio, a divisão, a cizânia.  Antes, por burrice, vileza ou por ambas, pediam a anulação da eleição de Dilma ou seu impeachment; agora, eles clamam pelo retorno dos militares, tacham suas vítimas de terroristas e fingem desconhecer o universal “direito de resistência à tirania”. Portanto, quem pegou em armas contra o regime autoritário, fê-lo exercendo esse consagrado direito. Pior é o Estado, que agiu subterraneamente, como agem os bandidos, torturando e exterminando pessoas desarmadas.

Quem defende torturadores e/ou pede a volta dos militares é ignorante ou malvado. Na primeira hipótese, merece alguma comiseração; mas na segunda, não. Deve ser execrado, como se execram os tiranos. Vade-retrocoisa-ruim!

FILIPE

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

MISTÉRIOS DE MAMÃE

Meu pai está finalizando seu segundo livro, no qual destaca a história de minha mãe. De minha parte, embora eu ouse borrar esta tela com algumas palavras mal-ajambradas sobre ela, reconheço ser escassa minha competência para a empreitada. Prefiro, obviamente, não me estender sobre essa figura que é central em minha vida.

Mamãe esteve prostrada por muitos dias, semanas, devido a um de seus incontáveis ataques epiléticos. Caíra, ferindo-se e ficou paralisada por uma terrível dor que a obrigava a estar quase sempre deitada. Duas de minhas abnegadas irmãs, a mais velha e a caçula, cuidaram da mamãe durante aquele período cruciante.

Mas, quis a Providência Divina que mamãe se curasse de uma hora para outra, conforme conta meu pai. Certa feita, diz ele, ela se levantou de madrugadinha, foi para o banho, vestiu-se, perfumou-se e retomou sua rotina dirigindo-se ao alpendre para fazer suas orações.  Isso se deu no último 12 de outubro – dia dedicado à Padroeira.

Neste espaço – por respeito a leitores de outros credos, que me são muito caros – não costumo ser apologista de minha fé. Embora eu me considere bastante cético, e ainda com as devidas desculpas daqueles, afirmo que houve, sim, um grande sinal. Mamãe não poderia ficar boa, do nada. Há algo transcendental nesse episódio.

Estive em casa, conversei bastante com ela e lhe perguntei se sente dores. “Ih, não dói nada não!” Respondia, fincando com força os dedos nos flancos, para demonstrar quão curada está. Além do fim de suas dores, ela está mais falante, espirituosa e, como sempre, brava. Perguntei sua idade: “Cinquenta e sete!”, respondeu para dizer ‘setenta e cinco’. Comecei a fazer o almoço e ela se aproximou ressabiada. Guardava uma vasilha, que eu usaria, e me oferecia outra, que eu não usaria. Enquanto eu ia mexendo com suas panelas e seu fogão, ela continuava por ali, sem arredar pé, incomodada. De vez em quando dava um palpite. Após fritar linguiça, quis aproveitar a banha da panela para refogar a couve, seguindo a orientação do mestre Chico Buarque no clássico ‘Feijoada Completa’, mas a mãe interveio. “Não, tem que fazer a couve aqui!”, disse decidida e já com uma frigideira à mão. “Não, mãe, vou aproveitar esta caçarola”. “Não, não pode. Tem que ser na frigideira!” Bestamente, comecei a despejar a couve na panela. A mãe, com a força de sua materna autoridade, demitiu-me do ‘cargo’ e me expulsou dali. “Você tem que ir trabalhar na roça.  Isso aqui é serviço de mulher!” Saí amuado e a deixei fazer como queria.

Mais tarde, quando todos saíram, fiz-lhe companhia. Notando-a mais calma, aproximei-me e pudemos conversar por um bom tempo. Cheguei a cochilar, enquanto ela ‘desenterrava’ tios, avós, padrinhos e toda aquela gente ancestral. Contava histórias e, como é seu costume, falava sobre o aniversário de cada um. De repente mudou o tom para dizer: “Ele vai embora no ano que vem e eu não quero ficar aqui sozinha. Eu não fico sozinha de jeito nenhum!” “Quem vai embora, mãe?”, perguntei. “O seu pai. Ele fez aniversário ontem (anteontem)”. “Para onde meu pai vai, mãe?” “Vai para o céu!”


FILIPE

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

NO BAR

O homem surge das entranhas do boteco trazendo consigo um guardanapo, que é chacoalhado freneticamente contra uma mosca que teima em dar rasantes sobre um bife na chapa. Coloca o pano sobre o ombro, pega a espátula e começa a raspar ruidosamente a chapa. Empurra para um canto fragmentos de queijo, carne e coisas outras. Passa pra lá e pra cá a lâmina, que reluz, e dá umas viradas no bife, que começa a chiar. O pano, que serviu para afugentar a mosca, agora é usado para enxugar as mãos. Ainda com ele, dá uma passada no balcão, molha-o na torneira da pia e o passa novamente no granito, que brilha. “Deus amou a limpeza e eu gosto de tudo bem limpinho!”, diz com a convicção de quem acredita em Deus e na limpeza. Aquele pano, de cor indefinida, vai agora para o ombro enquanto pega uma cerveja no freezer para um cliente. Vira-se para mim, olhos miúdos, baixinho, atarracado – como diria meu pai –, suando bicas devido ao calor desta estação e com o acréscimo da chapa fumegante. Passa o pano pela testa molhada, dá uma breve bufada e pergunta: “O que vai tomar?” Sem querer beber e mais interessado naquela cena de boteco, disse-lhe que estava pensando ainda no pedido. Ficou por alguns instantes ali, pensativo, tamborilando os dedos sobre o balcão. As mãos peludas, os dedos gordos e engordurados pareciam revelar algo mais sobre quem “ama a Deus e a limpeza”.

“A vaca, a vaca!”, assustei-me: O quê?! Uma vaca na rua, desorientada, nervosa, poderá meter o chifre em todo mundo, pisotear... Já ameaçava fugir, quando vi um homúnculo oferecendo umas cartelas de loteria, dizendo que só faltava vender o bilhete da vaca. Segundo ele, eu deveria comprar, pois é quase certo que seria premiado. Dizia, sem me convencer, que fazia tempos que a vaca não vem. “Deixa a vaca quieta lá no pasto. Não jogo e detesto jogo!”, pensei, esforçando-me para ser educado, enquanto agradecia ao bilheteiro. “Se há grandes chances de ‘dar vaca’, por que ele não arremata tudo para ficar milionário? Pelo menos deixaria essa vida miserável de ‘mascate da sorte’!”, refleti.

Olhei a estufa de salgados. Havia três bandejas vazias e uma coisa frita noutra, mais afastada. Parecia um salsichão pelo formato cilíndrico. A má aparência sugeria algo rançoso. Haja fígado para essas guloseimas!

”Do barril, ou de marca?”, perguntou o botequeiro a um cliente. “Do barril mesmo. A de marca é cara!”, respondeu este. De um só gole foi quase toda a pinga. Pôs o copo no balcão, olhou cuidadosamente para os lados antes de cuspir, mas não foi feliz no intento. Um grosso fio de baba desistiu de seguir caminho com a “turma” e ficou grudado na barbicha, mas uma mão ligeira tratou logo de resolver aquilo, esfregando a coisa pelo bigode e adjacências. Até que deu para disfarçar, mas eu vi tudo.

Olhei de soslaio as mesinhas, quase todas vazias. Ao fundo, um casal namoricava feito periquitos apaixonados. Da calçada, um cãozinho tentava observar o que se passava ali dentro. Arredio, esticava-se todo, mas não entrava, mantendo sempre para fora as patas traseiras. Quando alguém se aproximava, ameaçava ir-se, mas não ia. De súbito, um brado feroz e uma panada: “Fora daqui!” O cão saiu humilhado, e o pano voltou para o ombro e para dentro do boteco.

“Deus amou a limpeza. E eu gosto de tudo bem limpinho!”


FILIPE

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

CONFUSÃO MENTAL

O tempo passa e eu não tenho o que pôr neste blog. Sei que isso é uma bobagem e não faz sentido ficar preocupado com banalidades, mas um amigo já perguntou sobre o “menu” de hoje.

Enquanto grupos radicais islâmicos esfolam curdos e xiitas no Iraque, sequestram centenas de meninas na Nigéria e crucificam cristãos na Síria, eu fico aqui torrando os neurônios, tentando o ofício de cronista que jamais sou ou serei. Ainda: o ebola, a Peste Negra deste milênio, se alastra na África e semeia pânico pelo mundo, mas eu continuo bobamente olhando para o teclado, preocupado em buscar a quadratura do círculo.

Eu deveria me despedir desses poucos que me acompanham, deixá-los em paz e me afastar para sempre daqui, mas parece que ando interessado na atenção deles. Uma carência tola, sem sentido, pois não há a certeza de se estar acompanhado num espaço como este, que, pela sua natureza, apela para a solidão.

Fosse noutro tempo, eu não precisaria tergiversar, pois havia no computador meia dúzia de inglórios escritos à espera de seus minutos de glória. Mas a má sorte bateu à porta, ou melhor, arrombou-a trazendo consigo um gatuno. A Pituka, cadelinha simpática até com esses noias, permitiu que se adentrasse e levasse o notebook, que nem era note, mas net. Com ele, foram alguns delírios e fragmentos de minha memória na forma de textos. Sorte teve o raríssimo leitor, porque fora poupado, mas eu fiquei meio leso e sem saber o que pôr aqui hoje.

Havia por lá breves relatos sobre minha infância vivida na escola primária, e do tempo de adolescente, quando ensaiava minhas primeiras incursões amorosas – coisa boba, mas muito minha. Havia também muitas fotos, alguns pequenos filmes da família, vídeos com minha mãe.

Para a última postagem, não encontrei dificuldade, pois o assunto brotava para além do teclado. Estava em toda parte, como se fosse pedra de tropeço por onde quer que eu andasse. Não poderia e nem havia como ignorar os acontecimentos que pululavam. Mas agora veio a ressaca.

Daqui, donde estou, olho para a Pituka e o Tokinho, que cochilam tranquilos aos meus pés, deixando-me ainda mais “desinspirado”. Por que não fazer o mesmo? Por que não deixar a arte de escrever para quem tem o dom? “Tem que ter o dão, o dão!”, já me foi dito.

Ah, se eu tivesse o dom, se soubesse escrever, descreveria cenas de um passado distante e esfumaçado, mas que continuam cintilantes como a estrela-d’alva numa manhã enevoada. Mas não consigo. Apenas tento, mas me distraio com a Pituka e o Tokinho, que continuam sonhando com a doce “matilha de totós alados” – os anjos que o Criador lhes oferece como protetores.

Ah, se eu soubesse escrever e se o Tokinho não estivesse por aqui com a Pituka a me fazer inveja! Eu falaria da primavera e de suas flores; dos amores e de suas dores; da solidão tão necessária, e de mim.

De mim?! Esta besta que se ocupa do teclado, mas que precisa corrigir provas, preparar aulas, elaborar atividades..., que ninguém faz.

E a África continua lá, esquecida e devorada pelos mesmos vermes: de ontem, de hoje e de sempre.


FILIPE

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O QUE PENSAS?


Caso tu queiras me acompanhar nestas linhas, já vou avisando: o assunto de hoje é inglório. Falarei de política e sem floreios poéticos. Portanto, não te aborreces, raro leitor. Vai para o “feice”, aquela avenida iluminada, e me deixa só, na escuridão deste beco.

De uns tempos para cá, preocupam-me os (maus) ventos que sopram na política nacional. Tenho lido vários depoimentos que servem de reflexão para os mais jovens – ou gente antiga com algum problema de memória. São de pessoas que, contando suas experiências, defendem apaixonadamente o atual governo devido aos avanços sociais nesta última década, mas que estão temerosas. Eu não chego a tanto, pois sou propenso a criticar governos: seja este, os anteriores ou futuros – fruto de meu modo ranzinza de enxergar as coisas. Mania de velho.

Os ventos, porém, prenunciam tempestades que ameaçam vir inexoravelmente. O PSDB, que tenta suceder a coligação capitaneada pelo PT, não é um paladino da democracia nem da decência administrativa. Os tucanos são bons de bico, mas não aceitam contestações. Como professor do estado de SP, há mais de vinte anos, posso dar provas disso. Aos fatos:

Durante uma assembleia do magistério no vão-livre do Masp, a polícia de Mário Covas jogou bombas na multidão que ali se aglomerava. Balas de borrachas foram disparadas e muitos professores se feriram. E olhe que não havia baderna. O movimento era pacífico, sem quebradeiras, bem diferente das manifestações de junho de 2013. Eu estava lá.

Noutra mobilização da categoria, já no governo José Serra, os ônibus que partiam do interior para a capital levando professores eram sistematicamente parados pela polícia para “vistoria”. Muitos daqueles coletivos tiveram que retornar, não podendo chegar até a capital. Havia sempre um “pneu careca” ou algo semelhante. Meu ônibus foi “vistoriado”.

Nos tempos em que as escolas já tinham ao menos uma tevê com parabólica, que jamais funcionou, eis que um desses iluminados, não sei se Alckmin ou Serra, resolveu acrescentar mais tevês: uns caixotes imensos, pesadíssimos, que nem tinha como serem instalados, chegavam. Numa escola em que trabalhei havia quatro daquelas “jubartes” sobre uma mesa, literalmente encalhadas. O diretor não sabia o que fazer com aqueles trambolhões, visto que o mercado já dispunha das levíssimas LCD. Dá pra desconfiar, ou ainda não?...

Nestes últimos vinte anos de mandonismo tucano no estado de SP, a educação despencou, a violência cresceu, a saúde está coma e falta água.  Vários especialistas apontam incúria do governo paulista na gestão de recursos hídricos. Segundo estes, a Sabesp é uma empresa preocupada apenas em beneficiar acionistas e que nos últimos anos alguns bilhões de reais foram lucrados e distribuídos aos sócios. É o hidronegócio, entende?!

O governador de SP, recém-re-re-reeleito, foi vitorioso em 644 dos 645 municípios paulistas, perdendo apenas em Hortolândia. Um desempenho de fazer inveja em “divindades” como Bashar Al-Assad, “rei” da Síria e Vladmir Putin, “czar” da Rússia. Mesmo sem segurança, saúde, educação e água, o “imperador” bandeirante consegue se reeleger folgadamente no primeiro turno. Isso é que é aparelhamento do Estado. Imagina essa turma em Brasília!

Por essas e outras é que fico com dona Dilma. Dela pode-se se dizer que é tosca, feia, gorda..., mas é honesta. Nunca se publicou uma única frase em que é acusada de ser ladra ou vadia. E ainda governa para os pobres! Se a classe alta prefere o playboy, é porque essa guerreira não a beneficia. O que pensas tu?


FILIPE

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

ARMISTÍCIO - ÚLTIMA PARTE

“continuação”

 A entrevista fluía num movimento pendular: tensão e descontração alternavam-se simetricamente. À afirmação de que ‘governa com mão de ferro’, replicou: “Ah, tá brincando. Sinto que o povo gosta de mim, até porque sou democrático nas decisões”.  Mas voltou a reclamar dos ‘ataques’ no jornal. “Mas esta já é a quarta publicação contra a pinga, e ninguém foi ao jornal para me contestar. Nem esse pessoal que ‘gosta muito do senhor’. Por quê?” “Ah, já me falaram sobre isso. Disseram: ‘não liga não, esse cara é tonto’ (risos). Pode até ser, mas você está escandalizando e São Paulo nos adverte contra isso”. “Mas quem escandaliza mais: o meu texto ou a torre de chope defronte à catedral?” “Empata!” “?!”

A conversa, antes dura, depois macia, começou a escorrer, tomando rumos prosaicos. Passou pela minha barba – que parecia mais preta, quando vista à distância, lá no fundo da igreja. ‘Aquela ovelha rebelde, que fica de butuca no que o celebrante fala para depois escrever’. “Você pegou uma frase minha: ‘Herodes bêbado, manda decapitar João Batista’ e pôs no jornal. Como é que eu fico? ...” “Mas eu não disse que foi o senhor”. “Tanto faz”. “Não, tanto não faz. Eu até havia posto o seu nome, mas... Se o senhor não sabe, eu costumo rezar antes de escrever e vou cortando, mudando... E eu rezei antes daquele texto. Aí, eu apaguei seu nome e deixei ‘celebrante’”. “Rezou pouco. Se tivesse rezado mais, teria cortado mais. Se rezasse mais ainda, teria cortado tudo. Sabe, até que você escreve bem. É um texto meio rebelde, meio adolescente, mas escreve bem. Poderia publicar um livro. Se fizer isso, venha aqui, que eu quero fazer o prefácio. Mas se for algo contra mim, nem traga” (risos).

O encontro foi chegando ao fim após suas muitas perguntas e reclamações. À queixa de autoritário, respondeu com atas, provando serem colegiadas as decisões. Abriu uma gaveta, fechou; abriu outra e a fechou também. Levantou umas revistas sobre a mesa e pegou uma cruzinha. “Vou lhe dar um presente do Papa Francisco. Pode ver que tem umas ovelhinhas aí, e você é uma delas. Tem uma que é a mais cabeçuda, que é você. Depois procure com calma”. Abri o jornal que trazia e lhe mostrei um livro. “O senhor aceita um presente também?” “Sim, claro. É você quem o escreveu?”, perguntou curioso.  “Não, é meu pai”. “Você ainda tem pai? Tem mãe?” “Tenho, graças a Deus”, respondi com a sensação de quem acaba de completar ‘noventa e oito anos’. Folheou o livro. “Este é seu pai, um santo. Você deveria se parecer mais com ele, mas não parece. Você se parece é com sua mãe, que deve ser santa também, mas é muito brava”. Apenas ri, falar o quê. “Então você é professor”. “Sim, dou aulas de matemática”. “Matemática... Nunca gostei de matemática. Escuta aqui: ainda se ensina logaritmo? Pra que serve isso, meu Deus?...” “É simples. Vou lhe dizer uma única frase e o senhor vai entender a importância dos logaritmos. Suponha que o senhor tenha 500 reais e precise de 600. Por isso, vai aplicar esse dinheiro a juros de um por cento ao mês até que se completem os 600 reais. O logaritmo entra nessa conta: para calcular o tempo em que o dinheiro fica aplicado. Entendeu?” Ele me olhou com cara de quem não quer decepcionar e disparou: “Não entendi nada!” Pegou o livro mais uma vez e leu em voz alta uma pequena dedicatória: ‘Ao D. Pedro Carlos, com o carinho de um filho’. “Carinho de um filho?!” – abraçou-me emocionado.


FILIPE

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

ARMISTÍCIO - PRIMEIRA PARTE

No começo de uma tarde desta estação, com muito sol e calor como não convém a um inverno que se preze, cheguei para atender a um convite com jeito de convocação. Ele estava em seu gabinete, e, avisado de minha chegada, veio logo ao meu encontro. Pareceu-me sombrio, mas aquela expressão nublada desanuviara-se um pouco com um sorriso embaçado.

“Então, o senhor é o professor Filipe. Qual é o problema, professor?” “Sou o Filipe, não costumo me apresentar como professor. Como sabe disso?” “Amparo é desse tamaninho!”, fez um sinal com indicador e polegar para mostrar quão pequena é nossa cidade. A pureza de suas mãos decerto santificaram aquele gesto, que, feito numa roda de adolescentes, teria significado desprovido de quaisquer virtudes.

Na tentativa de arejar o pé da prosa, provoquei: “O senhor está bravo comigo?” “Oh, não, eu nunca fico bravo com ninguém... Como poderia ficar bravo com você?... Mas, primeiramente, queria saber. Você é católico?”perguntou, passando levemente a mão sobre a calva. “Sou católico, mas essa pergunta é fácil de ser respondida. Difícil seria esta que lhe faço: Por que o senhor é católico?” Expressou impaciência e me devolveu a pergunta. “Eu sei que ninguém, com alguma inteligência, sente-se à vontade com essa indagação. Mas eu não me importo em dizer que sou católico porque fui educado nesta fé. Porém, digo com convicção: se toda a minha família abandonasse o catolicismo, eu ainda continuaria firme. Não tenho dúvida de que esta é a Barca de Pedro. Há algumas 'canoas' por aí, às vezes seguindo a ‘Barca’ à distância; noutras vezes, tomando rumos incertos, perdendo-se no horizonte, submergindo-se”. Eu disse, e ele ouviu calado minha preleção. Durante hora e meia de entrevista, este talvez tenha sido o único momento em que pude completar todas as frases.

Naquela salinha, luminosidade e calor excessivos sufocavam-me ainda mais do que os olhos de meu “inquiridor”. E ele retomou as rédeas: “Mas, se você é católico convicto, conforme diz, por que ataca a Igreja como sempre faz no jornal?” “Eu não ataco a Igreja”. “Mas me ataca!” “Não ataco o senhor”. “Mas eu estou todo ‘machucado’ com seus textos”. “Não era para estar, pois não ataco pessoas, e sim ideias, posturas”. Ele continuou: “É um escândalo publicar uma crítica ao bispo, a um padre. Isso deve ser resolvido como agora, dialogando”. “Mas eu já mandei inúmeros e-mails, e ninguém sequer os responde”. “Eu respondo”. “Não, também não responde”. “Eu não respondi a este?” “A este, sim, mas aos demais, não. E tem outra: por mais de uma vez, em meus e-mails, coloquei-me à disposição para uma correção fraterna, mas nunca fui convidado”. “Mas você foi chamado aqui, como diz isso?” “Demorou para me chamar!” “Mas eu já o chamei antes, e você não veio... Acho que estava com medo de vir” (risos). “Eu não tenho medo, mas até que gostaria de sentir medo”, disse-lhe sem convencê-lo.

“Fica publicando contra a Igreja”. “Não é contra a Igreja, é contra a pinga que vocês vendem”. “Mas, meu filho, eu sou contra, todos os padres são contra a venda de álcool nas festas, mas os festeiros... Eles batem na gente, querem vender, porque querem. Eu até poderia proibir, mas não sou autoritário”. “Não é o que dizem. Falam por aí que o senhor governa com ‘mão de ferro’!”
           
FILIPE                                                                                                                               
                                                                                                                    "continua” 


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

QUERMESSES DIONISÍACAS

"Quermesses com Cerveja", "Quermesses sem Cerveja", "Quermesses Etílicas" e... "Quermesses Dionisíacas"! Está publicado no semanário "A Tribuna de Amparo", edição de hoje, mais um capítulo da peleja deste datilógrafo contra  a venda de cerveja ou chope nas festas religiosas. Desculpe-me o impaciente leitor por eu lhe causar enfastio, mas não vou esmorecer diante de tanta teimosia.  



Tudo o que fizerdes a um desses pequeninos é a mim que o fazeis” – assim ensinava Jesus de Nazaré há dois milênios. Mas, quem são os pequeninos de Jesus? Para nós, cristãos ou não, os pequeninos são os desvalidos da sociedade: pobres, órfãos, viúvas, incapazes, alcoólatras etc.

Os cristãos católicos, no entanto, parecem não ter assimilado a mensagem do Mestre – e não é por falta de informação. Todos sabemos que o álcool é uma droga que, embora lícita, degrada o ser humano física e moralmente. Inúmeras pesquisas, publicadas pelos mais diversos organismos, corroboram esta tese. Estatísticas apontam absenteísmo, propensão ao câncer, desestruturação familiar, mortes violentas etc., tudo isso em razão do alcoolismo. Numa recente celebração, quando se rememorava o martírio de São João Batista, o celebrante enfatizou em sua homilia: “Herodes estava bêbado quando, seduzido por Herodíades, mandou decapitar João Batista”. Nessa lapidar reflexão, o pregador aponta um registro histórico do malefício do álcool. Mas, por que ainda se permite a venda de bebidas alcoólicas em quermesses? Não seria necessário que se estendesse à pratica o que se prega no púlpito?

A nossa diocese abriga várias pastorais, dentre elas, a Pastoral da Sobriedade. Esta se destaca no atendimento a dependentes e seus familiares, vítimas do alcoolismo. Ironicamente esta mesma Igreja, que maternalmente estende a mão a esses desvalidos, parece agir com indiferença, quando permite o comércio de bebidas alcoólicas em suas festas. E sob o “guarda-chuva moral” da Igreja, muitos jovens se sentem mais à vontade em suas iniciais incursões etílicas.

Quando se celebra a Festa da Padroeira, a Igreja Particular de Amparo não deveria descuidar da importância de Maria na vida desses “pequeninos de Jesus”. Com certeza ela não aceitaria que Dioniso – o mitológico deus grego – fosse homenageado em sua festa.

FILIPE

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

REFLETINDO

Não apresento aqui uma contribuição às ciências humanas, mesmo porque este autor que ora vos agasta não tem suficientes letras para se arvorar de intelectual. Mas, pensando sobre as voltas, reviravoltas e cambalhotas que o mundo dá, cheguei à conclusão de que os antropólogos, sociólogos e demais estudiosos do comportamento humano – e os há às montanhas – estão nos devendo alguns porquês sobre nosso comportamento.

É sabido que as pessoas comportam-se mais ou menos conforme determina seu líder. Já os liderados, muitas vezes, nem têm noção de como são conduzidos; o líder, noutras vezes, nem mesmo se vê como condutor.

Baseando-se nessa breve assertiva, pode-se entender melhor o (mau) comportamento de determinadas pessoas ou grupos. Isso se verifica em gangues travestidas de torcidas organizadas, em determinadas famílias e, principalmente, nas seitas religiosas. Estas têm sido muito comuns e se proliferam feito sauveiro após as primeiras chuvas.

O líder de uma seita é conhecido e venerado, mas esta não é uma regra aplicada às famílias. Em geral, no núcleo familiar o líder aparente é um parvo. Pensa que manda, mas não decide sequer pelo café ou a pinga que bebe. À sua sombra – ou melhor, fazendo-lhe sombra – há quem de fato comanda a todos, inclusive o dito “mandachuva”, que, de tão inepto, não chega a ser nem “manda garoa”. Para o bem ou para o mal, essa liderança, ainda que submersa, existe e determina toda a trajetória do grupo.

Se o inexistente leitor discorda deste ensaio, dou-lhe o crédito da inteligência, que muito me é escassa. Ainda assim, ouso avançar nesta insana explanação. Para corroborar esta tese, tomo como referência a matilha do vizinho. Lá, há uns três ou quatro cães ferozes, mas um deles é quem decidiu pela ferocidade canina. Caso o líder fosse “gente boa”, a matilha passaria o tempo cochilando, sonhando com um osso e meditando sobre seu pequeno mundo delimitado por muros, e a perna do visitante estaria a salvo.

O ideal para todos nós, humanos, desumanos e para os “mano” também, seria que ninguém se submetesse aos ditames de outrem. Cada um deveria se empenhar em descobrir a verdade em meio a tanta maldade e deixar-se guiar por ela. Há que se encontrar discernimento, ou então se caminha manso e bovinamente para o matadouro.

Voltando aos grupamentos humanos, mais especificamente às tribos, suburbanas ou não, e aos clãs, o líder é quem lhe dá rosto. Vícios ou virtudes dessas massas têm o DNA de quem as comanda.  Esse comando, consciente ou não, pode vir de patriarca, matriarca ou “filiarca”, com o perdão por esse neologismo.
 
Por essas e tantas outras, tenho recalcado meus ânimos. Tento, meditabundo e sem muito sucesso, interpretar os “sinais do tempo” presente, passado e futuro. Mas, o produto de tamanho exercício mental deu nesse besteirol.

Desconfio que a (não) crônica de hoje deva frustrar alguns abnegados que insistem em me acompanhar. Mas, fazer o quê?... Preciso cumprir a agenda da quinzena...



FILIPE

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

NATAL

Amara dona Palmira por meses, anos talvez, mas um dia os anjos levaram-na. E por tempos, Natal acabrunhara-se, ficando sentado num banquinho e tendo por companhia apenas o cigarro. Seu luto demorava passar, até que chegou dona Maria e pôs fim àquela tristeza toda.

Duas mulheres distintas: a primeira, baixinha, vaidosa e já octogenária, disfarçava os anos à custa de grossas camadas de ruge e batom. Usava vistosos vestidos de cores fortes, em tons que variavam do vermelho ao alaranjado, e também brincos e colares, mais parecendo uma cigana. A segunda era de uma estética mais discreta. Somente de vez em quando punha seus esmaltes e alguma maquiagem leve. Não obstante a diferença entre as duas, Natal as amou platônica e intensamente. E o fez bem à sua maneira, cada qual no seu tempo e sem duplicidade.

Certa feita, Natal ficando gravemente enfermo teve que se submeter a procedimento que envolvia uma engenhoca com mangueira e agulha espetada no pulso. Ficou nervoso com aquela parafernália e tentou recusar o tratamento. Mas, para seu consolo, eis que surge uma “enfermeira” em tempo integral. Sua amada, dona Maria, instalou-se ao lado de sua cama e lá permaneceu sentadinha até que ele se curasse. Cena comovente aquela.

Noutros tempos, Natal teve dificuldade de visitar dona Maria, pois seus pés estavam cheios de cravos. Obstinado, era comum vê-lo em peregrinação à ala feminina. Arrastando os pés bem devagarinho, boné atolado e cigarro na boca, ia ele cheio de amor e saudade. Houve tempos em que cheguei a conduzir dona Maria, já em cadeira de rodas, até seu amado. Deixava-a com ele enquanto visitava os demais. Na despedida, trocavam um discreto beijinho.
 
Parecia ter ciúmes, principalmente de dona Palmira. Talvez isso acontecesse pelo fato de que esta fosse um pouco “atirada” para seus padrões. Já dona Maria era mais contida e não lhe despertava insegurança.

Nos tempos de dona Palmira, quando não era crime distribuir doces naquele asilo, eu lhe oferecia balas. Nunca aceitava, mas a namorada sempre o impelia a pegar. “Pega, Natal, e dá pra mim!” Ele, finalmente, pegava sem dizer palavra e as entregava de pronto à companheira. Por essas, eu até cheguei a não me afeiçoar com ele. Achava-o rabugento, mas com o passar do tempo vi que era simpático, proseador, bacana mesmo. Antes, ele apenas resmungava alguma palavra; depois já se ouvia um bom-dia com sonoridade; finalmente, tornou-se íntimo e palavroso.

Após a morte de dona Maria, Natal ficou recolhido. Muitas vezes, no meio do dia, eu o encontrei desacoroçoado, deitado na cama sob o cobertor. Ao lado, no criado-mudo, um intocado prato de comida. Sem fome, ele aceitava umas paçoquinhas que eu arriscava clandestino. Mas, com o endurecimento do “regime” e o patrulhamento da diretoria, fui acusado de distribuir doces vencidos. Não houve, portanto, mais paçoquinhas. E o Natal definhava.

Partiu dona Palmira, partiu dona Maria, partiu Natal, partirei eu. Tudo o que resta são recordações que se anuviam, se descoram e se apagam. Como se apagam as existências.

FILIPE

NOTA: Dona Maria já foi retratada em crônica que será reproduzida em “feldades”.


sexta-feira, 25 de julho de 2014

ESMOLER

Uma amiga de adolescência levava sempre consigo uma bolsinha empanturrada de “pratinhas” para distribuí-las, conforme a necessidade e a sorte de quem encontrasse a esmolar. Para ela, não importava se a moeda era de pequeno ou grande valor. Pegava uma sem observar e a dava ao pobre pedinte. Agradecido, este abençoava a moça e guardava a moeda sem conferir para, em seguida, estender a mão ao próximo passante, como que lançando o anzol para a próxima fisgada.

          Admirava a amiga por sua generosidade, mas nunca fui assim tão bondoso. No máximo, costumo abordar o infeliz indagando-lhe da aflição do momento. Sendo um prato de comida, quero saber quanto tem ou quanto lhe falta para comprar o mastigo. Quase sempre o assunto se encerra. Daí, deduzo que o espertinho pretende fazer fortuna em cima da bondade alheia; ou, em certos casos, juntar recursos para ilícitos.

        Recentemente, caminhando pelas ruas de Sampa e me deparando com alguns deles, resolvi dar atenção a um. O homem se encontrava encostado num poste de iluminação sobre uns panos, ao lado de uma caixa de papelão. Aproximei-me e perguntei por que pedia. Disse-me que queria comprar o almoço. Perguntei quanto lhe faltava, mas não consegui entender sua fala. Então, fui mais enfático na pergunta para saber quanto já tinha faturado. Ele me disse que tinha três reais. “Vamos ver se tem isso mesmo”, disse e acrescentei: “Vou completar para você”. Ele se animou e começou a contar as moedas enquanto mas entregava. “Sua conta tá errada!” Ele voltou a contar e, dessa vez, contou certinho. “E essa nota de dois reais?”, perguntei, pois tentara escondê-la. Mas foi logo explicando que era para comprar leite para a “filha de um ano e meio”. “Tem moeda maior escondida aí...”, insisti. “Não, não tem!”, redarguiu. Mas tinha, e ele me entregou também. “Vamos lá, vamos comprar o leite e a comida.” Mas antes, fez-me uma pequena exigência: “O leite tem que ser Ninho!”

        O homem se levantou, seguiu-me cambeteando e apontou para um lado, dizendo ser lá onde compraria o leite Ninho. Chegando, disse ter se enganado, mas que não estava longe. “Vamos um pouco mais pra frente e já vamos achar. É logo ali. Quero um lugar mais barato pra você economizar”. Sempre dizendo que queria me ajudar, que é pra eu não gastar muito, mas nunca chegava a tal lugar. “Quero voltar”, disse eu àquele que me seguia cambeta, e agora me conduz lépido. Coxo antes, depois ágil feito um capoeira. E eu me aborrecia com aquele mendigo que era só meu e que insistia em “me ajudar”. “Pronto, não vou mais”, disse-lhe empacando-me de vez. Mas ele não se vencia. Dentro de uma lanchonete, onde fora pedir informação, tentei devolver-lhe a grana penhorada dizendo: “Toma! Vou lhe dar um lanche e fica tudo certo.” Quando eu já pedia um salgado, ele me interrompeu: “Calma, rapaz! Agora que estamos chegando... Venha comigo.” Saímos do bar e ele apontou o horizonte. “É ali, logo depois daquela placa azul. Tá vendo?” Perguntei qual placa, ele apontou umas três vezes, mas eu não vi placa alguma. Percebi, quase tarde, a farsa e os riscos. “Toma seu dinheiro!” Ele não queria, mas insisti. “Toma, pois quis ajudá-lo, mas você não quer ajuda. Tchau!” Ele ainda tentou: “Dá o lanche então!” “Não tem lanche, não tem mais nada. Você me enrolou!”


  Sumi dali deixando-o na sua melhor forma: a suplicante mão estendida pedindo ajuda. Algumas horas depois: “Ô mano, paga um lanche pra mim, vai!...” Olhei, era ele.
                                                                                                                                            FILIPE

sexta-feira, 11 de julho de 2014

ALGOZES RUBRO-NEGROS


          Não, solitário leitor, não quero fazer nenhum “panegírico” aos flamenguistas (usando a possível expressão de um irmão erudito). Neste momento, continuo catatônico devido ao “mineirazo” e, talvez por isso, melhor seria que não me levasse a sério – alguém me leva a sério?...

          O jogo que se anunciava para aquela agora tristemente inesquecível tarde no Mineirão enchia-me de júbilo. Como a Alemanha envergaria o uniforme rubro-negro, numa patética homenagem ao Clube da Gávea, pensei: “Se os alemães são Flamengo, os canarinhos são Vasco da Gama. E ponto final. Vamos massacrar a mulambada!”

          Confesso ao inexistente leitor, que evito assistir aos jogos do Vasco. Meu time é bom, ganha sempre, principalmente do Flamengo, mas fico inseguro, entende?... Porém, com a Seleção representando o Vascão, por que não acreditar?

          Posicionei-me no sofá da sala com os olhos fixos na tela da Band, pois não suporto a locução rouca de certo Garvão, e muito menos sua emissora. Na Bandeirantes, o problema são as abobrinhas proferidas pelo Neto, mas pra que exigir perfeição? O importante seria mesmo a derrota dos rubro-negros, e isso prenunciava certeiro.

          Tem início a partida e os “cruz-maltinos” chegam com perigo à área “rubro-negra”. Começou bem, é só botar fé que vai ser de goleada! Mas, de repente, há um escanteio e os “flamenguistas” fazem seu golzinho. Não, isso é apenas um acidente, ponderei. Passados mais alguns segundinhos, outro gol “mulambo”! Essa coisa não tá prestando, pensei já bastante chateado. Levantei-me e ia saindo para “tomar um ar”, quando: “Goooool!” Voltei tropeçando em tudo: tapete, mesinha etc. “Enfim, diminuiu!”.  Que nada, os teutônicos ampliavam o placar. Corri, ou quase, porque minhas pernas tremiam e eu tremia sobre elas. Talvez fosse o frio, pois este inverno está de lascar!  Pensei: “Vou dar o fora daqui. Nós, com esse futebolzinho... Parece que a Alemanha vai vencer e eu não quero perder tempo vendo o Brasil ser derrotado". Procurei meu chimarrão e... “Goooool! Da Alemaaaaanha!!!!” Peguei com pressa a chaleira no fogão,  a água ainda meio fria  para o mate. “Não aguento mais ficar aqui. Como joga mal este Brasil!” Peguei a cuia rápido, caiu um pouco de erva no chão (depois eu limpo), peguei a garrafa e a enchi com aquela água apenas morna e fui saindo em direção ao rancho. "Gooooool! É da Alemaaaaaanha!!!!!!"

          Contou os gols? Não sou bom em aritmética, mas parece que aí em cima já são cinco bolas na rede. Quer conferir?... Tudo isso em menos de 30 minutos! Então, sumi da sala, da cozinha, da casa..., cada vez mais apressado e temendo o pior, que veio febrilmente. Foram apenas sete. Teriam sido mais, acredito, caso não fosse um molequinho. Com a camisa da Seleção e celular à mão, ele ligou para seu pai e, aos prantos, implorou: “Pai, fala pra eles pararem de fazer gol... Fala, pai!" Acho que o velho atendeu o pedido e decretou o fim do massacre.

           Ainda bem que foi a Seleção..., pensei entre triste e aliviado. Mas esta Copa não havia sido comprada pelo Brasil?...

FILIPE

sexta-feira, 27 de junho de 2014

AS MANGUEIRAS DE MINHA INFÂNCIA

Sob duas frondosas mangueiras, na casa de meus avós maternos, passei o melhor de minha infância. Havia por lá também pitangueira, castanheira, laranjeiras, jaqueira e até um sabugueiro, que nunca apresentou seus frutos. A árvore maior, um centenário e corpulento pé de manga espada, que ainda existe (?), era por todos o mais respeitado e também o mais assediado; enquanto seu “colega”, o pé de manga sapatinha, era desprezado – menos por mim. Seus frutos, embora mais abundantes do que os do vizinho “espadachim”, eram cheios de fiapos. “Muito fiapenta!”, reclamava alguém sempre que os experimentava. Eu, como a maioria dos esfomeados meninos da roça, fartava-me com as doces e suculentas mangas sapatinhas. Já os moleques grandões, mais espertos e ambiciosos, subiam na árvore e pegavam as primeiras e cobiçadíssimas mangas espadas. Estas, por alguma razão que somente as mangueiras sabem, sempre retardam o amadurecimento.

A jaqueira ficava num morro, não muito distante da casa. Segundo os entendidos tratava-se de jaca-boi devido à enormidade de seus frutos. De vez em quando, uma gigante daquelas era colhida e levada para casa. Posto na mesa da cozinha da vovó, aquele colosso era desventrado e de suas entranhas extraíam-se as bagas. Aquelas gordas “bananas” eram gostosamente devoradas pelas crianças – que naquele tempo eram tão abundantes quanto as frutas.

Logo à direita da estradinha de acesso à casa dos avós havia também duas majestosas palmeiras que teriam sido plantadas ainda nos “oitocentos” pela primeira esposa de meu bisavô Germano. Indiferentes a quem chegasse àquelas paragens, como que entre sussurros e acenos ao embalo do vento, aqueles dois longilíneos coqueiros pareciam entretidos numa interminável conversa que já durava mais de um século. Talvez rememorassem fatos de um passado distante, talvez zombassem de nossa diminuta estatura ou, quem sabe, amaldiçoassem o fatídico machado que não tardaria em feri-los mortalmente.

Era no verão, a estação da fartura, das frutas, quando mamãe nos levava ainda mais alegremente à casa dos avós. O calor, que já naquele tempo a todos incomodava, era por nós driblado com inocentes diabruras como os proibitivos banhos no rio.  Também fazíamos excursões pelos mangais da vizinhança, mas era na casa da vovó que ficava a nossa fortuna.  Embaixo das mangueiras, sentados sobre suas grossas raízes, ficávamos horas a fio chupando manga, enquanto sabiás e bem-te-vis gorjeavam ao som de uma sonolenta fonte que despejava torrencialmente sobre uma panela de ferro. Ninguém vendia as mangas, seja por falta de mercado ou por desapego mesmo. E quem mais lucrava com isso era a meninada, que, dispensando almoço e jantar, delas nos empanturrávamos.

Adulto, ainda gosto de me lambuzar de infância, embaixo de um pé de manga e junto de uma bica d’água. Manga... Que delícia!

FILIPE

terça-feira, 17 de junho de 2014

ESPORA DE GALO....


por feldades, em 13.06.14
Perdoe-me o arredio leitor pelo mau texto e falta de lirismo, mas não dá pra ser poético nestes tempos em que se anunciam incessantes tempestades. Como se sabe e já era previsto, o Congresso aprovou, sob o desrespeitoso título de “Lei Bernardo”, a malfadada “Lei da Palmada”. “Xuxaram” até madrinha no projeto de lei, e com direito a discurso molhado – de lágrimas! Ainda bem que desta vez não houve aquele coraçãozinho brega, que a apresentadora costuma fazer com as mãos para fãs ou desafetos.

Não entendi o porquê disso. Já temos suficientes leis restritivas aos violentos, como se pode ver no Código Penal ou noutros compêndios que abundam ao alcance de todos: curiosos, rábulas ou bacharéis. Espancar criança, jovem, adulto, velho, o gato..., é crime previsto na legislação vigente, e acréscimos configuram um blá-blá-blá legislativo, apenas.

E o Estado, essa coisa sem rosto, vai ocupando cada vez mais espaço dentro dos lares. A mãe já não podia exigir que seu “bebezinho” de treze anos arrume a cama ou lave a louça do café; nem o pai pedir ao “menininho”, também de treze, que limpe o quintal, pois “trabalho infantil é crime”, e o Conselho Tutelar é o “olho que tudo vê”. A partir de agora, se os pais quiserem apartar uma rinha dos filhos, em que haja “trocas de chutes, sopapos e puxões de cabelo”, terá que ter paciência e chamá-los carinhosamente para “conversar, conversar, conversar...”, e com muito cuidado pra não traumatizá-los. Argh!

Meu pai criou onze filhos. A todos, desde a mais tenra infância, deu carinho, serviço e umas surras de vez em quando. Uns apanharam mais, outros menos e outros mais ou menos. Ninguém virou bandido. São todos honrados trabalhadores (exceto este datilógrafo), e têm profunda veneração pelo velho (inclusive o datilógrafo). O que seria da família do seu José Lopes, caso naquele tempo ele fosse responsabilizado criminalmente por ter dado uma cintada no filho travesso?

Nas casas mantidas pelo Estado, onde estão jovens em situação de abandono, pouquíssimos são os que “dão certo na vida”, sem se enveredar pelo crime. Agora, esse mesmo Estado, comprovadamente incompetente nessa matéria, quer imiscuir-se na educação das crianças, que já têm seus provedores naturais, os pais. E num abraço impensável, esquerda e direita se entrelaçam e se unificam numa atávica intromissão na família, evocando o fascismo e o stalinismo – regimes notoriamente antagônicos no discurso, mas que foram absolutamente iguais na prática.

E assim, aos primeiros clarões do século 21, voltamos às sombras do passado, ao tempo em que o pátrio poder era desavergonhadamente açambarcado pelo Estado. Os pais estão sendo mais e mais privados de exercer sua função educativa e a sociedade vai se abastecendo de bandidos de todos os matizes. Como muitos daqueles, sem qualquer lastro moral, com assento nos Poderes da República.

Mais sábia é minha mãe que sempre dizia, quando refregava um de seus abelhudos rebentos: “Espora de galo não mata pinto!...”. 

FILIPE

sexta-feira, 30 de maio de 2014

SEM INSPIRAÇÃO

         Sofro de uma síndrome que vez ou outra acomete cronistas de verdade. Monstros da nossa literatura contemporânea como Cony, Hatoum e Antônio Prata já comentaram sobre eventuais dificuldades em começar um texto. Faltando-lhes inspiração, a primeira frase não sai. Escreve-se algo ruim, que logo é substituído por coisa pior e o texto não flui. Adélia Prado confessou ter ficado “abstêmia” por cinco anos. Não conseguia ir além da primeira frase de um livro que escreveria e procurou tratamento. Então eu deveria ser internado, pois há mais de cinquenta anos que...

       Já que me falta assunto, falarei sobre qualquer coisa. Aproveito para despachar algum incauto, se por desventura aqui se aportou meio desprevenido, e aponto-lhe o caminho do Facebook. Lá as coisas são divertidas, embora eu não entenda nada daquela barafunda de imagens e palavras sob um cortinado azul. Não poucas vezes, uma solicitação de amizade é por mim preterida devido à inabilidade com o manuseio das ferramentas. E enquanto as massas se divertem naquela iluminada babel, adentro o gélido e sombrio porão de meus delírios a que frequentemente se torna este blog. Daqui, quero mirar o povo, não o do “feice”, mas o que está nas ruas a protestar.

O que querem esses desocupados berrando palavra de ordem como: “Não vai ter Copa”, se todos são fanáticos por futebol? Esse mesmo povinho já saiu às ruas para comemorar – quando se anunciou a indicação do Brasil como pais-sede – “com churrasco e cerveja”, conforme observou um cronista esportivo.

Penso que o povo deve ocupar ruas e praças celebrando ou protestando, mas é preciso que se tenha clareza do que se faz.  “Diretas Já” e “Fora, Collor” são episódios emblemáticos na história recente do país. Mas, “Não vai ter Copa”... Quanta burrice! Muitos daqueles boçais, que gritam por “mais escolas”, nem sequer gostam de estudar. A sua ignorância se acentua quando afirmam que o governo federal despejou bilhões na construção de estádios. Essa lorota vem de um maledicente grupo político que, por razões meramente eleiçoeiras, torce contra a Seleção, levando a reboque as incultas massas a torcer contra o Brasil.

Poucos sabem que a participação do governo federal nessa festança, embora alta, é inferior a quarto do total. Mais de 75 por cento, portanto, são de responsabilidade de governos estaduais e municipais, bancos, clubes e outros. A cota do governo federal – alvo da insana ira – é empregada em infraestrutura aeroportuária e de mobilidade urbana. Que mal há em fazer algo que melhore a vida do Zé, que passou a “andar de avião” e quer desfrutar de algum conforto?

 Sei que estou cansativo, mas encerro com mais provocação. Nesta terra, de Vera e Santa Cruz, temos o seguinte: quase 16 milhões de “desempregados”, que não querem trabalhar; em um milhão de vagas bancadas pelo Prouni em universidades, 30 por cento estão ociosas devido ao desinteresse de bolsistas; mais de 15 milhões de marmanjos, entre 15 e 29 anos, nem trabalham nem estudam, formando a tribo dos “Nem-Nem”. É pouco? Talvez. Mas por enfado ou preguiça, não quero continuar e fico por aqui. Hoje estou mal.


FILIPE

sexta-feira, 16 de maio de 2014

ZÉ BENTO


Morreu Zé Bento. Pobre, sem família e sem nada, habitava uma cadeira de rodas e morava num asilo. Partiu deixando a cadeira, mas de seu mesmo, apenas uma caixa de fósforos, um maço com alguns cigarros e o chapéu. Deixou também umas poucas e rotas roupas, que não despertarão o interesse de ninguém. A cama em que dormia já está à disposição de outro José, que não será Bento.

O anúncio na “pedra” foi curto: “Faleceu José Bento, filho de Maria de Jesus e de Cândido Bento. Era solteiro e deixa amigos”. Por desnecessidade, nada mais foi escrito. Começando pelo seu nome, o nome de seus pais e culminando com seu obituário, percebe-se que na vida de Zé Bento tudo foi diminuto.

Por muitos anos eu o vi em sua cadeira. Sempre em silêncio, parecia estar em permanente meditação. O chapéu de feltro, que às vezes lhe encobria os olhos, proporcionava-lhe certa elegância e algum conforto enquanto cochilava. Quando desperto, aqueles olhos tentavam, embalde, desvendar o horizonte para além da parede que o detinha.

Ele fumava, ou se esforçava para isso. Suas mãos, inchadas e tesas, mal conseguiam tirar do bolso o maço de cigarros. Vencida a primeira etapa, já com o maço na mão, a dificuldade só se fazia aumentar. Na tentativa de tirar um cigarro, dois ou três caíam. Posto na boca um, a etapa seguinte lhe seria sobre-humana: abrir a caixa de fósforos, pegar um palito, riscá-lo e acender o cigarro... Ah, Isso ele não conseguia fazer mesmo. Tanto não, que não era incomum vê-lo com o cigarro na boca à espera de alguém para que o acendesse.

Sempre que eu chegava, ainda que ele estivesse dormitando, ia lá e o cumprimentava. Despertado de seu cochilo, ele esboçava um sorriso e dizia sempre: “Sim, senhor!” Essa foi uma das poucas frases que dele ouvi.

O negro Zé Bento, que parecia ter emergido das páginas de Monteiro Lobato – um autêntico “Tio Barnabé” –, tinha os modos do velho camponês sem letras, sem palavras, sem ambição. Tal como seus ancestrais ainda do tempo do cativeiro, Zé Bento evocava a genuína figura, já quase extinta, do “preto velho”: terno, sereno, bonachão.

Morreu o homem com sua história e seu sorriso. Ao Zé Bento bastava-lhe a vida – que lhe foi dura, conquanto duradoura. Talvez quisesse ir além dos oitenta e cinco, mas havia uma parede a lhe ocultar o horizonte. E não há vida sem horizonte.

FILIPE


sexta-feira, 2 de maio de 2014

ODE À BANANEIRA



O título é banal, como banal é o cronista e seus escritos. Mas, após uma conversa com um amigo, não poderia deixar escapar a oportunidade de prestar um tributo à bananeira.

Não muito antigamente, qualquer casinha rural tinha um quintal onde se viam algumas árvores e uma pequena e providencial moita de bananeiras. Além de sombra e frutos, a bananeira oferecia confortável privacidade ao camponês em horas apertadas, ou seja, quando ele precisava “amarrar o gato” – espero fazer-me entender sem mais explicações. Não gostaria de entrar em detalhes da vida campesina, mas o citadino leitor não pode ficar desinformado e saberá o quão importante fora aquele matinho para a população rural do passado.

Por outra razão, de uns tempos para cá cismei de querer plantar bananeiras. Banheiro não me tem faltado – para as minhas necessidades, o que tenho dá com sobra. O que não me sobra é tempo de vida para ver crescer uma mangueira, abacateiro ou outra árvore frutífera de caule lenhoso. Algumas dessas costumam levar décadas para que se tornem adultas “de respeito”. Já uma bananeira cresce rápido. Planta-se hoje e com poucos meses já está parindo um lindo coração, que nasce roxo e se arregala mostrando suas infrutescências, culminando em cobiçado cacho de bananas. E que mais tarde se tornam amarelas que nem gema d’ovo, e tão doces feito melado de rapadura. Nem precisa envelhecer para ver crescer e frutificar um pé de banana, pois é tudo muito rápido. Que maravilha!

Nesses tempos de racionamento, de torneiras secas, seria oportuna uma campanha institucional em todas as mídias sobre plantação de bananeiras. Nos tempos antigos da roça, sem banheiro, nenhuma gota d’água era desperdiçada com a descarga do monturo. A coisa ficava ali, embaixo das bananeiras, até que uma galinha, em seu rotineiro passeio e sem muito que fazer, dava de encontro com o banquete. Por vezes, era o porquinho que chegava expulsando a penosa e papando tudo em duas ou três bocadas, dependendo, é claro, da fartura. E, numa piscadela, tudo ficava limpinho e pronto para o próximo da fila.

Quando falo da serventia de uma bananeira, não brinco. Falo sério, e D. Pedro I, aquele que nos deu a Independência, não me desautorizaria. Por ocasião do famoso “Grito”, contam os historiadores, o Imperador estava mal das tripas. De vez em quando parava a tropa, e seus auxiliares formavam uma parede humana no seu entorno para escondê-lo durante o serviço. Também Stalin, o todo-poderoso líder russo, passou por apertos e usou de expediente semelhante ao do português Pedrinho. Caso houvesse bananeiras por perto...

Um amigo, durante caminhada pela cidade, viu-se em apuros. Apressou o passo para chegar à sua casa, mas a coisa só piorava e o jeito foi entrar num boteco. Chegando, foi direto ao banheiro, mas aquilo era só mictório. Não havendo vaso sanitário, olhou para os lados, e nada. Já “em chamas”, viu num canto um balde com um pouco de água e um pano, que a faxineira teria deixado ali para depois terminar a limpeza. Beleza! Foi no balde mesmo. Ele não me contou, mas acho que o pano também lhe serviu. Embora aliviado, saiu de fininho e vazou ligeiro, pois a mulher o aguardava impaciente, querendo terminar o serviço.

Não disse que uma bananeira faz falta?! 

FILIPE