sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A ORDENHA


Ele chegou cedo, com o céu ainda estrelado, conforme costume. Encostou a moto, pegou os baldes e se dirigiu ao curral para a ordenha. As vacas não estavam por perto como sempre ficam, mas isso não lhe pareceu anormal. Entrando no curral, percebeu que uma das porteiras estava mal fechada. Parece que alguém entrou e pôs a tranca de forma diferente, teria pensado – ainda que não se assombrasse com isso. Pegou, então, uma pequena aguilhada e se dirigiu ao rebanho, chamando as vacas, cada qual pelo seu nome. Começou pela Boneca, depois Estrela e Açucena. Seguiu-se com a Roxinha, Princesa, Paixão... Todas foram nomeadas, mas desta vez algumas não lhe obedeceram. Estavam aflitas, assustadas, muito estranhas. A custo, conseguiu levá-las ao curral para, enfim, ordenhá-las. Nisso o dia já estava quase claro, dando para divisar melhor cada rês.

A produção naquele dia pareceu-lhe minguada, só um “pinguinho”. As vacas não soltaram o leite, como sempre fazem. Os pastos estão um pouco secos... talvez seja por isso, teria pensado. “Mas ontem, anteontem e nos dias anteriores, o volume de leite era bem maior, quase o dobro do que consegui tirar desta vez. O que será que está acontecendo?...”, teria perguntado em solilóquio.

Princesa, a mais assustada de todas, resistiu a entrar no tronco. Com muito jeito, porém, ele fez que ela se ajeitasse, mas a vaquinha o impediu que a tocasse no úbere, não permitindo que lhe tirasse o leite. Logo ela, sempre tão dócil... e agora arisca, quase brava. Mas o retireiro também estava apreensivo, porque o bezerrinho dela não estava junto aos demais. Com dificuldade, no entanto, conseguiu tirar duas canecas de leite da Princesa; noutros dias, porém, ela daria cinco ou seis canecas – uns dez litros. O bezerro escapou e deve ter mamado à noite toda. De todos, ele é o mais esperto e também o mais robusto – concluiu, agora cheio de certeza.

Após o serviço e já com o sol banhando a várzea, destrancou a porteira e liberou as vaquinhas. Nisto, uma apressada Princesa abriu caminho dentre as companheiras e saiu desembestada pasto afora, até chegar numa moita de mariazinha – uma gramínea dos charcos, de folhas longas e largas, que é nativa daquela região.

E então, um triste cenário se montava à vista do ordenhador. Desesperada, a vaca mugia e raspava o solo com as patas dianteiras. O vaqueiro, assustado com aquilo, correu até lá e viu sangue. Mais adiante, vísceras. Havia também a cabeça do bezerro e seu couro estendido sobre a mariazinha. De súbito, percorreu-lhe a espinha um arrepio de indignação. Pelo que viu, pôde concluir que o abate ocorrera poucas horas antes de sua chegada. O couro, bastante perfurado, denunciava resistência por parte da vítima, com morte lentamente dolorida, e a pauladas. Mais tarde, observou, com maior tristeza ainda, que a Princesa estava ferida. Ela não conseguia pastar, porque sua mandíbula fora fraturada a golpes de enxada.

Na ‘bovina’ tentativa de livrar da morte o filho, a mãe foi ‘desumanamente’ humilhada, mutilada, vencida... Por humanos!

FILIPE

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

E VEIO O MANO VÉIO!


Alegroso e proseiro, ele chegou à noitinha quando eu já havia saído para o serviço. Às altas horas quando retornei, já estava recolhido, dormindo o suave sono dos santos.

De manhã, às cinco, levantei-me. Às seis, pontualmente, ele chegou à sala onde eu estava fazendo minhas preces. “E aí, Filipão, bom dia. Tá rezando?”  “Sim, estou me preparando para a lida”. Ele permaneceu um pouco na sala, falou alguma coisa e saiu. E eu pulei algumas orações, porque o tempo avançava. Minutos depois eu estava ao fogão, preparando o café. “O que você toma?” “Chá. Chá com leite.” Estranhei a insólita combinação ‘chá com leite’, mas meu irmão sabe das coisas e cuida da saúde como poucos. Preparei-lhe o chá com leite, que ele tomou adoçado com açúcar mascavo. “Eu prefiro o demerara, que é menos calórico”, disse enquanto sorvia com avidez o chá “mascavado”.   

Saí, quase atrasado, e deixei o mano às voltas com um mamão. Gosta de frutas, mesmo que estas lhe sejam servidas após o café. “Não vai perder a hora por minha causa”, preocupou-se. “Não. São apenas ‘dez minutos’ de caminhada”, respondi, já quase na rua.

Volto da escola e meu irmão estava ciscando no celular. “Não quer usar o computador? Eu tenho outro, pode usar esse.” “Eu vi a senha, mas prefiro o celular. Tenho tudo aqui. Olha, eu já li todos os jornais. Ali estão eles”, apontou para a mesinha de centro onde estavam todos caprichosamente empilhados. “Lê rápido! Eu leio bem devagar”. “Ah, comigo é rapidinho!”, arrematou, enquanto eu percorria as manchetes.

“A que horas quer almoçar?” “Às onze e meia. Viajo às treze horas!” Entendido o recado, deixei o jornal e fui para o fogão, porque já passava das dez. Pouco depois o mano se aproximou, olhou-me curioso e disparou: “E aí, Filipão, só no fogão! Você gosta de cozinhar, né?” Eu ia dizer que cozinho sem gostar, que eu gosto mesmo é de comer, ler, tomar chimarrão, ouvir músicas etc. Mas com o mano não tem disso não. Ele faz uma observação ou uma pergunta, mas não espera a réplica. Logo, já emenda outro assunto e o interlocutor “come poeira”. Dessa vez, porém, ele não mudou de assunto e continuou: “Lá em casa, todo mundo teve que aprender a se virar. Mamãe doente... todo mundo no fogão. Lembro de quando trabalhava na roça, lá ‘atrás do morro’, uma fome danada e nada do caldeirãozinho de comida aparecer. Papai deixava o serviço e ia para casa fazer comida, porque a mamãe não tinha feito. Como a nossa vida foi difícil... Hoje, a molecada tem de tudo e não valoriza, só reclama”.

Pronto o almoço, começaram os elogios e eu me sentindo um mestre-cuca. Almoçamos. É hora de “vazar”. Chegamos à rodoviária com meia hora de antecedência. Animado com um encontro do qual participaria, ele ainda teria outros compromissos, muitos outros. “Se eu estiver trancado em casa por algum tempo, pode saber que estou doente. Gosto de viajar... Como gosto!” Entrou no ônibus e partiu. Observei o movimento na rodoviária e o ônibus, que sumira numa curva.

Em tempos de ‘relações líquidas’, segundo a moderna sociologia, ou de ‘laços quebradiços’, conforme defino, a visita do meu irmão foi para mim motivo de grande júbilo. Que mais pessoas se irmanem, se encontrem, fraternizem-se. Porque a vida é fugaz e não admite procrastinações.

FILIPE