sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O CENTENÁRIO DE JACYRA


Minha avó materna, a saudosa dona Jacyra, faria cem anos no próximo dia quatro de fevereiro. Faria, não. Ela fará cem anos, que comemorarei sozinho, sem bolo, mas com uma prece. Porque, para mim, a vovó não morreu.  Ela continua viva na minha história.

Dona Jacyra foi avó muito jovem. Quando ela tinha apenas 35 anos, nasceu minha irmã Luzia, sua primeira neta. Depois de Luzia, rebentaram-se em diversos ninhos, ao longo de quatro décadas, outros 39 netinhos.  Uma fartura!

Recordo com saudade das inúmeras vezes em que mamãe nos levou à casa da vovó. Chegávamos no meio do dia, muitas vezes sob sol forte. Então ela nos oferecia água fresca tirada de um pote, servida numa caneca artesanal de lata. Sobre um pranchão de madeira embaixo da janela da cozinha, havia dois grandes potes de barro, que eram liturgicamente abastecidos por meu avô Aurélio. A mina ficava um pouco distante, mas o vovô sempre estava às voltas com seus baldes, nunca deixando faltar água em casa.

Lembro-me bem daquela casa branca, imponente, embora de pau-a-pique e calçada de pedras. A cozinha, com enorme pé-direito, exibia uma grande mesa com dois bancos de madeira. O fogão a lenha, o único que já vi assim tão majestoso, ficava num canto, mas desencostado da parede, permitindo que fosse usado por destros e canhotos. Embaixo do fogão havia um compartimento para armazenar pequenas quantidades de lenha. Uma grade dentro da fornalha permitia escoar as cinzas para um nicho, de onde seriam facilmente recolhidas.

Da cozinha, uma escada de pedra dava acesso ao corpo da casa. No fim dessa escada, à esquerda, ficava o antigo quarto do casal. Em seguida, percorrendo-se uma salinha comprida, com alguns móveis, via-se à direita três quartos: um pequeno, onde meu avô passou a dormir, e outros dois maiores. Um corredor dava acesso à sala principal e a um quarto para visitas. O cômodo mais interessante da casa não era nenhum desses, mas a despensa, que ficava ao lado da cozinha. É ali que, numa grande caixa de arroz em cascas, amadureciam cachos de banana.

Ah, a vovó deve estar ainda naquela casa (há tantos anos demolida) mexendo nas panelas, ajeitando os tições, soprando o fogo. Eu a vejo através do portãozinho que fica na porta da cozinha. Ela não sabe, mas estou escondido ali, ao lado da bica d’água, sob a sombra do pé de manga-espada. Revejo, com saudade, as grossas raízes das duas mangueiras, onde se senta para ouvir sabiás-laranjeiras no pé de pitanga e seriemas lá pelos lados do ‘pé de jaca’, no “Dourado”. Enquanto isso, embaixo do assoalho cacarejam galinhas poedeiras, e no terreiro ao lado canta um melancólico galo garnisé.

Eu não sabia por que gostava tanto de você, vovó. Bem mais tarde, soube que foi por suas mãos que vim ao mundo. Mamãe estava na sua casa quando nasci, e você foi minha parteira.

Parabéns, vovó, mas esses cem anos passaram muito rápido. Permaneça conosco por outros séculos!

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sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

QUANDO A MEMÓRIA COMEÇA A FALHAR


“Rua dos Camarés, 94  –  9º DP; ônibus 2010, Pq. Edu Chaves”  

O endereço acima me foi dado por um agente policial da rodoviária Tietê, em São Paulo. Caso o leitor decida me seguir, saberá o porquê disso.

Numa tarde de domingo, eu me preparava para uma viagem à casa de meus pais, em Minas. Ao sair, já no carro, senti falta do celular. Como estava a poucos metros de casa, uma marcha à ré foi suficiente para eu verificar que o aparelho não tinha ficado em casa, mas estava escondidinho na mochila. “Minha memória está fraca”, pensei.

Então verifiquei documentos, dinheiro, passagens etc., e pude seguir tranquilamente. Chegando ao terminal rodoviário, com quase quatro horas de antecedência, fui ao guichê de autoatendimento e retirei a passagem. Beleza. Agora é sentar e esperar o tempo passar. Aprecio ficar sozinho nesse oceano. São milhares de pessoas indo e vindo. De um canto, bem discretamente, observo a multidão em viagem, e eu viajo com ela.

Antes daquela fruição, achei melhor verificar se estava mesmo tudo certinho: datas das passagens, documentos e dinheiro. Um arrepio gelou-me a espinha: “Cadê a carteira de identidade?!” Na verdade era a CNH, que uso por ser de menor tamanho. Não, ela não estava na carteira nem em nenhum compartimento da mochila. O documento não estava comigo e sem ele eu não poderia embarcar. Desci às pressas e fui ao posto policial a fim de pedir autorização para seguir viagem. Um simpático soldado me atendeu, mas não resolveu o problema. “Estamos sem internet. O senhor terá que ir ao próximo DP”, ele disse e anotou num papel o endereço e me apontou o ponto de ônibus.

Entrei no ônibus, paguei a passagem e perguntei ao cobrador onde ficava a tal rua dos Camarés. O rapaz, tatuado e com fone de ouvido, não estava muito a fim de conversar, mas acedeu. “Ih, cara, embaçou. Não conheço nada aqui. Quem faz esse trajeto e um cara que tá de folga.” “Mas... como faço?”, perguntei. “Motorista, onde fica a rua dos Camarões?”, perguntou. “Não é ‘camarões’, é ‘camarés’!”, acudi. “Sei não”, respondeu o condutor. O ônibus avançou mais alguns quarteirões e o motorista parou. “Fala para ele descer, porque a rua dos Camarões fica por aqui.” Desci. Passei numa barraca de doces e perguntei ao moço. “Sei não, cara. Nunca ouvi falar na rua dos Camarões”. Desisti de explicar que era ‘camarés’ e não ‘camarões’, e procurei um taxi. O taxista enrolou um pouco dando umas voltas e por quinze reais me deixou em frente à DP. Entro na unidade e, surpresa, fui prontamente atendido. Com o papel carimbado, saí à procura de táxi para retornar à rodoviária. Nada de táxi. Ando mais, e nada! A noite vem chegando rápida e eu longe da rodoviária, mas perto de uma estação de nome pouco sugestivo: ‘Carandiru’. Entro num posto de gasolina e acho um táxi estacionado. “Me leva ao Tietê?...” O cara fez corpo mole: “Tô de folga!” “Mas onde encontro táxi?” “Ih, tá difícil. Mas entra aí, vai. Vou te quebrar essa”. Fiquei de olho no taxímetro, pois parecia que ele queria fazer corrida avulsa. Mas antes que eu cobrasse, ele ligou o equipamento. Foi uma corrida rápida, com tempo para que ele me fizesse apenas umas perguntas meio bestas: “Você é agricultor?” “Dou aula, mas sou da roça.” Ele se animou e destacou suas origens campesinas também. Chego na rodoviária e o taxímetro registra ‘treze e cinquenta’.  “Me dá quinze, que pra eu tomar um café!” Dei os quinze reais e saí aliviado, mas também preocupado, porque a minha memória está me traindo.

FILIPE

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

SEU MILTON



Uma rua estreita, muito íngreme e calçada com pedras irregulares, me leva a uma casa modesta, porém um pouco melhor do que as edificações vizinhas. O portão é aberto por um homem idoso e de poucas palavras. Estou chegando ao asilo de Maria da Fé – uma cidade no alto da Mantiqueira, no sul de Minas.

Todos os anos, em fins de dezembro, costumo visitar essa casa, de onde a cada ano uns partem e outros chegam. Faz frio em pleno verão, e os velhinhos se espalham com cobertores por quartos, corredores e salas de televisão. Um espaçoso refeitório, uma lavanderia e um pequeno quintal cimentado nos fundos são áreas liberadas para todos e abertas aos visitantes.

Ao lado de varais repletos de roupas recém-lavadas, um alambrado separa o espaço cimentado de uma pequena horta. Ali há alface, couve e almeirão em quantidade suficiente para abastecer diariamente a cozinha. Outros cultivares existem por lá, mas deles não me recordo.

Já beirando os ‘noventa’, seu Milton sempre foi o hortelão da casa. Dessa vez o encontro deitado, cochilando num banco. O rádio mal sintonizado chia e ronca a todo volume, mas seu Milton não se incomoda. Quando me vê, parece me reconhecer e se levanta para me cumprimentar. Eu puxo assunto, perguntando sobre a horta. “Não cuido mais da horta. Quem planta agora é o Joaquim. Depois que machuquei, não pude mais capinar. Pisei num danado dum buraco e quase quebrei a perna”, diz levantando a barra da calça e mostrando uma cicatriz. “Também chegou a idade e eu não posso mais fazer esse tipo de serviço”, completa.

Ouço o depoimento de seu Milton e saio dali a procura de outros internos. Sem poder levar doces nem balas, fico apenas nas expressões do tipo: “Saúde e Paz!”, ou “Que Deus abençoe e proteja!” Dá um pouco de vergonha visitar pessoas carentes, muitas delas com vontade de comer algo diferente, e nem uma balinha levar. Das outras vezes eu levava doces e nunca fui repreendido. Pelo contrário: os funcionários me agradeciam, porque eu lhes dava uma porção abundante, quase um suborno. Mas decidi cumprir a regra da casa e não levo mais nada.

No momento em que eu saio e me dirijo ao corredor que dá acesso à área externa, o seu Milton chega apressado e me chama. “Aqui, eu quero te mostrar uma coisa. Não posso mais fazer horta, mas faço isso. Vem ver.”

Ele me leva ao seu quarto e abre uma gaveta da cômoda, repleta de cigarros artesanais. Seu Milton pega saquinhos de papel, desses de padaria, recorta em pequenos retângulos e faz centenas de cigarros para os colegas. Ele diz ter feito setecentos cigarros num dia desses – que duvidei um pouco. Parece exagerar. Mas ele diz que não entrega os cigarros diretamente aos colegas. “Ih, se eu der para eles... não há nada que chegue. Têm uns aí que fumam um atrás do outro. Só não põem dois cigarros na boca porque não tem jeito. Então eu faço e entrego na farmácia. A moça dá três por dia: de manhã, depois do almoço e à noite. Quem quiser mais, que compre.”

O seu Milton, cuja idade e história desconheço, dá-nos uma bela lição de que sempre é possível servir ao próximo. Basta um tiquinho de boa vontade e um bocadinho de criatividade.

FILIPE