Eu poderia dizer que sou um homem
de sorte, só por que tenho uma bigorna. Mas se você não tem uma bigorna, então
você não sabe o que é ser uma pessoa completa, realizada mesmo, como eu.
Há tempos, venho montando uma
pequena oficina de carapina. Não, não sou carpinteiro e muito menos marceneiro.
Eu me dou por carapina, esse protótipo de carpinteiro, que é o pioneiro, o
desbravador dessa arte de cortar e pregar tábuas – um pouco como fazia o ‘Carpinteiro
de Nazaré’, de nome José, que talvez você conheça. E é isso que faço
ultimamente.
E por que abri o texto, falando
de bigorna? Vou explicar.
Tenho feito bastante coisa
utilizando sucatas de madeira. Fiz mesas, banco, prateleiras e até um baú. Não
digo que meus móveis sejam rústicos, mas toscos. Além do martelo, sempre usei serrote
e facão, que não deu muito certo. Meu baú, embora elegante, ficou meio desengonçado,
e os pregos, velhos e tortos, avacalharam bastante. Ah, a bigorna não deixaria
isso assim. Ela é ‘gente boa’ pra caramba. É fato que sua relação com o martelo
nunca foi das melhores. Sua paciência chega a irritar o ‘companheiro’, que
cisma de ‘espancá-la’ sempre que está ‘nervoso’ e, no entanto, ela nem se mexe.
Ontem mesmo, xinguei o martelo porque ele me acertou o dedo. Já de uma bigorna,
nunca se ouviu dizer que alguém fosse ferido por ela. Pode ver que ela está
sempre quietinha no canto dela, só observando.
De uns tempos pra cá, adquiri
furadeira, esmeril, plaina de mão... mas faltava essa amiga. A cada aquisição eu lembrava de meu saudoso
pai, que sempre dizia: “Como eu queria ter uma ‘caixa de ferramentas’ para poder
trabalhar como carpinteiro!...” Ah, meu
pai... Se eu pudesse voltar ao passado, compraria todas as ferramentas para o
senhor... Papai tinha ferramentas bem interessantes como: arco de pua, enxó,
serrote, formão, martelo, torquês... Mas havia outras das quais ele precisava
muito e não podia comprar, dentre elas, quem sabe uma bigorna...
Felizmente, embora já idoso, meu velho
conseguiu realizar parte do sonho. Ele chegou a possuir ferramentas bem
modernas e delas fez uso. Quando partiu, deixou esmeril, furadeira, maquita e outras, todas funcionais e de
boa procedência. Mas não a bigorna!
Por que insisto na bigorna?
Explico mais uma vez.
Você nunca viu alguém saindo de
casa para comprar uma bigorna. Eu também não. Mas num exercício de imaginação,
vejo o Firmino dizendo para a esposa: “Serafina, estou indo a Guiricema pra
comprar uma bigorna”. Chegando, ele entra numa loja, pergunta ao balconista se
tem bigorna e ouve como resposta: “Ih, seu Firmino, tem não. Eu mesmo nem sei quiqueísso...” O Firmino não desanima e
vai mais longe, vai a Visconde do Rio Branco. “Lá tem muitas lojas e vou
achar”, ele diz de si para si, mas dá com os ‘burros n’água’. Ninguém tem
bigorna e apenas os mais velhos conhecem tal ferramenta. “Alguém ainda usa esse
trem?...”, pergunta, sem disfarçar o riso de canto de boca, um homem careca e
de bigode (talvez o dono da “birosca”).
Não sei se o Firmino achou a
bigorna ou dela desistiu. Mas eu comprei uma pela internet, que chegou soberbamente
embalada, deixando um rastro de curiosidade. Houve até alguém que veio à minha casa
só para conhecer a novidade, que apresentei com indisfarçável orgulho.
Dois irmãos meus têm oficina e
fazem prodígios; um tio faz móveis incríveis com madeira descartada; um
concunhado poderia ser mestre em qualquer liceu de ofícios. Contudo, há uma
diferença entre nós e que me deixa bastante abobado: apenas eu tenho uma
bigorna!
FILIPE
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