Ele chegou cedo, com o céu ainda
estrelado, conforme costume. Encostou a moto, pegou os baldes e se dirigiu ao
curral para a ordenha. As vacas não estavam por perto como sempre ficam, mas
isso não lhe pareceu anormal. Entrando no curral, percebeu que uma das
porteiras estava mal fechada. Parece que alguém entrou e pôs a tranca de forma
diferente, teria pensado – ainda que não se assombrasse com isso. Pegou, então,
uma pequena aguilhada e se dirigiu ao rebanho, chamando as vacas, cada qual
pelo seu nome. Começou pela Boneca, depois Estrela e Açucena. Seguiu-se com a
Roxinha, Princesa, Paixão... Todas foram nomeadas, mas desta vez algumas não
lhe obedeceram. Estavam aflitas, assustadas, muito estranhas. A custo, conseguiu
levá-las ao curral para, enfim, ordenhá-las. Nisso o dia já estava quase claro,
dando para divisar melhor cada rês.
A produção naquele dia pareceu-lhe
minguada, só um “pinguinho”. As vacas não soltaram o leite, como sempre fazem.
Os pastos estão um pouco secos... talvez seja por isso, teria pensado. “Mas
ontem, anteontem e nos dias anteriores, o volume de leite era bem maior, quase
o dobro do que consegui tirar desta vez. O que será que está acontecendo?...”, teria
perguntado em solilóquio.
Princesa, a mais assustada de
todas, resistiu a entrar no tronco. Com muito jeito, porém, ele fez que ela se
ajeitasse, mas a vaquinha o impediu que a tocasse no úbere, não permitindo que lhe
tirasse o leite. Logo ela, sempre tão dócil... e agora arisca, quase brava. Mas
o retireiro também estava apreensivo, porque o bezerrinho dela não estava junto
aos demais. Com dificuldade, no entanto, conseguiu tirar duas canecas de leite
da Princesa; noutros dias, porém, ela daria cinco ou seis canecas – uns dez
litros. O bezerro escapou e deve ter mamado à noite toda. De todos, ele é o
mais esperto e também o mais robusto – concluiu, agora cheio de certeza.
Após o serviço e já com o sol
banhando a várzea, destrancou a porteira e liberou as vaquinhas. Nisto, uma apressada
Princesa abriu caminho dentre as companheiras e saiu desembestada pasto afora,
até chegar numa moita de mariazinha – uma gramínea dos charcos, de folhas
longas e largas, que é nativa daquela região.
E então, um triste cenário se montava
à vista do ordenhador. Desesperada, a vaca mugia e raspava o solo com as patas
dianteiras. O vaqueiro, assustado com aquilo, correu até lá e viu sangue. Mais
adiante, vísceras. Havia também a cabeça do bezerro e seu couro estendido sobre
a mariazinha. De súbito, percorreu-lhe a espinha um arrepio de indignação. Pelo
que viu, pôde concluir que o abate ocorrera poucas horas antes de sua chegada.
O couro, bastante perfurado, denunciava resistência por parte da vítima, com morte
lentamente dolorida, e a pauladas. Mais tarde, observou, com maior tristeza
ainda, que a Princesa estava ferida. Ela não conseguia pastar, porque sua mandíbula
fora fraturada a golpes de enxada.
Na ‘bovina’ tentativa de livrar da
morte o filho, a mãe foi ‘desumanamente’ humilhada, mutilada, vencida... Por
humanos!
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