sábado, 23 de dezembro de 2023

SIMEÃO

 


Esse é o meu tio Simeão, mais conhecido por Soadão – um apelido pra lá de esquisito, eu sei, mas ele é gente boa pra caramba.

Então, hoje o tio Simeão faz 71 anos. Idade já bem avançada, mas ocultada pelo vigor físico e a alma sapeca de quem nos faz rir até mesmo de suas trombadas com a vida.

Certa vez, isso aconteceu há muitos e muitos anos, mamãe estando na casa dos pais e já cansada de me sustentar em suas entranhas, resolveu me despachar para a vida. E quando ela me deu à luz, o meu tio Simeão estava todo pimpão, porque naquele dia ele completava nove aninhos. E a partir de então eu passei a ser uma espécie de afilhado desse tio. Tanto é que, sempre que podia, ele me dava presentes no nosso aniversário.

Interessante é que, se antes essa diferença de nove anos era uma enormidade, hoje ela nos é insignificante. Talvez essa pudesse ser a prova mais convincente da relatividade do tempo, que ficaria sempre parado enquanto nós vamos passando por ele. 

Naquele tempo, por vezes o tio me pegava em casa e me levava pra casa dele ainda na véspera do aniversário, e o tão aguardado 23 de dezembro já amanhecia festivo. O almoço, para dezenas de pessoas, começava a ser preparado desde bem cedinho por minha avó e minhas tias e seria servido no começo da tarde, estendendo-se até quase o anoitecer. Comida simples, mas saborosa e farta, não faltando arroz, tutu acebolado, macarronada e carne de porco ou frango. À noitinha eram servidos os doces, invariavelmente arroz doce, doce de leite em pedaços, pé de moleque, doce de mamão em bolotas, mingau de milho verde etc.

Esses festejos começaram quando o tio Simeão ficou maiorzinho, podendo trabalhar fora e ganhar algum dinheiro. Pelas minhas lembranças, a nossa primeira festinha foi quando eu fiz seis ou sete anos, sendo ele ainda um rapagote. E assim, o mês de dezembro passou a marcar ‘dois grande eventos’ para mim:  início das férias escolares e a “minha” festa de aniversário.

A nossa última festinha foi quando meu tio fez ‘vinte e um’ e eu ‘doze’. Era uma manhã sorridente, de sol forte e calor intenso, como foi hoje. Eu estava na casa dos avós maternos e aconteciam os preparativos para o almoço, que seria um pequeno banquete como sempre foi nessa data. Havia já bastante gente e ainda mais pessoas estariam por chegar. De repente minha tia Gracinha chega, interrompe tudo, e diz quase sem fôlego: “Gente, o Sebastião Lopes Morreu!” Padrinho do tio Simeão, o vovô Sebastião partiu no dia do nosso aniversário, levando consigo a alegria de uma festa que não chegou a acontecer e que nunca mais se repetiria.

Sou muito grato a esse tio por tudo que ele fez para alegrar minha infância. Enquanto na minha casa ninguém podia fazer festa devido às nossas dificuldades financeiras (pobreza mesmo), o meu aniversário era ansiosamente esperado por todos e ricamente festejado pelo tio, com quem nos jubilávamos.

Cinquenta anos nos separam da nossa última festinha, e esse tempo passou rápido. Só não passou o meu carinho pelo tio Simeão, a quem sou eternamente grato e lhe desejo uma vida longa e feliz.

FILIPE


sábado, 16 de dezembro de 2023

ZÉ ELIAS


 

Esse aí é o José Elias, também conhecido por Zé Elias ou simplesmente Elias. No entanto, costumo chamá-lo de Zé, mesmo – uma maneira mais simpática de nomeá-lo.

Então, esse amigo está fazendo ‘sessenta anos’ hoje, neste 16 de dezembro. Mentira. Não sei a idade do Zé e esqueci o dia de seu aniversário. Sei que ele tem duas datas, mas não me lembro de nenhuma para comemorar. Por via das dúvidas, decidi que o meu amigo faz ‘sessenta anos hoje’. Tem que ser sessenta, porque que ele é uns dois anos mais novo do que eu.

Então, parabéns, Zé! Talvez você nem saiba que hoje é seu aniversário e menos ainda que está virando ‘sessentão’.

Conheci o Zé Elias há mais de quarenta anos, quando fazíamos o primeiro ano do antigo ‘segundo grau’ em Juiz de fora. O ano era 1981. Na ocasião, eu estava no exército, como soldado-recruta, e o meu amigo ainda era pouco mais do que um garoto. Naquela classe formamos um pequeno grupo de estudos com meia dúzia de colegas, dos quais tenho contato com apenas dois (de nome ‘Zé’). Os demais... nunca mais.

Há pessoas que se gabam de ter dezenas, centenas de amigos. Roberto Carlos era mais ambicioso: queria ter “um milhão de amigos”. No meu caso, a coisa é mais modesta. Os meus amigos podem ser enumerados usando-se apenas uma das mãos; com algum esforço, posso usar a outra mão, mas vai sobrar dedo.

O Zé Elias está nessa primeira contagem e eu poderia apontar inúmeros cruzamentos dos nossos caminhos. No entanto, vou me ater à descrição de apenas uma passagem, que já ilustra com boas tintas a nossa amizade.

Naquele longínquo início dos anos oitenta, o meu salário mal dava para pagar um quarto de pensão que eu dividia com uma figura excêntrica, que se dizia poeta. A pensão, que ficava num prédio antigo e descuidado no centro de Juiz de Fora, pertencia à dona Sebastiana. Ali moravam essa senhora, sua filhinha e uma dezena de rapazes que exerciam atividades das mais variadas: pedreiros, taxistas, camelôs, além do poeta e deste escriba.

Certa vez, já era noite, a campainha tocou. A dona Sebastiana atendeu e me chamou: “Tem um moço querendo falar com você.”  “Ô, dona Sebastiana, esse é o Zé Elias, meu amigo. Entra, Zé. Vou jantar daqui a pouco. Você não quer jantar comigo?” “Não obrigado. Eu só vim aqui um pouquinho e já estou de saída”.

Arrastei meu amigo para a cozinha, torcendo para que ele não aceitasse o convite para jantar, porque, pelas regras, eu não podia oferecer comida dos hóspedes a amigos. Você, que me lê, sabe disso, mas a polidez é uma senhora autoritária e costuma nos obrigar a certas coisas, né?...

Na televisão anunciava-se, para depois da novela, “Morte e Vida Severina”, que eu queria muito assistir. Então pensei: O Zé vai embora, eu pego meu rango e depois assisto a esse musical. Mas que nada... Quando o amigo viu a comida no fogão, mudou de semblante. “Aqui, eu preciso muito trocar uma ideia com você. Vamos descer, depois você volta pra sua janta!”

Desci com o amigo, mas ele parecia não ter nada tão especial pra falar. Saímos do prédio, atravessamos a praça, entramos numa rua, depois noutra e noutra e chegamos a uma lanchonete de nome ‘Elefantinho’. Ali o Zé já pediu algo pra beber e comida. Veio um senhor lanche, que devorei com a voracidade de um andarilho.  

Depois, bem depois (porque sou lento nas ideias), descobri o porquê daquilo tudo. Eu já estava acostumado a comer aquele arroz quebradinho (totó) com miúdos, geralmente cabeça de frango, que a dona Sebastiana fazia com abundância para atender a si e a nós, seus hóspedes. Com ela não havia miséria. A comida era farta e até gostosa porque bem temperada. O que me incomodava era uma coisa: a cabeça do frango costumava chegar ao meu prato ainda com ‘os olhos’. Mas não com bico porque, justiça seja feita, a dona Sebastiana tinha lá os seus asseios.  

Foi assim que descobri por que o meu amigo não quis experimentar a minha janta, resolvendo me levar para lanchar. E a partir de então, foram recorrentes as nossas idas à lanchonete nos fins de semana. No entanto, embora isso muito me agradasse, preocupava-me o fato de eu nunca poder pagar ao menos a minha parte, e o amigo não era assim tão abastado.

Dias atrás, enquanto pensava nesse passado, resolvi rascunhar esta crônica. Enquanto digitava, recebi notificação em uma rede social. Do outro lado estava ele, o Zé Elias. Fiquei abobalhado, porque há tempos a gente não se fala ao telefone nem trocamos mensagens. E o Zé estava curioso, querendo saber como estou, onde estou e disse que quer me visitar.  

É, a vida é permeada de mistérios. Como a amizade!

FILIPE

domingo, 3 de dezembro de 2023

A GALINHA GRÁVIDA

 


Essa menina é muito linda, não é mesmo?... Pois é, dias atrás eu tive a alegria de cuidar dela e de suas colegas – uma dezena de “donzelas solteironas” e de ‘de bem com a vida’. ‘Solteiras’ não por opção ou convicção, mas por imposição. Naquele quintal não há ‘varão’ e elas se contentam apenas com o canto apaixonado de um ‘vizinho seresteiro’.

Ah, o galo... Preciso falar desse “rapaz” também. Fico impressionado com esse sujeito e acho que o raro leitor já deve ter observado como ele é carinhoso com suas amadas. ‘Suas’, porque ele exige uma boa turminha de “esposas”.  O carinho com que um galo trata seu harém é impressionante. Não é à toa que o verbo ‘galantear’ venha de ‘galante’, que se origina de ‘galo’. Então, se um homem quer ser galante de verdade, é preciso aprender com o “galã”.

À galinha que abre esta crônica darei o nome de Pretinha. As galinhas, além de anônimas, são minimalistas. Elas precisam apenas de um pouco de ração ou milho, algumas folhas como salada, água e só. No mais, elas passam o dia curtindo sua curta vida, ciscando e trocando confidências com suas comadres, talvez falando sobre o ovo que mais tarde irão botar e torcendo para que este não seja tão grande.

Então, a Pretinha me chamou a atenção por um detalhe. Enquanto suas colegas estavam perambulando e cantarolando, esta minha amiga não saía do ninho. Na verdade, ela estava em “estado interessante”, isto é, grávida. Quando cheguei para colher os ovos, tive que revirá-la, enfiando as mãos sob sua penugem quente e fofa. Incomodada, a Pretinha reagiu com umas bicadas tão suaves que pareciam carinho. Que dó!

Uma galinha, quando grávida, fica nervosa, não aceita comida, não quer papo e afasta quem quer que se aproxime com resmungos e beliscões.  Quem lê isso aqui e já teve galinhas entende dessas coisas. Tanto é que antigamente, “galinha choca” era apelido de gente chata e reclamona, pelo menos lá pelas bandas em que nasci e cresci.

Uma galinha choca para de pôr ovos, emagrece e dá prejuízo ao dono. E para curar o choco de suas galinhas, os caboclos da minha terra usavam métodos bastante desumanos, submetendo o animalzinho a cruéis sessões de tortura. Aqui descrevo algumas maneiras usadas para curá-las.

De início, a galinha era arrancada do ninho, tendo suas asas amarradas uma à outra, o que a impedia de andar e a deixava prostrada. Passados dois ou três dias, caso ainda não estivesse curada, ela seria trancada embaixo de um balaio e ali permaneceria por mais dois ou três dias. Não surtindo o efeito esperado, a coisa ficaria mais séria. O balaio seria levado ao brejo e a galinha, além de trancada, teria de ficar sobre uma poça d’água até que fosse atestada a sua “cura”. Penso que isso seja coisa do passado e que as galinhas de hoje não sofram mais tais atrocidades.

Porque triste é o destino dos animaizinhos, domésticos ou silvestres. O ser humano deveria repensar seu papel na natureza e preservá-la, cuidando melhor de cada vivente.  

Vida longa às galinhas, particularmente a Pretinha, e juízo aos homens – os donos do mundo.

FILIPE


segunda-feira, 20 de novembro de 2023

SERIAM NOVENTA E TRÊS ANOS

 



“Maria, Maria... Vem cá!” 

Enquanto eu preparava o chimarrão e pensava em como começar este texto, mamãe me interrompeu. Cedo ainda, quatro e meia da manhã, voltei ao quarto. Ela insistiu: “Maria... Cadê?...” Eu disse que a Maria vinha mais tarde e que só eu estava ali. Então ela pediu ‘água e comprimido’. “Dois comprimidos!”, ordenou. 

Ontem à noitinha passei um bom tempo ao lado dela, ouvindo suas histórias. Poucos de seus filhos conseguem decifrar aquelas frases. Eu tenho me esforçado bastante e acho que quase consigo. Naquele bate-papo, mamãe me falava “dele”. Dizia que ele estava sumido. Que “agorinha mesmo estava aqui, mas saiu e não sei pra onde foi”. Perguntei quem é. “Marido!”, respondeu de imediato. Eu completei, dizendo que ele deve ter ido a Corgo Preto, porque tem muito serviço pra fazer lá. Ela assentiu desconfiada. 

Desde que papai partiu, mamãe veio para o centro do “palco”. Até parece ter sido essa a intenção dele. Aqui, na nossa família, penso que as atenções se voltavam mais para o pai do que para a mãe – pelo menos de minha parte foi assim e preciso me redimir desse “pecado”. Porém, saindo de cena o Velho, mamãe ganhou um protagonismo que nunca tivera. Digo isso porque, em todas as rodas de conversa, mamãe estava sempre um pouco ao lado. Eu até consigo revê-la, apoiada no batente da porta, tentando participar da prosa até que, um tempo depois e bastante desanimada, recolhia-se ao seu quarto para retomar as intermináveis ‘costuras de mão’. No entanto, muitas vezes, eu me lembro disso também, meu pai, percebendo a situação, dava um salto do sofá onde estava recostado e corria para o quarto a fim de fazer companhia à sua ‘Neguinha’. 

Ninguém mais do que o papai compreendia o universo da mamãe. E por ser tão zeloso de sua Velhinha, seus últimos tempos ao lado dela foram bastante aflitivos. Mamãe estava cada vez mais debilitada e papai tinha pouca esperança da recuperação dela. Foi minha mãe baixar hospital que meu pai quedou-se também, e daquela vez foi tudo de imensa gravidade. Eu, estando aqui para uma visita de rotina, assinei a ficha de internamento dos dois. A impressão era de que papai ficasse poucos dias internado, mas a mamãe não voltaria pra casa. No entanto, mamãe voltou e papai “decidiu ficar”. 

Numa conversa com irmãos, concluímos que talvez papai tivesse esperado um pouco mais para fazer a ‘passagem’ caso alcançasse o estágio de plena lucidez de que mamãe desfruta neste momento. Ela está interagindo conosco como outrora, em seus melhores dias. 

Na longa conversa de ontem, mamãe falava do seu “Cabeça Branca”, que hoje faria aniversário. Ah, era assim que ela se referia a ele em momentos de descontração num passado já meio distante. Essa forma, um pouco jocosa e muito carinhosa, era motivo de riso na família e costumava arrancar algumas gargalhadas do Velho. 

Nosso Velhinho não era festeiro, mas com a melhora das finanças, as tardes de seu aniversário passaram a ser festivas. Ele sempre oferecia bolo de abacaxi e refrigerante para quem aparecesse.  

Desta vez, decidi passar o ‘vinte de novembro’ na casa do papai, ao lado da mamãe. Se na tarde de hoje não vai ter bolo nem refrigerante, também não haverá tristeza, porque o aniversariante não permitiria. 

FILIPE


domingo, 5 de novembro de 2023

A CAPTURA

 


A imagem é soberba e sobre ela nada precisaria ser dito ou escrito. No entanto, tentarei tecer algumas linhas – não com o rigor daquelas tecidas pela amiga aí da foto, é claro. 

Tudo isso me fez lembrar Gilberto Gil e seu belíssimo poema intitulado “Oriente”, no qual ele diz que a “aranha vive do que tece”. Da Elis Regina, outro ícone da MPB e em singular interpretação dessa música, ouve-se que a “aranha duvido que tece”. Não sei o que moveu a Elis, mas para mim essa é mais uma prova de sua genialidade. Provavelmente ela tenha ouvido a música uma única vez e já foi para o estúdio gravá-la. Para alguém que não fosse a Pimentinha, mesmo que ensaiasse por vários dias, jamais brilharia.  

Ah, aranhas... Ainda há quem as repila, mas aprendi admirar essas tecelãs silenciosas. Seu trabalho é noturno e engenhoso, e a matéria-prima de seu engenho é uma tênue fibra que brota de seu abdome pela qual, numa espécie de bungee jump, a artesã gangorreia enquanto tece. 

As aranhas sempre me fazem lembrar um camelô que arma sua barraca num ponto privilegiado da cidade. Ali, pacientemente é esperado o “cliente”, que não tarda a aparecer. E neste momento, estou a apenas três metros da “minha aranha”. Como sua tenda fica discretamente num canto da varanda, firmamos um “pacto de paz e de não agressão”. 

Todas as manhãs, contudo, eu a observo furtivamente e noto que sua casa está bem arrumadinha. Caprichosa, durante a noite ela faz faxina e retoca a teia, deixando a sua rede refeita e limpa. Assim ela pode esperar sossegadamente pelo almoço e o jantar, que costumam vir com fartura. 

As aranhas tecelãs têm outras utilidades além de reduzir o número de insetos indesejados e inspirar ‘cronistas marginais’.  Até os beija-flores precisam delas, porque essa teia é a argamassa para se fazerem ninhos seguros e resistentes. Já vi colibri visitando a ‘dona aranha’ e arrancando parte de sua ‘barraca’ sem que ela pudesse defender seu patrimônio. 

Pior sorte teve a tanajura cuja imagem abre esta crônica. Não sei o que aconteceu ali, mas é fato que o aracnídeo, por ser “exigente à mesa”, não faz de toda presa uma refeição. Ontem mesmo encontrei uma pequena barata ferida e decidi doá-la à minha amiga. Com um papel, apanhei a moribunda e a lancei contra a teia, que a reteve. A ‘dona do barraco’ despertou de seu sono, que parecia profundo, e se aproximou desconfiada do provável petisco. Com as patas dianteiras, que ficam a “quilômetros” da boca, ela começou a examinar cuidadosamente cada detalhe da agônica baratinha, que esperneava aterrorizada diante de sua algoz. Saí de perto, deixando-as em paz (ou em guerra) e fui cuidar de meus afazeres. Quando voltei, não havia mais barata na teia e a aranha já estava recolhida aos seus aposentos. Não sei se houve acordo entre elas, mas também não acredito que a aranha tenha sido indulgente com sua “visita”. 

Se a tanajura ou a barata escaparam, acho difícil. O certo é que neste momento a aranha parece feliz e realizada, descansando em seu casulo. Até que reapareça o intruso beija-flor! 

FILIPE

sábado, 21 de outubro de 2023

A GUERRA E OS BOÇAIS

 


Nos anos oitenta, quando eu terminava o segundo grau (hoje ensino médio), havia um colega de sala que costumava usar um apetrecho com a suástica. Como eu já não tinha proximidade com aquele rapaz, o seu gesto acabou piorando as coisas, gerando certa antipatia em nós. Fato é que eu não entendia por que aquele moço, moreno e de traços nordestinos, pudesse ostentar um símbolo nazista – algo no mínimo contraditório. Bocudo que sempre fui, talvez eu tenha mofado dele sobre essa bestagem, embora eu não me lembre de ter feito isso. Certo dia, porém, um professor perguntou a ele o porquê daquela insígnia e teve como resposta que seria um gesto em prol da causa palestina. Como eu não sabia nada sobre o movimento palestino, aquela informação, que me chegou de forma enviesada, foi de pouca serventia e não melhorou a imagem que eu tinha do jovem rebelde.

Aqui, abro parênteses para a causa judaica. Parte de meus estudos foi realizada durante a ditadura militar e, não se sabe por quê, naquele tempo os professores de história não citavam o nazismo. Todavia, foi de um professor de artes, que dava aula nas noites de sábado, de quem ouvi pela primeira vez relatos sobre os campos de concentração nazistas. Aquela aula de história dada por um professor de educação artística deve ter sido a mais proveitosa de todas as que tive naquele ano de 1981. A partir de então, meu interesse sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto foi despertado, mas a questão palestina ficou à margem de minhas leituras.

Embora eu não seja ativo nas redes sociais, fiquei sabendo que há nelas uma batalha insana entre defensores do Hamas e partidários das forças israelenses. Pelos ânimos tão acirrados, tem-se a impressão de que todos conhecem a história do povo hebreu e a saga de seus “primos” palestinos, tornando-se também especialistas em Oriente Médio e, mais particularmente, na Faixa de Gaza. Contudo, desconfio que pouquíssimos consigam sequer localizar no globo terrestre o mapa da região conflagrada.

De minha parte, penso ser impossível, assim de afogadilho, tomar partido de um ou outro grupo, porque as coisas são muito complexas. Os judeus, um povo que foi milenarmente perseguido, obteve a demarcação de um território para si logo após o fim da Segunda Guerra – e isso me parece justo. O problema é que esse território estava sendo ocupado há séculos pelos palestinos, que foram expulsos em benefício dos “novos inquilinos” – e isso me parece injusto.

Não podemos aceitar passivamente o terrorismo, seja de guerrilheiros muçulmanos ou de forças regulares israelenses, porque, se no Oriente Médio impera o terror, nas redes sociais e nas rodas botequeiras tem-se o horror. E dessa forma, as relações humanas vão sendo vorazmente destruídas pelas labaredas ideológicas de lá e pelas boçalidades de cá.  

FILIPE

sábado, 7 de outubro de 2023

A BIGORNA

 


Eu poderia dizer que sou um homem de sorte, só por que tenho uma bigorna. Mas se você não tem uma bigorna, então você não sabe o que é ser uma pessoa completa, realizada mesmo, como eu.

Há tempos, venho montando uma pequena oficina de carapina. Não, não sou carpinteiro e muito menos marceneiro. Eu me dou por carapina, esse protótipo de carpinteiro, que é o pioneiro, o desbravador dessa arte de cortar e pregar tábuas – um pouco como fazia o ‘Carpinteiro de Nazaré’, de nome José, que talvez você conheça. E é isso que faço ultimamente.

E por que abri o texto, falando de bigorna? Vou explicar.

Tenho feito bastante coisa utilizando sucatas de madeira. Fiz mesas, banco, prateleiras e até um baú. Não digo que meus móveis sejam rústicos, mas toscos. Além do martelo, sempre usei serrote e facão, que não deu muito certo. Meu baú, embora elegante, ficou meio desengonçado, e os pregos, velhos e tortos, avacalharam bastante. Ah, a bigorna não deixaria isso assim. Ela é ‘gente boa’ pra caramba. É fato que sua relação com o martelo nunca foi das melhores. Sua paciência chega a irritar o ‘companheiro’, que cisma de ‘espancá-la’ sempre que está ‘nervoso’ e, no entanto, ela nem se mexe. Ontem mesmo, xinguei o martelo porque ele me acertou o dedo. Já de uma bigorna, nunca se ouviu dizer que alguém fosse ferido por ela. Pode ver que ela está sempre quietinha no canto dela, só observando.

De uns tempos pra cá, adquiri furadeira, esmeril, plaina de mão... mas faltava essa amiga.  A cada aquisição eu lembrava de meu saudoso pai, que sempre dizia: “Como eu queria ter uma ‘caixa de ferramentas’ para poder trabalhar como carpinteiro!...”  Ah, meu pai... Se eu pudesse voltar ao passado, compraria todas as ferramentas para o senhor... Papai tinha ferramentas bem interessantes como: arco de pua, enxó, serrote, formão, martelo, torquês... Mas havia outras das quais ele precisava muito e não podia comprar, dentre elas, quem sabe uma bigorna...

Felizmente, embora já idoso, meu velho conseguiu realizar parte do sonho. Ele chegou a possuir ferramentas bem modernas e delas fez uso. Quando partiu, deixou esmeril, furadeira, maquita e outras, todas funcionais e de boa procedência. Mas não a bigorna!

Por que insisto na bigorna? Explico mais uma vez.

Você nunca viu alguém saindo de casa para comprar uma bigorna. Eu também não. Mas num exercício de imaginação, vejo o Firmino dizendo para a esposa: “Serafina, estou indo a Guiricema pra comprar uma bigorna”. Chegando, ele entra numa loja, pergunta ao balconista se tem bigorna e ouve como resposta: “Ih, seu Firmino, tem não. Eu mesmo nem sei quiqueísso...” O Firmino não desanima e vai mais longe, vai a Visconde do Rio Branco. “Lá tem muitas lojas e vou achar”, ele diz de si para si, mas dá com os ‘burros n’água’. Ninguém tem bigorna e apenas os mais velhos conhecem tal ferramenta. “Alguém ainda usa esse trem?...”, pergunta, sem disfarçar o riso de canto de boca, um homem careca e de bigode (talvez o dono da “birosca”).  

Não sei se o Firmino achou a bigorna ou dela desistiu. Mas eu comprei uma pela internet, que chegou soberbamente embalada, deixando um rastro de curiosidade. Houve até alguém que veio à minha casa só para conhecer a novidade, que apresentei com indisfarçável orgulho.

Dois irmãos meus têm oficina e fazem prodígios; um tio faz móveis incríveis com madeira descartada; um concunhado poderia ser mestre em qualquer liceu de ofícios. Contudo, há uma diferença entre nós e que me deixa bastante abobado: apenas eu tenho uma bigorna!

FILIPE

sábado, 23 de setembro de 2023

VILAS BOAS?



Você, que não mora nessa vila, não sabe que casa é essa. Eu também não saberia, caso alguém me mostrasse a foto da forma que eu a apresento aqui. E eu nem teria motivo para publicá-la, porque essa casa não teve grande destaque na minha vida, embora ela esteja presente nas minhas memórias afetivas desde a mais remota infância.

Mais de meio século atrás, a casa da foto era uma ‘vendinha’ do senhor Nésio – esse o apelido do homem que provavelmente se chamava Onésimo. Eu gostava de entrar naquela venda, que não tinha muita coisa além de lápis, borracha, balas, chicletes, cereais e outras mercadorias das quais não tenho sequer um fiapo de lembrança. Certa vez, entrei com minha irmã mais velha para comprar um único chiclete, que fora salomonicamente dividido ao meio por nós. Todavia, o assunto aqui não é a ‘casa de venda do Nésio’, embora ela faça parte da paisagem desta crônica, nem  ‘gomas de mascar’. Mas quero falar de minha terra natal.

Iniciando a partir da ponte sobre o riacho que dá nome ao vilarejo, e que antigamente tinha apenas duas ruas – uma seguindo para o cemitério e com acesso à estrada para o povoado de D. Silvério, e a outra com acesso à estrada para a serra da Mutuca –, o Córrego Preto é um povoado encravado ao sopé das montanhas de Guiricema, nas Minas Gerais. Foi nesse arraial que tive o primeiro contato com aquilo que para nós seria uma “cidade”. A capela de São José bem destacada no alto de uma pequena colina, as duas ou três casas de venda e a padaria davam “ares metropolitanos” ao vilarejo.  E foi ali também, nas Escolas Reunidas Galdino Leocádio que minhas mãos trêmulas, conduzidas pelas mãos hábeis e firmes da professora dona Aída de Almeida, desenharam pela primeira vez as vogais e consoantes do meu nome.  

O arraial, agora com estrutura mais moderna, conserva ainda o charme de antanho. As casinhas, todas muito bem cuidadas, térreas e sem muros, dão para a calçada, e de suas janelas ainda surgem olhos furtivos espiando, desconfiados, o “estrangeiro” que chega.

No entanto, uma coisa sobre essa comunidade tem me incomodado bastante. Não sei por quê, mas na primeira metade do século passado, mudaram o nome do arraial. Bem à maneira provinciana dos coronéis daquele tempo, e talvez num exercício de bajulação, trocou-se o nome da vila de ‘Córrego Preto’ para ‘Vilas Boas’ com o fito de “lamber”, em vida, um ministro do STF. Antônio Vilas Boas, o magistrado que nasceu naquelas cercanias, morreu nonagenário em fins dos anos oitenta e, desdenhoso da homenagem recebida, jamais prestigiou seu povo com ao menos uma visita.

O pior é que eu, na minha inocência, gostava dessa denominação e pensava que, por a ‘vila ser boa’, resolveram denominá-la “Vilas Boas”. Na escola, entoávamos um hino que era mais ou menos assim: “Vilas Boas é uma cidade pequenina / Boa assim eu nunca vi / Tem um rio e uma igrejinha na colina / E crianças bem gentis. // Vilas Boas! Vilas Boas! Quem me dera lá voltar para morar, para morar! / Vilas Boas! Vilas Boas! Quem me dera lá voltar para ficar, para ficar!”

O meu pedacinho de chão continua sendo ‘Córrego Preto’. Para facilitar a expressão, uso “Corgo Preto”. E como os pioneiros córrego-pretanos’, prefiro a forma poética e ainda mais apocopada, que é Corpreto. 

Desconheço Vilas Boas, mas amo Corpreto!

FILIPE

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

O IRMÃOZINHO SEXAGENÁRIO

 

Ele está completando sessenta anos neste sete de setembro! Não, não dá pra acreditar. Ainda o vejo menino, as bochechas gordinhas e rosadas, e as peraltices em casa e na escola onde ganhou o apelido de Cachorro Zangado após morder um colega briguento. Também arrastou pela infância a injusta fama de “rudo”, que para nós significava “aquele que não aprende”. Preocupado com isso, papai comprou para ele um remédio, de nome ‘memoriol’, para “torná-lo inteligente”. Eu me lembro do sabor daqueles comprimidões, que experimentei furtivamente.

Não bastasse a pecha de ‘rudo’, esse mano conviveu com a dolorida e ainda mais injusta fama de ‘preguiçoso’. Sobre essa suposta indisposição para o trabalho, aprontei uma da qual ele nunca esqueceu. Certa vez, estando nós dois na cozinha do avô Sebastião, decidi fazer uma provocação e disse: “Vovô, este seu neto diz que, quando crescer, vai ser fazendeiro!” A observação do meu avô veio na medida certa de meu maligno deleite: “Só se for um fazendeiro quebrado...” Isso deixou o meu irmãozinho tão desapontado, que não sei se seu aborrecimento estava mais fincado na minha pergunta ou na resposta do avô.

Meu Deus. Esse menino é extremamente trabalhador! Está sempre ocupado com alguma coisa, seja na casa dele, na casa dos pais, na sua comunidade... Onde quer que esteja, ele está laborando. Engenhoso, trabalha como pedreiro, pintor, eletricista, encanador, marceneiro e até serralheiro. Esse homem é um estouro! E quanto à sua inteligência... espere aí. São raras as pessoas dotadas de tamanha argúcia e sabedoria como ele. A pouca escolaridade não oblitera sua impressionante compreensão do mundo e da vida.

Conversar com este irmão é como passear pelos campos floridos da memória. A maneira singular com que reconstrói fatos já encardidos faz com que tudo fique novinho. É como se algo acontecido há décadas transmigrasse para ontem. E não apenas isso. Ele também tem sempre uma palavra salvadora para as mais difíceis situações que lhe são apresentadas. E o seu bom humor então?... Falar com esse mano é por demais prazeroso e não há como não dar risada de alguma coisa. Ele tem lá seus perrengues, que são muitos, e já teve grandes dissabores também, mas jamais choraminga as tristezas e toca a vida com uma leveza incomum.

Na infância, tive convivência difícil com este irmão e a culpa nunca foi dele, confesso envergonhado. Nossos conflitos começavam com uma implicância que sempre tive com as pessoas que me são próximas. Quem convive comigo sabe que sou um bicho esquisito. Uma espécie classificada por alguns como aquele de ‘gênio forte’, ‘temperamental’ ou ‘positivo’ – metáfora bamba para a palavra ‘malcriado’. Felizmente nem tudo se perdeu.

Aos meus irmãos mais velhos, deixo registrada aqui minha gratidão.  Isso por que esses, cada qual à sua maneira, apartaram minhas muitas brigas com o Irmãozinho. Para pôr fim às rinhas, da Mana Véia recebi sonoras e ardidas cabadas de vassoura; do Mano Véio, doídas bicudas – paga essa mais do que merecida. Além de estar feliz por externar aqui esse agradecimento aos irmãos mais velhos pelo justo corretivo, minha alegria se completa em poder homenagear o Irmãozinho pelo seu ‘sexagésimo’. 

Ah, esse irmão!... Bondade está ali, bem concentrada. Gente fina, educada, que sabe começar uma prosa, dar rumo nela e terminar com um quase aplauso do interlocutor. Mas estou aprendendo. Um dia, quem sabe quando eu crescer, talvez consiga um pouco daquela sabença.

FILIPE


sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O 'VENTANIA'


 

Finalmente o Mano Véio apareceu por aqui. Sua presença luminosa foi também um vento forte, ruidoso e breve.  Mas ele é assim mesmo. De vez em quando deixa seu cantinho nas Gerais para fazer um pequeno passeio que inclui dezenas de visitas rápidas. Ele desentoca parentes distantes dos quais ninguém se lembra e os traz para a roda da família como se fossem próximos, quase irmãos.  

Não estava prevista essa sua visita. Contudo, obstinado que é, estando no Paraná e de volta para Minas, pegou um avião de Curitiba a Campinas e em pouco tempo aportou na rodoviária. Fomos buscá-lo naquela tarde. Estava animado, falando de suas realizações e de seus planos. Mas no dia seguinte, antes de clarear, ele já pegaria a estrada rumo a outros compromissos, que são sempre muitos.

Quinze minutos depois do encontro na rodoviária, chegamos em casa. “E aí, filipão... Então é aqui que você se esconde, né?...” Estava eufórico enquanto era conduzido às entranhas da casa. Na minha humilde biblioteca, divertiu-se abrindo armários, folheando livros, fazendo perguntas e atropelando respostas.

De volta à cozinha, um café estava a postos acompanhado de doces, queijo e pães. Frugal na mesa, tomou café sem açúcar, mas experimentou um doce e se surpreendeu ao saber que foi feito por mim. Gostou. Terminado o café, foi para a varanda rezar as Vésperas. Enquanto ele estava por lá, com a porta fechada para não ser incomodado, eu tirei a mesa do café e comecei a preparar o jantar – uma sopa. Sua oração foi rápida, porque minutos depois já estava falando ao celular, dando gargalhadas. De volta à cozinha e me vendo preparar a janta, bateu na barriga e disse que não jantaria, porque estava satisfeito, e já desceria para o quarto a fim de dormir. Tinha sono, precisava descansar para se levantar cedo. Continuei cortando legumes e preparando a panela para cozer aquela miscelânea, que ficaria boa se não fosse...

Terminado o preparo, pluguei a panela e fui cuidar de outras coisas. Ao voltar, vi que o tempo de cozimento terminou, mas eu não abriria a panela porque a pressão residual faz com que a cocção continue sem necessidade de gastar mais energia. O mano, que disse não ter fome, já estava com prato e colher na mão e de olho comprido no fogão. Perguntei se ele poderia esperar um pouco. Não podia. Tinha sono e queria comer logo; caso contrário, dispensaria. Tive então que apressar a abertura da panela e liberar o vapor, fazendo com que a sopa ficasse meio crocante – talvez crua mesmo. Não gostei, mas ele disse que estava boa e até repetiu.

Enquanto meu irmão tomava a sopa, devagar porque estava muito quente, ele teorizava sobre nosso pai. Segundo disse, papai teve três fases na vida, que deveriam ser registradas. A primeira deu-se quando ele era um jovem professor; a segunda foi quando papai estava com os filhos pequenos; finalmente, a terceira contempla nosso pai já velho e aposentado. Enquanto eu pensava nas ‘três fases’ paternas, ele retificou dizendo que não seriam três, mas quatro fases, e que eu deveria descrever isso em crônica. Eu disse que ele escreve bem e deveria pôr isso no papel. Mas não, ele não queria escrever. Eu é que teria de fazê-lo. Enquanto eu matutava sobre cada uma das fases da vida do papai, que foram três, depois quatro, o mano, que deixava a mesa de jantar, asseverou que a vida do papai deveria ser dividida não em três ou quatro, mas em cinco fases. Contudo, antes que ele me explicasse, não consegui segurar o riso, que saiu farto, e o Bom Mano desistiu desse roteiro biográfico do nosso Velho.

FILIPE

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

MEU AVÔ SEBASTIÃO

 


A pedido do ‘irmão mais velho’, tento escrever algumas linhas sobre esse homem que, se estivesse vivo, completaria 120 anos neste 10 de agosto.

‘Vovô Bastião Lopes’, conforme chamávamos o nosso avô paterno, era um homem severo, de muita ação e poucas palavras. Sua voz metálica era usada apenas para abençoar os netos, dar algumas instruções a quem fosse trabalhar para ele e, no mais, para aboiar o gado. Sua propriedade constava de um sítio, com cerca de 100 hectares, além de um bom plantel de vacas leiteiras, novilhos e bois carreiros. Na sua casa, a primeira na região a ter geração própria de energia elétrica, havia um moinho d’água que produzia fubá para seu sustento e o da vizinhança.

Esse meu avô, que morreu pouco depois de completar setenta anos, teve uma vida de intenso trabalho, mas foi muito bem-sucedido em seus empreendimentos. Partindo do ‘zero’, ele conquistou um notável patrimônio. Meu pai sempre dizia que o sol nunca o surpreendeu na cama, porque vovô sempre se levantava aos primeiros clarões do dia.

Quituteiro dos bons, em sua casa o fogão era quase sempre dele. A refeição farta e repleta de frituras, variava de ovos fritos, torresmos, queijo frito e outros acepipes. Muitas vezes pude vê-lo ao fogão a lenha, cozinhando para uma turma que poderia chegar a uma dezena de trabalhadores. Terminado o almoço, vovô enchia uma série de caldeirõezinhos da seguinte forma: primeiro ele punha o angu, que forrava o fundo do caldeirão a fim de tampar eventuais buracos para a comida não escapar (um segredo das cozinheiras do meu tempo de roça); sobre essa “argamassa”, ia o feijão-preto que banhava com seu caldo espesso uma torre de arroz ladeada por batata-doce, carne, torresmo, abóbora, couve etc. A sobremesa também se fazia acompanhar: pedaços robustos de rapadura com soberbos nacos de queijo curado, que o próprio vovô fazia, iam numa vasilha à parte. Tudo aquilo era ajeitado numa grande cesta, que ele cobria com um pano branco e punha sobre o ombro para levar até o pasto onde seus companheiros roçavam. Sob a sombra confortável de uma árvore, cada homem pegava seu caldeirão, sentava-se sobre o cabo de sua foice ou numa munha macia de capim, tirava o chapéu e fazia ali a refeição. Enquanto a turma comia e proseava, meu avô pegava uma foice e dava continuidade ao serviço, roçando também. Terminada a refeição, vovô recolhia as vasilhas e voltava para casa a fim de dar sequência nos afazeres domésticos, que incluía uma tábua de queijos que ele fazia toda as tardes.

Mas aconteceu algo numa manhã ensolarada de dezembro, era domingo, quando eu festejava meu aniversário com um tio muito querido. Nesse dia havia muita gente na casa de meus avós maternos: meus irmãos, primos, tios etc. Então eu estava feliz e particularmente eufórico, porque esse meu tio prometeu que à noite teria baile. Eu nunca tinha ido a um baile... Mas uma tia interrompeu tudo quando chegou assustada com a notícia: “Menino, sabe não?... Seu avô morreu!”

Aquela festa, que não chegou a acontecer, ficou marcada e foi a última.

FILIPE

sábado, 29 de julho de 2023

IMPACIÊNCIA

 


Dia desses, decidi sair mais cedo para a caminhada com os cães. Na verdade, são eles que saem comigo, arrastando-me pelo bairro numa latição de tirar a paz até dos anjos.

Assim que alcançamos a rua, ajustei o fone de ouvido para ouvir mais um episódio da Rádio Novelo naquele começo de tarde ensolarada. Tudo ia bem até que alguém perturbou meu sossego. Um homem de bermuda, boné, porrete e celular ligado em som alto, que vinha em sentido contrário, parou e quis conversar. Eu não conseguia ouvi-lo por causa dos meus fones; já ele não me ouvia por que o som dele estava muito alto. Como reza a boa educação, desliguei meu aparelho; ele, no entanto, continuava barulhento, embora insistisse em conversar. Eu conheço aquela figura há anos, mas nunca soube seu nome.  

Eu tinha pressa. Queria continuar ouvindo meu podcast, precisava voltar pra terminar o almoço e tentei me despedir. Em vão foram meus planos, porque ele desligou o som, deu meia-volta e me acompanhou. Sem ter afinidade comigo e por uma brutal falta de assunto, começou a me fazer perguntas. Primeiro sobre a ex-namorada, que conheço de longa data, e depois entrou numa seara que sempre evito.

Quem me conhece, sabe: falo sobre política com raríssimas pessoas. Evito porque tenho opiniões bastante consolidas e esse assunto costuma foguear-me os ânimos. Mas como aquele homem queria conversar, ele falaria sobre qualquer coisa e arriscou a política. Desanimado com o país, resmungou suas frustrações e quis saber minha opinião. Já adiantei que, pelo jeito, ele é de direita e eu sou de esquerda. Dessa forma, seria melhor a gente mudar de assunto. Mas ele não queria mudar a pauta. Falando mal do atual governo, acrescentou que Haddad não sabe economia e não deveria ser ministro da Fazenda. Respondi que Haddad é jurista, tem doutorado em filosofia e é bom gestor. Ele se apressou a dizer que fez economia na PUC, tendo sido aluno de Fernando Henrique, Aloízio Mercadante e Paul Singer. Perguntei o que FHC foi fazer no curso de economia da PUC, sendo ele sociólogo da USP. Fernando Henrique, quando chegou do exílio, deu aulas de sociologia política na PUC – explicou.

Chegando a uma esquina, eu desceria à direita, como sempre faço, mas segui adiante. Pensei: ele vai desanimar e vai voltar. Que nada. Continuou me seguindo, me obrigando a percorrer o bairro inteiro. Os cães, alheios à minha aflição, bem que gostaram do prolongamento, embora um palmo de língua sinalizasse outra coisa. Nesse momento, ele me perguntou se eu não temia que o Brasil virasse uma Venezuela. De saco cheio, perdi as estribeiras e descarreguei:  “Você, um economista, acredita nessas coisas? Ah, tenha paciência!...Tem gente ignorante que acredita em terra plana... Mas você tem informação!” Ele se assustou com minha reação: “Calma! Estamos apenas conversando...” Quase pedi desculpas pelo meu destempero, mas fiquei quieto.

Passou o assunto Venezuela, ele trouxe a guerra da Ucrânia e disse que gosta mesmo é do Putin. Aquele, sim, é um homem de respeito, que defende os valores da família etc. Rebati, dizendo que Putin é horroroso e Zelensky irresponsável. Ele concordou com a segunda parte e mudou mais uma vez de assunto, agora elogiando os militares. Não deu certo de novo. Falei que alguns deles não conseguem sequer defender a própria honra, muito menos a pátria – e citei alguns nomes. Então ele tentou acertar as palavras, dizendo que ultimamente não temos militares como Castello Branco, Costa e Silva, Médici... Aí, tive de interrompê-lo antes que uma síncope cardíaca me apagasse. “Escuta aqui: você não conhece a história do Brasil?! Não sabe que essa ditadura militar foi das mais horríveis e covardes do continente?” Eu ia continuar, mas ele interveio: “Bom... Você é professor e eu não.” “Nada a ver. Sou formado em matemática, mas procuro conhecer a história do meu país. É preciso ler pra poder falar dessas coisas, senão fica sem referências. E você já disse lá atrás que parou de ler.”

O assunto não acabava nunca, mas a caminhada, sim. Apontei minha casa e ele me acompanhou até o portão. Eu já me despedia, sem convidá-lo pra entrar (coisa feia... acho que é a primeira vez que faço isso) quando ele quis saber a minha idade, não sei por quê. Então ele disse que pareço ser bem mais novo – embora não me convencesse disso. E sem que eu perguntasse, ele me falou que tem ‘sessenta e seis’. Retribuí a gentileza, dizendo que aparenta bem menos. “Está um garotão ainda!”, eu disse sem convicção.

Antes de ir embora, ele me pediu um ‘favor’. Perguntou se poderia dar um beijo nos cachorros. “Claro!”, respondi incrédulo.  Ele beijou a cabeça de cada cão, perguntou o nome deles e se foi.

Ao escrever estas linhas, já passados muitos dias daquele episódio, senti necessidade de reencontrar aquele senhor e lhe dar um abraço. E também pedir perdão pela minha impaciência.

FILIPE

sábado, 15 de julho de 2023

VEXAME VERDE-OLIVA

 


No começo desta semana, um militar teve de comparecer à CPI que investiga atos antidemocráticos. Até aí, normal, porque outros militares já deram depoimentos a diversas CPIs sem que algo de assombroso acontecesse.

Mas este depoimento chamou a atenção por um motivo inusitado, quase pitoresco. Um tenente-coronel do Exército compareceu à comissão inquiridora imponentemente fardado, com o peito estufado repleto de medalhas, insígnias e outras quinquilharias – não se sabe, mas talvez com intenções intimidativas. Chegando, tomou assento à mesa, impostou a voz e começou a ler numa folha de papel os seus “grandes feitos” pela pátria e por todos nós.  Depois, alegando direito ao silêncio conseguido via habeas corpus junto ao STF, permaneceu calado. Durantes aquelas muitas horas em que ficou sentado no “banquinho da disciplina”, ninguém conseguiu arrancar do sujeito, antes tão falastrão, ao menos uma interjeição. Uma situação no mínimo vexatória para ele e seus pares, gente que esbanja altivez e valentia perante os subordinados.

Não trago na alma ressentimentos aos fardados. Servi na ‘força terrestre’ durante dois anos e, embora ainda vivêssemos sob a tirania da malfadada ditadura militar, tenho boas lembranças da caserna. Recordo-me de que muitos de meus superiores nos tratavam com respeito e, não querendo forçar muito, eu diria que recebíamos um tratamento até carinhoso de alguns sargentos e oficiais. Prova disso é que o major, comandante da unidade, quando visitava os departamentos, cumprimentava cada soldado, chamando-o pelo nome. Esse tratamento eu já não tive em certas empresas cujos chefes eram, obviamente, civis. Alguns destes eram arrogantes, prepotentes e, na falta de melhor qualificativo, canalhas. Um gerente de uma grande loja onde trabalhei jamais falava com funcionários rasos e sequer lhes dava um bom-dia. Ele dizia às suas auxiliares, que eram as chefes de departamento, não suportar repositores. Eu era repositor.

Sobre os militares, há uma discussão quanto à necessidade ou não de uma força armada para garantir o ‘estado de direito’. Não tenho dúvidas sobre a necessidade de ao menos uma ‘guarda nacional’ armada e bem treinada para cuidar de nossas fronteiras e garantir a paz social. Todavia, essa instituição jamais poderia extrapolar suas funções, avançando sobre assuntos estranhos às suas atribuições constitucionais. Da mesma forma que um civil não pode entrar num quartel para comandar soldados, um militar não tem por que se meter em repartições públicas civis.  A famigerada escola cívico-militar é uma dessas gangrenas autoritárias que faz lembrar o histriônico Plínio Salgado com suas “galinhas verdes” (caso o raro leitor desconheça o assunto, sugiro pesquisar ‘integralismo’ no Google).

Voltando ao o episódio da semana, este foi para mim uma celebração. Ver um alto oficial das forças armadas que, suspeito de atentar contra a democracia, é repreendido por civis e obrigado a engolir calado sua bílis – tão verde quanto sua farda – torna-se um marco civilizatório para nós e um brinde às futuras gerações.

FILIPE

sábado, 1 de julho de 2023

NATUREZA SUBJUGADA


 

Não me canso de contemplar essa foto que traz as entranhas de uma árvore cujas raízes, humilhantemente expostas de ponta-cabeça, evocam um ‘cadáver insepulto’.

Fico imaginando quem foi a dona desse “corpo” e o que pressentiu quando dela se aproximou a motosserra. Claro que a desventurada árvore gostaria de sair em disparada “pelos vales e campinas” até que a tenham perdido de vista. Mas a natureza não lhe permite movimentos e ela teve de encarar a morte ali mesmo, heroicamente estática.

Que mal teria feito aquela árvore? Ela só faz o bem. Diariamente, quando adulta, uma única árvore pode transferir para a atmosfera mais de cem litros de água, que formam as nuvens. As matas são responsáveis pelo controle da temperatura e pelo ciclo das chuvas; sem elas, nosso planeta seria um deserto inóspito.

Tento fazer a minha parte. A nossa casa é literalmente abraçada por árvores, com mangueira, abacateiro e até amoreira acariciando o telhado. Se as calhas entopem ou se uma telha desliza, subo lá e tento consertar; se eu não conseguir, o Cido, que é mais corajoso (ou sem juízo...), resolve pra mim.

Um galho da mangueira já virou dormitório de um barulhento bem-te-vi, que sempre me dá bom-dia ao alvorecer. Tenho observado que esse “menino” traz para seus aposentos um pequeno lanche, que é uma frutinha verde e redonda. Ele a rói toda ou em parte, desprezando o caroço. No chão, bem embaixo da cama dele, fica sujeira. Por capricho ou preguiça de procurar um banheiro, o bem-te-vi suja pra eu limpar. Contudo, ainda fico orgulhoso desse amigo madrugador e porcalhão que me chama para contemplar o amanhecer.

Um pouco acima do bem-te-vi, numa parte mais alta do beiral, está uma grande caixa de marimbondos. Faz mais de ano que eles se mudaram para aquele lugar e de lá não sairão. Jamais vou incomodá-los, até porque são pacíficos e a prudência me aconselha a não provocá-los também, é claro.

No quintal as coisas estão um pouco complicadas. Pus no pé de manga-espada uma pequena caixa de madeira para os passarinhos. Mas o passarinho deu bobeira e quem a aproveitou foram as abelhas. A colmeia começou pequena, dentro da caixa, e depois cresceu e já tiveram de fazer um puxadinho para abrigar todo o clã. Mas preciso me entender melhor com essas aí, porque elas não são da paz. Anteontem, recebi uma bela fisgada na nuca, que não me foi nada agradável. Mas as abelhas podem ficar tranquilas, porque não as molestarei.  Todavia, um acordo teremos que fazer – talvez uma demarcação de território para que possamos viver em harmonia. Enquanto isso, vamos conversando.

Já com as pombinhas silvestres não teve acordo. Durante muito tempo, deixei que elas chocassem na minha varanda. Tudo ia muito bem, lindo e maravilhoso até que... uma multidão de piolhos invadiu minha casa! Foi uma coceira de tirar o sono, literalmente. Não destruí o ninho delas, mas terminada a última ninhada, não “renovei contrato” e fui além: obstruí o acesso às vigas sobre as quais nidificavam. Ainda ontem uma delas esteve me fazendo uma visitinha, como quem não quer nada, mas quer tudo. Fingi que a prosa não era comigo e ela se foi.

Não moro na floresta, mas bem que eu gostaria. Tenho minhas árvores e as prezo com prazer. No entanto, na redondeza há cada vez menos árvores. Se eu pudesse, deportaria para o deserto todos os predadores do meio ambiente, que seriam condenados a se abrigar sob rochas, caminhar sobre areia quente e conviver com animais peçonhentos, bem típicos daquelas regiões áridas. Isso porque o paraíso não é para todos, mas apenas para quem o preserva.

FILIPE

sexta-feira, 16 de junho de 2023

VELHICE E LIBERDADE


 

“Na natureza há três sexos: sexo feminino, sexo masculino e sexagenário”, disse certa vez o grande Millor Fernandes, que certamente tinha vivência e experiência pra fazer tal afirmação.

Sexagenário que sou, ainda não estou preocupado com isso, mas percebo que a velhice não é aquele fantasma que me assombrava a infância, a adolescência e parte da maturidade. A idade nos limita fisicamente, mas nos liberta de muita coisa. De uns tempos para cá, por exemplo, sou mais seletivo em meus contatos e meu círculo de amizade tem sido mais restrito – e muito mais sólido também. Mas a velhice não pede licença e chega empurrando a porta. Explico.

Dia desses fui ao dentista e após avaliação minuciosa de meus dentes, ele disse: “Seus caninos e incisivos estão todos muito bem preservados, mas com pequena retração da gengiva; já os molares sofreram algum desgaste, mas de natureza fisiológica. Tudo isso está dentro da normalidade”. Em outras palavras, o dentista me disse: “Você está velho, mas seus dentes estão bem conservados e deve demorar um pouco pra gente pensar em trocá-los por uma dentadura!”

No mês passado, quando fui ao médico, este já foi mais direto, cruel até. Depois de analisar meu prontuário e os resultados de um exame que pediu, ele me restringiu certos alimentos, recomendou outros e disse: “Daqui pra frente, meu caro, as coisas só vão piorar pra você!” Ri sem graça da situação e respondi que quero experimentar essa piora, sim, mas que ela vem pra todos, inclusive pra ele.

Fora esses perrengues da saúde, toco a vida com a simplicidade de um matuto. Em casa cuido de minha companheira, de meus cães e, mais ou menos, do meu quintal. Não vejo televisão (que nem tenho) e evito ler notícias ruins. Tenho um fogão a lenha fumacento, que acendo de vez em quando para cozinhar feijão e mandioca. Ah, gosto de fazer doce também, mas tenho evitado a sacarose. Neste momento, o fogão já está sem as labaredas que se veem na foto lá em cima, mas a cozinha está quentinha e meus cãezinhos dormem tranquilamente.

Concluindo, quero envelhecer com a liberdade de quem não tem a preocupação de agradar, é espontâneo em todas as relações e não tem o ímpeto de aborrecer quem quer que seja.

Quero que a minha felicidade seja como uma brisa, que passe por mim e vá por aí, sem que força alguma possa detê-la.

FILIPE

sexta-feira, 2 de junho de 2023

A MAGIA DO PÃO FRANCÊS



Eu vinha de uma longa viagem, que me tomou uma noite inteira e um pedaço do dia.  Quando cheguei na minha cidade, entrei num supermercado a fim de procurar algo que me aplacasse a fome e fui direto à padaria. Dentre as inúmeras tentações, decidi comprar pães franceses (ou pão de sal, conforme se dizia antigamente na minha terra). Aquela não seria a minha refeição, mas tomado de fúria famélica, devorei apressadamente dois pãezinhos como se fossem a melhor das iguarias.

O ‘pão de sal’ é iguaria, sim, pelo menos para mim. E sei que ele foi também o petisco preferido de meu pai. Muitas vezes, eu me lembro, papai, ao passar por uma padaria, consultava o bolso e, confirmado o ‘saldo’, entrava e comprava uma sacola de ‘pães de sal’. De imediato, pegava deles e repartia com quem o acompanhasse. Depois pegava outro e o comia sofregamente enquanto caminhava pela estrada poeirenta, no caminho de casa.

Enquanto eu comia o pão naquele começo de tarde, eu lembrava de meu pai, mas não só. Eu lembrei também de um sujeito que encontrei numa das rodoviárias pelas quais passei. Maltrapilho, um homem chegou até mim, dizendo: “Aqui, eu não estou pedindo dinheiro. Dinheiro, não quero de jeito nenhum. Eu só quero um pedacinho de pão, porque não almocei nem jantei e estou com muita fome!”

Olhei bem para aquele senhor e o reconheci de outra passagem. Então eu lhe disse: “Já virou freguês, né? Outro dia você me procurou...” Ele sorriu desconcertado e quase me pediu desculpas, mas foi bastante eficiente no serviço: “Pois é... Eu peço porque estou muito precisado.” Então eu disse que lhe daria uma coxinha e pedi que me acompanhasse até a lanchonete, o que ele recusou veementemente. Disse que a dona da lanchonete não gosta dele, não se sabe por quê, e que nunca ia pôr os pés lá. Insisti, dizendo que ele fosse comigo e nada lhe aconteceria, porque neste país ainda há leis. Mas o homem ‘bateu o pé’ e não quis me acompanhar.

Quando eu já estava a certa distância, rumo à lanchonete, ele me alcançou apressado para dizer: “Aqui, traz a coxinha, mas uma coca também. Uma coquinha só...” Eu comecei a me irritar. “Você quer Coca-Cola?! Se tem fome, come o lanche. Eu não compro refrigerante pra mim...” “Ah, compra, sim”, ele insistiu e continuou: “É que hoje é meu aniversário e eu queria beber uma coquinha!...” “Seu aniversário? Que legal! Então me diga uma coisa: que dia é hoje?” Ele olhou pra baixo, pro lado e pra cima e quase abriu a boca pra falar algum número, mas desistiu. Então eu percebi a malandragem e o deixei parado ali. Trouxe a coxinha pra ele, mas sem refri. Ele pegou o salgado, me agradeceu e se foi.

A dona da lanchonete me advertiu na outra vez e nesta também: “Não dê nada pra esse homem, porque ele vai vender e comprar porcaria. Então dê a coxinha e mande ele morder na sua frente pra ninguém comprar dele.” “Mas quem vai comprar um lanche de um mendigo?”, perguntei. Ela disse que muita gente compra. Respondi que se alguém compra a comida de um pedinte, essa pessoa está em pior situação. Então a mulher pegou os sete reais e não disse mais palavra.

Foi preciso escrever tudo isso só pra dizer que, quando se tem fome, um pão francês é o 'menu dos deuses'.

FILIPE


sexta-feira, 19 de maio de 2023

RITA LEE

 


Começo escrever este texto numa manhã fria e nublada deste mês de maio. Lá fora, um bem-te-vi, que mora na mangueira ao lado de casa, ainda há pouco estava chamando insistentemente a sua “esposa”. O bem-te-vi mandou-se para os ares e me deixou aqui no rancho com a Pituka e o Tiziu, que continuam enroscados em seus trapos, não sei se de lã ou feltro. E enquanto digito este texto, a Rita Lee canta “Saúde”, dizendo: “(...) enquanto estou viva e cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz”.

Minha história com esta cantora começou na década de setenta e foi assim. Numa de suas férias do seminário em Juiz de Fora, meu irmão mais velho trouxe uma dezena de pôsteres de artistas que estavam em voga naquela época, e essas fotos foram coladas numa parede da sala. Eram atrizes de novela e cantoras, que eu desconhecia por completo. Naquele tempo, pouca gente na minha terra tinha televisão, e na roça, onde morávamos, não tínhamos sequer rádio de pilha. Para nós, esse irmão era uma minicelebridade, porque era ele quem nos trazia as “novidades da civilização”.

De todas aquelas artistas cujas fotografias enfeitavam nossa humilde sala, eu me recordo de apenas duas: Dina Sfat e Rita Lee. Da Dina eu me lembro só do nome; da Rita, já lembro da imagem mesmo. No alto da parede, tal qual num olimpo, estava a Rita Lee: linda, de olhos claros e expressivos, cabelos longos e a franja que a acompanharia até seus estertores.

A nossa casa era de tijolos aparentes – não por charme, mas pobreza mesmo –, mas a sala ficou particularmente charmosa com aquela pequena galeria de celebridades. Todos gostamos e ficamos encantados – menos papai, que chegou e mandou retirar ‘tudo aquilo dali’.

Foi um anticlímax. Meu irmão começou a tirar cuidadosamente uma por uma para que não rasgasse, mas em vão foi seu esforço. As “meninas” não queriam “descer da parede” e o negócio foi retirá-las à força.

Ficamos tristes, mas a obediência aos pais era um imperativo na nossa família. Embora houvesse um choque geracional entre pais e filhos, papai era sempre compreendido e respeitado por todos nós.

Pois então, semana passada Rita Lee encantou-se. Dela fica o magnífico repertório e um legado de rebeldia e liberdade, concordemos ou não com ela.

Para seu epitáfio, Rita escreveu: “Ela nunca foi bom exemplo, mas era gente boa”.  Sim, Rita Lee era gente boníssima. Em vida, muito discretamente, sempre doou suas roupas para moradores de rua. E tinha espiritualidade também. Embora não fosse declaradamente adepta de credo algum, todas as noites, antes de dormir, ela e seu marido faziam suas preces.

Rita Lee partiu na certeza de que deixou um ‘monte de gente feliz’. Mas a sua ausência deixa a vida um pouco mais triste.

FILIPE

sexta-feira, 5 de maio de 2023

A RÁDIO CULTURA DE AMPARO

 Publicado no jornal 'A Tribuna de Amparo' -- edição de hoje.

 

O que está acontecendo com a nossa Rádio Cultura?

 

É manhã de domingo. Ligo o rádio, que sempre esteve sintonizado na rádio Cultura de Amparo, mas preciso desligar porque a programação não é mais aquela que me fez ficar enamorado dessa emissora desde há muitos anos. Antes, aos domingos, havia música erudita bem no comecinho da manhã. Em seguida, uma sequência musical genuinamente brasileira fazia meu domingo pulsar até o meio-dia. Agora, não mais.

 

As manhãs de sábado também perderam o brilho musical na Rádio Cultura.  Às sete da manhã, havia um programa especial contando a vida de determinado ícone do nosso cancioneiro. Em seguida, a programação continuava em linha com o espírito da emissora, tocando sempre MPB no gênero raiz. O programa biográfico acabou e a sequência musical ficou desidratada.

 

Há tempos, por falta de sintonia com o programa e simpatia com o apresentador, deixei de ouvir a Rádio Cultura nas manhãs de segunda a sexta-feira. Mas as tardes me eram propícias, particularmente o programa das 17 horas, cujo apresentador, Marcelo Lari, é uma ‘reserva moral’ do rádio brasileiro. No entanto, e isso não é culpa do locutor, a seleção musical ficou bastante prejudicada desde a aposentadoria de Cecília Beltramelli, produtora musical que trabalhou na emissora por muitos anos. Com a saída daquela profissional, nomes como Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco e outros titãs da cena musical brasileira foram postos no ostracismo, numa espécie de ‘macarthismo tupiniquim’ agora presente em Amparo.

 

Numa tarde dessas, tentei insistir no dial da Rádio Cultura, mas tive que desligar. Não pude conter a indignação ao ouvir (na minha rádio!) um pagodeiro... E desses aí, bem midiático!

 

Ah, raríssimo leitor, não me tenha por preconceituoso. Musicalmente talvez eu seja, mas aqui a minha intenção é defender um espaço que sempre privilegiou a autêntica MPB. Para quem gosta e quer ouvir pagodes, sertanejos universitários e que tais, há uma miríade de emissoras por aí – e eu não gostaria de que a nossa Rádio Cultura entrasse naquela seara.

 

Infelizmente — por ideologia, descaso, ignorância ou compadrio —, decisões erradas estão sendo tomadas e a nossa Rádio Cultura perde muito do elã com que tanto me seduzia para se tornar uma emissora como outra qualquer.

 

FILIPE

terça-feira, 25 de abril de 2023

NÓS, OS MOURA LIMA



A foto acima foi tirada enquanto nós, os Moura Lima, estávamos reunidos na varanda de nosso saudoso pai. Foi neste espaço que papai viveu o melhor de suas horas desde que a velhice lhe tocou o ombro. Aqui o patriarca usava suas redes sociais, fazia palavras cruzadas, ouvia rádio, jogava baralho com as netas, recebia os amigos para tomar café, proseava e tirava um cochilo num velho sofá. É nesta varanda que a família sempre se reúne para refeições, preces e até uma espécie de sarau musical, que vez ou outra acontece. Por tudo isso, este modesto anexo da casa tornou-se para nós um espaço sagrado, quase um templo. 

A iniciativa do nosso encontro começou assim. No dia seguinte à despedida do papai, nós nos reunimos para acertar coisas pendentes e decidir quais caminhos trilharíamos a partir de então.  Naquela ocasião, eu propus que se fizesse uma reunião anual com todo o ‘clã Moura Lima’. Todos aceitaram a minha sugestão, mas, como sempre, não faltaram alguns tropicões. E, entre convergências e divergências, uma data foi provisoriamente acertada. Tempos depois a data foi alterada a fim de que todos pudessem comparecer. E assim aconteceu, apesar de grande sacrifício de alguns que tiveram de viajar a noite toda para ficar umas poucas horas com a família, e ainda retornar no mesmo dia, viajando por outra noite inteirinha. Todavia, o esforço valeu a pena e nosso encontro passará a ser uma ‘efeméride’ – segundo a definição de um irmão mais intelectualizado. 

Então, sob o sisudo cajado do irmão mais velho – cuja primogenitura é exercida por ele com indisfarçável gozo – pudemos experimentar momentos de profunda emoção nesse encontro, havendo lágrimas torrenciais, particularmente quando se rememorou o legado de nosso pai. No entanto, sonoras risadas também puderam ser ouvidas de longe quando um Moura Lima mais engraçadinho desanuviava o ambiente. Já ao fim de nossa “tertúlia”, houve missa concelebrada pelos três irmãos padres e depois o almoço patrocinado pela nossa querida mãezinha, que se encontra enferma. 

O nosso compromisso é de nos mantermos unidos, conforme exortava nosso velho e bom pai. Contudo, de vez em quando um fio desencapado costuma produzir alguma faísca, provocando um breve curto-circuito no grupo de WhatsApp – problema logo resolvido por um irmão mais habilidoso. Mas é importante ressaltar que temos a fortuna de não encontrar na irmandade ninguém de “gênio forte” – usando aqui uma metáfora um tanto açucarada para “alma cabeluda”. Dessa forma, a nossa convivência se torna mais tranquila sem que isso seja uma virtude dos Moura Lima. 

FILIPE