sexta-feira, 26 de abril de 2019

A ÚLTIMA CRÔNICA


Na manhã do último domingo, recebi o jornal e vi uma chamada: “A minha última crônica”, de Antonio Prata. “Como pode o meu colunista preferido parar de publicar suas crônicas?...”, pensei e apressei-me a lê-la.

As crônicas de Antonio Prata (escreve-se sem acento) me remetem a um passado muito distante. Essa lembrança não está associada à literatura, mas a uma coisa muito doida: os pratos de comida de minha infância. Nem sempre havia carne nas nossas refeições, porque, nas ‘panelas pobres’, as tais “misturas” eram artigo de luxo. Há até um ditado meio besta, que diz: “quando pobre come frango, um dos dois está doente”.

E volto à ‘lembrança’. Na hora do ‘rango’, pegávamos arroz (quando tinha), feijão, canjiquinha (fiel companheira), angu e a tal mistura, que poderia ser torresmo, um pedacinho de carne ou até mesmo um ovo frito – que costumava ser dividido para alimentar mais bocas. Começando pelo irmão mais velho, todos cumpríamos um ritual que parecia ser genuinamente nosso. Comíamos primeiramente o arroz, o feijão, a canjiquinha etc. A ‘mistura’, que era a iguaria, deixávamos por último. Limpado o prato, vinha o deleite final: íamos desfiando suave e solenemente o pedacinho de carne, fazendo daquele momento uma apoteose; se fosse ovo, comíamos primeiramente a clara, desnudando sua gema e a tornando uma autêntica pepita de ouro. Dava gosto ver o irmão mais velho no ofício: um perito nessa “ourivesaria”.

Aqueles tempos são velhos e nada têm a ver com a atualidade. Na escola em que trabalho, por exemplo, vejo pratos cheios de comida, recheados de carne, sendo despejados no lixo. Dói-me ver aquilo. De todos os gêneros alimentícios, a “proteína animal’ é o mais sagrado, porque não se colhe filé de frango ou alcatra em árvores. Esse alimento, é imperioso refletir, tem origem na dor do animal que foi abatido. Não se deve, portanto, desperdiçar alimento algum. Muito menos a carne, que é fruto de um ‘sacrifício’, quando a morte se reverte em vida.

Voltando ao meu escritor favorito e numa rotina já antiga, os seus textos deixo sempre reservados para o final da semana. Na sexta-feira, quando encerro minha jornada na escola, venho caminhando embalado pela crônica do domingo último.

Mas a crônica do Antonio Prata que li hoje não poderia ser a ‘última’. Aborrecido, mandei mensagem para o jornal, e muitas outras mensagens também chegaram. Felizmente, Antonio desistiu de desistir. A vida anda tão chata e as poucas coisas que nos animam não podem desaparecer assim, tão inexplicavelmente. Que bom que no meu jornal ainda tem uma “mistura”!

FILIPE

sexta-feira, 12 de abril de 2019

A CONVERSÃO DO CORAÇÃO


Pulicado no jornal ‘A Tribuna de Amparo’, edição de hoje.

Nas homilias proferidas pelos sacerdotes, sobretudo na Quaresma e mais particularmente quando se aproxima a Festa da Páscoa, é comum a exortação para a “conversão do coração”. Para que os cristãos católicos possam participar mais dignamente do Tríduo Pascal, faz-se necessária uma mudança de atitude, um ‘voltar-se para Deus’ – ensina-se.

Mas o que é essa ‘conversão do coração’, esse ‘voltar-se para Deus’? Essas palavras podem perder significado quando sou indiferente ao sofrimento de meu próximo. Um ‘coração convertido’ tem que ser benevolente, generoso, paciente e compassivo. É preciso olhar com mais carinho as pessoas que nos cercam: um colega de trabalho, um colaborador, um benfeitor, um vizinho ou o empacotador do supermercado. Reconhecer que, embora tenhamos sempre vontade de acertar, mas limitados que somos, erramos. Mas, cuidado: a soberba costuma vir travestida de impaciência! A “um coração convertido” não se permite a reprimenda pública a um irmão em erro. A correção fraterna, que todos somos obrigados a praticar, deve ser discreta e feita segundo critérios cristãos. Já o corretivo como espetáculo é típico dos pagãos.

A ‘conversão do coração’ é sempre uma proposta da Campanha da Fraternidade, e neste ano tem como tema “Fraternidade e Políticas Públicas”. Espera-se que, com isso, nossa Diocese se engaje mais nas questões sociais. Temos em nossa cidade um contingente crescente de moradores de rua e seria oportuna a criação de uma pastoral para dar assistência espiritual e alguma dignidade a esses irmãos deserdados, cobrando das autoridades as tais ‘políticas públicas’. Uma missa campal com os ‘moradores de rua’ seria um bom ponto de partida, porque ‘os preteridos da sociedade são os preferidos do Reino’.

O Papa Francisco e a CNBB conclamam os fiéis a nunca se omitirem diante dos flagelos sociais. Prega o Bom Papa, que a ‘Igreja deve ‘sair da sacristia e pisar a lama das periferias existenciais’. Então é preciso descer do “Monte Tabor” e amassar o barro na planície, onde está o povo que sofre e espera. Mas os pronunciamentos pontificais nem sempre reverberam em nossos “inconvertidos” púlpitos, infelizmente.

FILIPE