Você, que não mora nessa vila, não sabe que casa é essa. Eu
também não saberia, caso alguém me mostrasse a foto da forma que eu a apresento
aqui. E eu nem teria motivo para publicá-la, porque essa casa não teve grande destaque
na minha vida, embora ela esteja presente nas minhas memórias afetivas desde a
mais remota infância.
Mais de meio século atrás, a casa da foto era uma ‘vendinha’ do
senhor Nésio – esse o apelido do homem que provavelmente se chamava Onésimo. Eu
gostava de entrar naquela venda, que não tinha muita coisa além de lápis,
borracha, balas, chicletes, cereais e outras mercadorias das quais não tenho sequer
um fiapo de lembrança. Certa vez, entrei com minha irmã mais velha para comprar
um único chiclete, que fora salomonicamente dividido ao meio por nós. Todavia,
o assunto aqui não é a ‘casa de venda do Nésio’, embora ela faça parte da
paisagem desta crônica, nem ‘gomas de mascar’. Mas quero falar de minha
terra natal.
Iniciando a partir da ponte sobre o riacho que dá nome ao vilarejo,
e que antigamente tinha apenas duas ruas – uma seguindo para o cemitério e com
acesso à estrada para o povoado de D. Silvério, e a outra com acesso à estrada
para a serra da Mutuca –, o Córrego Preto é um povoado encravado ao sopé das
montanhas de Guiricema, nas Minas Gerais. Foi nesse arraial que tive o primeiro
contato com aquilo que para nós seria uma “cidade”. A capela de São José bem
destacada no alto de uma pequena colina, as duas ou três casas de venda e a
padaria davam “ares metropolitanos” ao vilarejo. E foi ali também, nas Escolas Reunidas
Galdino Leocádio que minhas mãos trêmulas, conduzidas pelas mãos hábeis e firmes
da professora dona Aída de Almeida, desenharam pela primeira vez as vogais e
consoantes do meu nome.
O arraial, agora com estrutura mais moderna, conserva ainda o
charme de antanho. As casinhas, todas muito bem cuidadas, térreas e sem muros,
dão para a calçada, e de suas janelas ainda surgem olhos furtivos espiando,
desconfiados, o “estrangeiro” que chega.
No entanto, uma coisa sobre essa comunidade tem me incomodado
bastante. Não sei por quê, mas na primeira metade do século passado, mudaram o
nome do arraial. Bem à maneira provinciana dos coronéis daquele tempo, e talvez
num exercício de bajulação, trocou-se o nome da vila de ‘Córrego Preto’ para ‘Vilas
Boas’ com o fito de “lamber”, em vida, um ministro do STF. Antônio Vilas Boas, o
magistrado que nasceu naquelas cercanias, morreu nonagenário em fins dos anos
oitenta e, desdenhoso da homenagem recebida, jamais prestigiou seu povo com ao menos
uma visita.
O pior é que eu, na minha inocência, gostava dessa
denominação e pensava que, por a ‘vila ser boa’, resolveram denominá-la “Vilas
Boas”. Na escola, entoávamos um hino que era mais ou menos assim: “Vilas Boas é uma cidade pequenina / Boa
assim eu nunca vi / Tem um rio e uma igrejinha na colina / E crianças bem
gentis. // Vilas Boas! Vilas Boas! Quem me dera lá voltar para morar, para morar!
/ Vilas Boas! Vilas Boas! Quem me dera lá voltar para ficar, para ficar!”
O meu pedacinho de chão continua sendo ‘Córrego Preto’. Para facilitar
a expressão, uso “Corgo Preto”. E como os pioneiros córrego-pretanos’, prefiro a
forma poética e ainda mais apocopada, que é Corpreto.
Desconheço Vilas Boas, mas amo Corpreto!
FILIPE