sábado, 23 de setembro de 2023

VILAS BOAS?



Você, que não mora nessa vila, não sabe que casa é essa. Eu também não saberia, caso alguém me mostrasse a foto da forma que eu a apresento aqui. E eu nem teria motivo para publicá-la, porque essa casa não teve grande destaque na minha vida, embora ela esteja presente nas minhas memórias afetivas desde a mais remota infância.

Mais de meio século atrás, a casa da foto era uma ‘vendinha’ do senhor Nésio – esse o apelido do homem que provavelmente se chamava Onésimo. Eu gostava de entrar naquela venda, que não tinha muita coisa além de lápis, borracha, balas, chicletes, cereais e outras mercadorias das quais não tenho sequer um fiapo de lembrança. Certa vez, entrei com minha irmã mais velha para comprar um único chiclete, que fora salomonicamente dividido ao meio por nós. Todavia, o assunto aqui não é a ‘casa de venda do Nésio’, embora ela faça parte da paisagem desta crônica, nem  ‘gomas de mascar’. Mas quero falar de minha terra natal.

Iniciando a partir da ponte sobre o riacho que dá nome ao vilarejo, e que antigamente tinha apenas duas ruas – uma seguindo para o cemitério e com acesso à estrada para o povoado de D. Silvério, e a outra com acesso à estrada para a serra da Mutuca –, o Córrego Preto é um povoado encravado ao sopé das montanhas de Guiricema, nas Minas Gerais. Foi nesse arraial que tive o primeiro contato com aquilo que para nós seria uma “cidade”. A capela de São José bem destacada no alto de uma pequena colina, as duas ou três casas de venda e a padaria davam “ares metropolitanos” ao vilarejo.  E foi ali também, nas Escolas Reunidas Galdino Leocádio que minhas mãos trêmulas, conduzidas pelas mãos hábeis e firmes da professora dona Aída de Almeida, desenharam pela primeira vez as vogais e consoantes do meu nome.  

O arraial, agora com estrutura mais moderna, conserva ainda o charme de antanho. As casinhas, todas muito bem cuidadas, térreas e sem muros, dão para a calçada, e de suas janelas ainda surgem olhos furtivos espiando, desconfiados, o “estrangeiro” que chega.

No entanto, uma coisa sobre essa comunidade tem me incomodado bastante. Não sei por quê, mas na primeira metade do século passado, mudaram o nome do arraial. Bem à maneira provinciana dos coronéis daquele tempo, e talvez num exercício de bajulação, trocou-se o nome da vila de ‘Córrego Preto’ para ‘Vilas Boas’ com o fito de “lamber”, em vida, um ministro do STF. Antônio Vilas Boas, o magistrado que nasceu naquelas cercanias, morreu nonagenário em fins dos anos oitenta e, desdenhoso da homenagem recebida, jamais prestigiou seu povo com ao menos uma visita.

O pior é que eu, na minha inocência, gostava dessa denominação e pensava que, por a ‘vila ser boa’, resolveram denominá-la “Vilas Boas”. Na escola, entoávamos um hino que era mais ou menos assim: “Vilas Boas é uma cidade pequenina / Boa assim eu nunca vi / Tem um rio e uma igrejinha na colina / E crianças bem gentis. // Vilas Boas! Vilas Boas! Quem me dera lá voltar para morar, para morar! / Vilas Boas! Vilas Boas! Quem me dera lá voltar para ficar, para ficar!”

O meu pedacinho de chão continua sendo ‘Córrego Preto’. Para facilitar a expressão, uso “Corgo Preto”. E como os pioneiros córrego-pretanos’, prefiro a forma poética e ainda mais apocopada, que é Corpreto. 

Desconheço Vilas Boas, mas amo Corpreto!

FILIPE

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

O IRMÃOZINHO SEXAGENÁRIO

 

Ele está completando sessenta anos neste sete de setembro! Não, não dá pra acreditar. Ainda o vejo menino, as bochechas gordinhas e rosadas, e as peraltices em casa e na escola onde ganhou o apelido de Cachorro Zangado após morder um colega briguento. Também arrastou pela infância a injusta fama de “rudo”, que para nós significava “aquele que não aprende”. Preocupado com isso, papai comprou para ele um remédio, de nome ‘memoriol’, para “torná-lo inteligente”. Eu me lembro do sabor daqueles comprimidões, que experimentei furtivamente.

Não bastasse a pecha de ‘rudo’, esse mano conviveu com a dolorida e ainda mais injusta fama de ‘preguiçoso’. Sobre essa suposta indisposição para o trabalho, aprontei uma da qual ele nunca esqueceu. Certa vez, estando nós dois na cozinha do avô Sebastião, decidi fazer uma provocação e disse: “Vovô, este seu neto diz que, quando crescer, vai ser fazendeiro!” A observação do meu avô veio na medida certa de meu maligno deleite: “Só se for um fazendeiro quebrado...” Isso deixou o meu irmãozinho tão desapontado, que não sei se seu aborrecimento estava mais fincado na minha pergunta ou na resposta do avô.

Meu Deus. Esse menino é extremamente trabalhador! Está sempre ocupado com alguma coisa, seja na casa dele, na casa dos pais, na sua comunidade... Onde quer que esteja, ele está laborando. Engenhoso, trabalha como pedreiro, pintor, eletricista, encanador, marceneiro e até serralheiro. Esse homem é um estouro! E quanto à sua inteligência... espere aí. São raras as pessoas dotadas de tamanha argúcia e sabedoria como ele. A pouca escolaridade não oblitera sua impressionante compreensão do mundo e da vida.

Conversar com este irmão é como passear pelos campos floridos da memória. A maneira singular com que reconstrói fatos já encardidos faz com que tudo fique novinho. É como se algo acontecido há décadas transmigrasse para ontem. E não apenas isso. Ele também tem sempre uma palavra salvadora para as mais difíceis situações que lhe são apresentadas. E o seu bom humor então?... Falar com esse mano é por demais prazeroso e não há como não dar risada de alguma coisa. Ele tem lá seus perrengues, que são muitos, e já teve grandes dissabores também, mas jamais choraminga as tristezas e toca a vida com uma leveza incomum.

Na infância, tive convivência difícil com este irmão e a culpa nunca foi dele, confesso envergonhado. Nossos conflitos começavam com uma implicância que sempre tive com as pessoas que me são próximas. Quem convive comigo sabe que sou um bicho esquisito. Uma espécie classificada por alguns como aquele de ‘gênio forte’, ‘temperamental’ ou ‘positivo’ – metáfora bamba para a palavra ‘malcriado’. Felizmente nem tudo se perdeu.

Aos meus irmãos mais velhos, deixo registrada aqui minha gratidão.  Isso por que esses, cada qual à sua maneira, apartaram minhas muitas brigas com o Irmãozinho. Para pôr fim às rinhas, da Mana Véia recebi sonoras e ardidas cabadas de vassoura; do Mano Véio, doídas bicudas – paga essa mais do que merecida. Além de estar feliz por externar aqui esse agradecimento aos irmãos mais velhos pelo justo corretivo, minha alegria se completa em poder homenagear o Irmãozinho pelo seu ‘sexagésimo’. 

Ah, esse irmão!... Bondade está ali, bem concentrada. Gente fina, educada, que sabe começar uma prosa, dar rumo nela e terminar com um quase aplauso do interlocutor. Mas estou aprendendo. Um dia, quem sabe quando eu crescer, talvez consiga um pouco daquela sabença.

FILIPE