Amara dona Palmira por meses, anos talvez, mas um
dia os anjos levaram-na. E por tempos, Natal acabrunhara-se, ficando sentado num
banquinho e tendo por companhia apenas o cigarro. Seu luto demorava passar, até
que chegou dona Maria e pôs fim àquela tristeza toda.
Duas mulheres distintas: a primeira, baixinha,
vaidosa e já octogenária, disfarçava os anos à custa de grossas camadas de ruge
e batom. Usava vistosos vestidos de cores fortes, em tons que variavam do
vermelho ao alaranjado, e também brincos e colares, mais parecendo uma cigana.
A segunda era de uma estética mais discreta. Somente de vez em quando punha
seus esmaltes e alguma maquiagem leve. Não obstante a diferença entre as duas,
Natal as amou platônica e intensamente. E o fez bem à sua maneira, cada qual no
seu tempo e sem duplicidade.
Certa feita, Natal ficando gravemente enfermo teve
que se submeter a procedimento que envolvia uma engenhoca com mangueira e
agulha espetada no pulso. Ficou nervoso com aquela parafernália e tentou
recusar o tratamento. Mas, para seu consolo, eis que surge uma “enfermeira” em
tempo integral. Sua amada, dona Maria, instalou-se ao lado de sua cama e lá permaneceu
sentadinha até que ele se curasse. Cena comovente aquela.
Noutros tempos, Natal teve dificuldade de visitar
dona Maria, pois seus pés estavam cheios de cravos. Obstinado, era comum vê-lo
em peregrinação à ala feminina. Arrastando os pés bem devagarinho, boné atolado
e cigarro na boca, ia ele cheio de amor e saudade. Houve tempos em que cheguei
a conduzir dona Maria, já em cadeira de rodas, até seu amado. Deixava-a com ele
enquanto visitava os demais. Na despedida, trocavam um discreto beijinho.
Parecia ter ciúmes, principalmente de dona Palmira.
Talvez isso acontecesse pelo fato de que esta fosse um pouco “atirada” para
seus padrões. Já dona Maria era mais contida e não lhe despertava insegurança.
Nos tempos de dona Palmira, quando não era crime distribuir
doces naquele asilo, eu lhe oferecia balas. Nunca aceitava, mas a namorada
sempre o impelia a pegar. “Pega, Natal, e dá pra mim!” Ele, finalmente, pegava sem
dizer palavra e as entregava de pronto à companheira. Por essas, eu até cheguei
a não me afeiçoar com ele. Achava-o rabugento, mas com o passar do tempo vi que
era simpático, proseador, bacana mesmo. Antes, ele apenas resmungava alguma
palavra; depois já se ouvia um bom-dia com sonoridade; finalmente, tornou-se
íntimo e palavroso.
Após a morte de dona Maria, Natal ficou recolhido. Muitas
vezes, no meio do dia, eu o encontrei desacoroçoado, deitado na cama sob o
cobertor. Ao lado, no criado-mudo, um intocado prato de comida. Sem fome, ele
aceitava umas paçoquinhas que eu arriscava clandestino. Mas, com o
endurecimento do “regime” e o patrulhamento da diretoria, fui acusado de
distribuir doces vencidos. Não houve, portanto, mais paçoquinhas. E o Natal
definhava.
Partiu
dona Palmira, partiu dona Maria, partiu Natal, partirei eu. Tudo o que resta
são recordações que se anuviam, se descoram e se apagam. Como se apagam as
existências.
FILIPE
NOTA: Dona
Maria já foi retratada em crônica que será reproduzida em “feldades”.
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