Minha avó materna, a saudosa dona
Jacyra, faria cem anos no próximo dia quatro de fevereiro. Faria, não. Ela fará
cem anos, que comemorarei sozinho, sem bolo, mas com uma prece. Porque, para
mim, a vovó não morreu. Ela continua viva
na minha história.
Dona Jacyra foi avó muito jovem.
Quando ela tinha apenas 35 anos, nasceu minha irmã Luzia, sua primeira neta.
Depois de Luzia, rebentaram-se em diversos ninhos, ao longo de quatro décadas,
outros 39 netinhos. Uma fartura!
Recordo com saudade das inúmeras vezes
em que mamãe nos levou à casa da vovó. Chegávamos no meio do dia, muitas vezes
sob sol forte. Então ela nos oferecia água fresca tirada de um pote, servida
numa caneca artesanal de lata. Sobre um pranchão de madeira embaixo da janela
da cozinha, havia dois grandes potes de barro, que eram liturgicamente
abastecidos por meu avô Aurélio. A mina ficava um pouco distante, mas o vovô
sempre estava às voltas com seus baldes, nunca deixando faltar água em casa.
Lembro-me bem daquela casa branca,
imponente, embora de pau-a-pique e calçada de pedras. A cozinha, com enorme pé-direito, exibia
uma grande mesa com dois bancos de madeira. O fogão a lenha, o único que já vi
assim tão majestoso, ficava num canto, mas desencostado da parede,
permitindo que fosse usado por destros e canhotos. Embaixo do fogão havia um
compartimento para armazenar pequenas quantidades de lenha. Uma grade dentro da
fornalha permitia escoar as cinzas para um nicho, de onde seriam facilmente
recolhidas.
Da cozinha, uma escada de pedra
dava acesso ao corpo da casa. No fim dessa escada, à esquerda, ficava o antigo
quarto do casal. Em seguida, percorrendo-se uma salinha comprida, com alguns
móveis, via-se à direita três quartos: um pequeno, onde meu avô passou a dormir,
e outros dois maiores. Um corredor dava acesso à sala principal e a um quarto
para visitas. O cômodo mais interessante da casa não era nenhum desses, mas a
despensa, que ficava ao lado da cozinha. É ali que, numa grande caixa de arroz
em cascas, amadureciam cachos de banana.
Ah, a vovó deve estar ainda
naquela casa (há tantos anos demolida) mexendo nas panelas, ajeitando os
tições, soprando o fogo. Eu a vejo através do portãozinho que fica na porta da
cozinha. Ela não sabe, mas estou escondido ali, ao lado da bica d’água, sob a
sombra do pé de manga-espada. Revejo, com saudade, as grossas raízes das duas
mangueiras, onde se senta para ouvir sabiás-laranjeiras no pé de pitanga e
seriemas lá pelos lados do ‘pé de jaca’, no “Dourado”. Enquanto isso, embaixo
do assoalho cacarejam galinhas poedeiras, e no terreiro ao lado canta um
melancólico galo garnisé.
Eu não sabia por que gostava
tanto de você, vovó. Bem mais tarde, soube que foi por suas mãos que vim ao
mundo. Mamãe estava na sua casa quando nasci, e você foi minha parteira.
Parabéns, vovó, mas esses cem
anos passaram muito rápido. Permaneça conosco por outros séculos!
FILIPE