sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

INTROSPECÇÃO

Estamos no natalino mês de dezembro, que já se vai com seu Natal que se tornou tão banal, quase fatal. Com seus abraços tão falsos!

Então é preciso abrir para balanço – e não fechar, como se fecham os armazéns para arranjos contábeis. É preciso avaliar o ano que finda, num improvável retrospecto.

O ano foi duro, pouco frutuoso. Se não houve tantos frutos, houve flores e folhas e raízes, que adentram o solo pouco fértil de uma pedregosa existência.

Neste ano, houve tropeços nas relações. E rupturas. Mas novos vínculos suturam velhas chagas.

A vida costuma ser um deserto sem oásis nem bordas. Vagando-se nessas areias, perdemo-nos em miragens – o enganador efeito óptico da luz que se refrata e confunde.
  
As relações humanas, familiares ou não, têm muito desse deserto e de suas miragens. Tem a aridez da areia movediça, que traga, que naufraga.

Quantas máscaras... Por que mascarar-se?... Melhor mostrar a pele ferida, impiedosamente maculada, mas nua.

Contudo, é imperioso pôr a máscara, esconder-se e se apresentar ridiculamente maldisfarçado.  Por que assim, de forma tão mesquinha? Qual o porquê dessa vileza?

Ah, o ano foi duro! Muitos foram os desafios e poucos os resultados. Mas houve tentativa de acertar, de errar por um caminho... perder-se nele.

Porque há sempre um muro à frente. Como transpor o muro? Não se pula o muro. Não se derruba o muro. O muro é duro!

Houve vontade de sair, de viajar... divagar bem devagar. Mas a vontade foi acabando, como acabam os sonhos após longo sono.

Há de se abrir para balanço um ano que parece não ter acontecido. E que finda, deixando uma parte incrustada na memória; a outra parte é volátil, como voláteis são nossos muitos planos.   

Se nascemos e finamos solitariamente e a vida é um contínuo flerte com a solidão, dois mil e dezesseis valeu pelo que dele vivi tão só.

Mas dois mil e dezessete é apenas uma promessa. Então, que seja promissor o ano que se anuncia!


FILIPE

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

FREIZINHO

Ligeiramente atrasado, cheguei às cinco e quarenta da manhã à simpática cidade paranaense de Ponta Grossa, mas ele já me esperava na rodoviária. Não o vi de imediato, pois eu estava meio zonzo após tantas horas no “porão” daquele ônibus e minha coluna gemia devido ao desconforto da “segunda classe”.

O reencontro foi caloroso, como convém a velhos amigos que se reveem. Entramos no carro, passamos num posto para abastecer e comprar erva-mate – uma “Bitumirim” desbotada, mas saborosa. “Esta é o povão que usa”, disse-me um alegroso e todo prosa Freizinho.

Entramos no convento quando se celebrava a primeira missa. Paramos diante da capela, toda decorada para o Natal e fiquei embevecido com tanta beleza. O chão coberto de feno compunha um autêntico estábulo. As cadeiras e as paredes revestidas de papel pardo davam a impressão de se estar numa gruta formada por um vasto rochedo. E ainda os frades com seus batinões cinza... Aquele cenário me fez retroceder mil anos e me vi em plena Idade Média – uma página viva de Umberto Eco, mas sem a dramaticidade de “O Nome da Rosa”.

No entorno do convento, lírios, pinheiros e muitos pássaros. São juritis, tico-ticos, bem-te-vis, anus, canários e “anônimos”, que cantam e encantam num incessante louvor. No pátio interno, entre as galerias de celas, uma parreira exibe incipientes cachos. Próximo à minha janela, um sino no alto de uma torre anuncia desde as Laudes até a última prece que precede o repouso. Contemplei aquele sino e tive vontade de puxar a corda e badalar, badalar, badalar.

Há também um eremitério dentro de um bosque e o Freizinho me levou àquele pedacinho do Éden. É uma pequena e rústica capela com três bancos de madeira bruta desdobrada, um estreito corredor como aposento e tendo ao fundo um banheirinho – tudo o que um eremita necessita para viver ‘holisticamente’ integrado a Deus e à natureza. Na frente da capela, há uma torre com um sino (que tangi diversas vezes) e, nos fundos, uma aconchegante varandinha com fogão a lenha. O Freizinho acendeu o fogo – ou a fumaça, pois houve mais fumaça do que fogo. A água da chaleira chegou a chiar, mas não a usei no chimarrão. Tivemos que voltar devido aos inúmeros compromissos que esperavam pelo frei.

Mas a vida desse franciscano não tem nada dos floreios bucólicos que esta crônica sugere. Amante das artes, da literatura, da vida acadêmica e campestre, ele não tem tempo para devaneios poéticos.  Acorda sempre de madrugadinha e seu dia não tem hora para terminar. Como um típico socorrista, ele tem ao longo do dia uma barafunda de crises para resolver. Crises conjugais, de relacionamento, existenciais, familiares, de fé etc. Como se não fosse suficiente a faina diária e as viagens pelo País – todas de ônibus, porque o Freizinho tem pavor dos ares –, ele ainda dirige os trabalhos de uma comunidade assistencial a moradores de rua.

Já é quase meia-noite, quando o Freizinho começava a celebrar na Comunidade Deus Pai para um público formado basicamente de mendigos. Após a celebração, uma perua percorrerá a cidade à procura de moradores de rua a fim de lhes servir sopa com cachorro quente. Animado por um violão, o grupo de voluntários dança, cantando músicas diversas, sendo “Zaqueu” o hit preferido. Dentre os “clientes”, há um maluco, que se esbofeteia o tempo todo; outro que recusa a sopa e nos afugenta; mais à frente, quatro homens e uma cadelinha dividem calçada, cobertores e o lanche. A cachorrinha coça suas pulgas enquanto seus donos tomam sopa em caixa longa-vida. Mas a caravana segue viagem madrugada adentro, enquanto o Freizinho e eu caímos fora. O cansaço venceu! Às três horas e vinte e três minutos, entrei em minha cela; às seis, o Freizinho já está com seus confrades na capela rezando as Laudes!

A biologia nos dá irmãos, os amigos nós conquistamos, mas poucos têm a graça de ter um irmão que é também amigo. Amigo é alguém com quem se partilha angústias, e de quem se aceita eventuais reprimendas sem que fiquem mágoas. E o Freizinho é-me singularmente irmão e amigo. Obrigado, mano!


FILIPE

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

ALTAR DAS VAIDADES

Enviado ao Jornal "A Tribuna de Amparo" - edição de hoje.

Reclama-se muito que o jovem de hoje não quer saber de religião, que as igrejas estão cada vez mais vazias, que apenas os velhos as frequentam etc., etc., etc. Mas uma juventude esclarecida terá dificuldade para abraçar uma doutrina cuja embalagem traz um rótulo no mínimo suspeito. Algo de errado existe e simplório seria culpar a modernidade por isso. 

Particularmente não sendo moderno, mas adepto dos velhos costumes, quase toda inovação me enfada, principalmente tratando-se de rituais sagrados – como por enfadonho tenho os programas religiosos transmitidos pela TV. Aqui, não me refiro a um credo em especial, pois, na TV, quase toda aquela programação me parece perversa.

Nas manhãs, tardes e principalmente nas madrugadas, falsos pastores tentam “laçar ovelhas”, utilizando os mais variados ardis. Aproveitam-se do desespero de pessoas doentes, desempregadas e desgraçadamente infelizes, oferecendo-lhes, a preços extorsivos o que de graça já seria afrontoso: ‘lenços ungidos’, ‘cruz da felicidade’, ‘água benta’, ‘tijolinhos da prosperidade’ e outros tantos amuletos.  Como o leitor pode observar, não se trata apenas de determinada igreja ou seita, mas de uma miríade delas. São padres, pastores e assemelhados com um único objetivo: surrupiar a última moeda do desafortunado telespectador.

Deixando de lado a babel televisiva e voltando os olhos para os nossos templos, onde alguns pastores têm comportamento de pop star, abro um parêntese para falar de minha igreja: a igreja católica. 

Ultimamente, tem sido uma verdadeira penitência assistir a determinadas celebrações. Alguns sacerdotes parecem querer transformar o Altar do Senhor num ‘palco’, onde demonstram suas habilidades de orador ou de cantor. Alguns deles – não todos, felizmente – deitam falação, impostando a voz para dar corpo à mensagem; outros, porém, põem-se a cantar durante todo o evento. Com isso, destorcem o momento celebrativo, atraindo para si as atenções em detrimento da Palavra. Além de fé é preciso ter muita paciência, pois as coisas pioram quando o orador gosta do que fala: a cada frase, uma pausa para colher a admiração do espectador. O ‘discurso’ não termina nunca e, para os que estão em pé, o jeito é mudar de posição, descansando uma perna enquanto a outra aguenta firme. E nesse particular sofrimento, o tempo passa devagar, o corpo dói, a mente vagueia. É de amargar!

Não quero ser herético. Acredito na minha igreja e no trabalho de pastores: católicos ou não. Muitos desses abnegados missionários se embrenham nas periferias do mundo, levando alento e a Palavra de Deus aos desvalidos.  Mas não me parece razoável que a vaidade de uns poucos subjugue os fiéis, transformando o Altar do Senhor num palco.

P.S.: Este texto foi encaminhado à Cúria Diocesana, bem como a algumas paróquias. 


FILIPE

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

NÃO FIQUE NERVOSO

Às vezes me pego pensando: que diferença faria para mim, para você ou para o seu Zé da feira, se vivêssemos sob a monarquia, como viveram nossos antepassados até o final do século dezenove?... A mim, pouco importa a república, o presidencialismo, o parlamentarismo etc. Sei que o mundo será trumpado a partir de 2017 e que aquele cafajeste fascista vai se refestelar, esbofeteando ameríndios, latinos, africanos e toda a casta de pobres que ousa existir neste planeta. De minha parte, já recebo uma dose diária de safanões vindos de Brasília e do Palácio dos Bandeirantes, onde mora meu “potrão” (ops! queria dizer patrão...)

Desde a Proclamação da República – a quartelada que depôs o Pedrão –, o Brasil tornou-se uma corte de bacharéis repleta de nababos vivendo às custas do povo. Leis são feitas para criar ou preservar privilégios. As normas, em teoria, seriam para todos, mas são aplicadas seletivamente, garantindo direitos aos “senhores” e impondo deveres aos “servos”. E quem mora no ‘andar de cima’ jamais se preocupará com o bem-estar de quem se esconde aqui no porão.

Um caso. Recentemente, noticiou-se que um juiz, quando presidente do Tribunal de Justiça de SP, estatelou uma motociclista com sua Mercedes. Em seguida, deixou a moça desmaiada junto a um segurança e seguiu viagem para Brasília com o governador. Tinha algo mais importante do que o comparecimento a uma fétida Delegacia de Polícia – o que os mortais estaríamos obrigados a fazer coercitivamente. Naquele dia, Joaquim Barbosa tomaria posse como presidente do STF e o desembargador embargou-se de cumprir normas, embarcando-se para a Capital Federal. Coisas da nobreza!

O cidadão seu Zé, que tem uma barraca na feira, está preocupado apenas em vender suas bananas, mandiocas e verduras que ele mesmo cultiva. Porque se não vender logo, o prejuízo é certo. Ele se preocupa também com os abacates, que algumas madames costumam apertar para ver se estão ‘duros ou maduros’. Mas não está preocupado com a PEC 241, que tanta confusão tem causado, muito embora poucas pessoas saibam o que vem a ser uma “PEC”. Mas ninguém precisa entender de PEC, como não entendo de urânio, polônio ou plutônio e sei que todos eles são radioativamente letais – como letal é a PEC do “temerário”.

Não tenho feira, mas gostaria de ter uma barraca para vender alguma coisa, pouca, nem que seja limão, porque está difícil dar aulas. Mas eu não conseguiria trabalhar com tanta fartura, nem atender mais de um cliente por vez. O seu Zé, sim, é esperto e sabido. Enquanto atende seus muitos clientes, cada um mais chato do que o outro, põe um olho nas moedas e o outro nos desvãos da bancada a fim de evitar que lhe afanem limões, cenouras e pimentões. Eu também não conseguiria fazer as contas de cabeça que ele faz com tanta destreza: “Bom, aqui são três reais e vinte e cinco, mas faço três reais pra você; mais cinco reais e sessenta e cinco, mas fica por cinco reais e cinquenta; mais essa alface, que vai de presente..., não fica nervoso, tá sobrando! Agora, meia dúzia de ovos, dois reais e trinta; com dezoito e cinquenta..., vinte reais e oitenta. Vinte reais.” Não seu Zé, vinte e um reais! O senhor já fez descontos...” “Não fique nervoso, não fique nervoso!“

É, está difícil manter a calma. Ainda hoje, uma daquelas “madames” foi abordada levando, sem querer e sem pagar, é claro, uma sacola de batatas. Tá feia a coisa, seu Zé, mas não fique nervoso!


FILIPE 

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

DURANTE UM CD

Passa das três da tarde e não fiz a postagem da quinzena. Pus um CD com uma espécie de réquiem, para eu digitar durante sua execução. O que sair aqui, saiu e nem vou pedir desculpas a ninguém, até porque ‘desculpas’ seria o tema deste texto. Estou de saco cheio dessa palavra, que serve para tudo, mas não resolve nada. Depois de qualquer grosseria, vem aquele deslavado pedido de desculpas. ‘Desculpas’, a rigor, seria: não tenho culpa, então peço desculpas... Mas desta vez, não tem nada disso. Não vou pedir desculpas e o raro leitor ficará desincumbido de me fazer tal favor.

Estava querendo falar sobre escola, mas o arredio leitor tá de saco cheio de escola. Em todas as mídias já tem alguém falando disso – sempre baboseiras, mas a minha escrita também seria mais uma bobagem. Ia dizer que há uma gente sórdida, que tem “alergia a giz”, domina mal a Língua Pátria, mas gosta de dar pitaco no trabalho da peãozada que respira poeira do tal giz. Essa gente maldita, que não sabe de nada e que, quando abre um livro, só o folheia até a página dezessete (não sei por que a ‘dezessete’, quando poderia ser até a página dezoito ou a trinta e cinco), para depois poder vomitar Paulo Freire ou Rubens Alves, que nunca foi ‘Rubens”, mas Rubem. Recentemente, houve uma “sumidade” reproduzindo algo do Rubem Alves, mas citando Rubem Braga como autor. Tanto faria, caso o Velho Braga não se incomodasse com tamanha burrice. Ah, se quer ser chique, então que seja sofisticado. A falsa sofisticação é verdadeira breguice, e desta eu entendo bastante!

Queria falar sobre Brasília, onde mora atualmente o “Tranca-Rua” ou o “Coisa”. Mas meu texto ficaria pior do que já está ficando e o CD tá acabando. Não sei por que não pus um mais ‘comprido’, porque este é bem ‘curtinho’ e não vai dar para continuar escrevendo. Sorte sua, que ainda está por aqui, pois já vai ser liberado para curtir seu fds (não gosto dessa abreviação; parece xingamento, algo que jamais escreveria).

Queria falar sobre as atrocidades de Brasília, das ocupações das escolas no Paraná, da “guerra do vatinã” – que não é aquela em que os americanos saíram humilhados, mas outra. Esta, a “guerra do vatinã”, deverá ser travada por uma senhora e seu filho chupim. Ela disse que desta vez a “juripoca vai piar”. Não sei o que é juripoca, não a vi piar e nem vi a Guerra do Vietnã. Mas a minha amiga promete guerra e eu não duvido de sua juripoca.

Bom, o CD está nos acordes finais e eu já saio desta bagaça, prometendo algo mais consistente na próxima vez.

Acabou a música, acabou o texto!


FILIPE

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

MALANDRAGEM

Na minha infância, dos poucos livros que havia em casa, um era de contos. Lembro-me de uma história, não tão fabulosa como os clássicos infantis, mas dotada de magia. O título me fugiu, deixando apenas a imagem de um “nadador’ e de um “lenhador”. Ei-la.

Certa feita, um lenhador cortava lenhas à beira de um rio quando num golpe meio desajeitado, o machado escapuliu e caiu na água.  O rio era profundo e o pobre homem não sabendo nadar, sentou-se à margem e começou a murmurar: “Como vou fazer para ganhar o pão das crianças?... Meus filhos são pequenos, minha mulher anda sempre adoentada e esse machado era minha única ferramenta de trabalho. Para comprar outro, terei que andar léguas até o arraial e convencer o dono do armazém a me vender fiado.  E ainda terei que trabalhar por muito tempo só para pagar o machado. Ai, meu Deus, o que farei da minha vida?...” Nisto, apareceu um jovem dentro do rio, nadando pra lá e pra cá, sem perceber a presença do lenhador, que estava atrás de uma moita de capim. Ouvindo aquele murmúrio, o nadador deu umas braçadas mais vigorosas e se aproximou. “Por que choras, caro lenhador?” “O meu machado (...)” [não vou repetir a história, porque o leitor já sabe]. O nadador perguntou: “Onde caiu teu machado?” “Ali, um pouco abaixo, mais um pouco..., aí!”, disse ao nadador. Este deu um mergulho e custou a voltar, preocupando ainda mais o lenhador. Perdi o machado e agora perco também o amigo, pensou. Mas o nadador sabia mergulhar direitinho e emergiu com um machado: “É este?” O lenhador pegou o machado, examinou e vendo que era de ouro, respondeu: “Não, senhor, não é tão bom como este”. O nadador deu outro mergulho e voltou com um machado de prata: “É este?” ‘Pegando o machado, disse: “Não, amigo, também não é bom como este”. Por fim, o nadador mergulhou novamente e trouxe um machado de aço: “É este?” “Sim, senhor, este é o meu machado”. Quando voltou os olhos para o nadador, a fim de lhe agradecer, não havia mais ninguém. Então o lenhador voltou para casa feliz com o presente. A partir de então, estaria rico, muito rico, sem necessidade de cortar lenhas para sobreviver. Chamou seu compadre, contou-lhe a novidade e festejaram com um lauto banquete.

Mas o compadre do lenhador também queria ficar rico. No outro dia bem cedo, procurou um vizinho a fim de lhe comprar o machado. O vizinho não queria vender a ferramenta, precisava dela e a usava todos os dias. Mas após tanta insistência, acabou vendendo o machado para o homem, que pagou com dinheiro grande e nem quis esperar troco. Naquela mesma manhã, correu para as bandas do rio, atirou o machado no lugar mais fundo, sentou-se e começou a chorar. Mas o seu choro não parecia verdadeiro, por isso não veio ninguém a socorrê-lo. Caprichou um pouco mais no choro, e nada. Já de tardezinha, triste e desanimado, ele chorava de verdade. Nisto, chegou o nadador: “Por que chora, homem?” “Perdi o meu machado!” “Vamos procurá-lo”, disse saindo do rio e chacoalhando o corpo para se livrar das gotas d’água. “Não, caro mergulhador, meu machado caiu dentro do rio!”. “Ahn, não sou mergulhador, sou nadador!” “Mas, o meu compadre...” [quase completou a frase fatal] O nadador parecia estar com pressa, quis dar ponto final à conversa e disse: “Onde caiu o machado? Diga, que vou buscar”. “Ali, bem ali”. O nadador pulou na água e, num átimo, subiu com um reluzente machado de ouro maciço. Quando ainda mal se equilibrava sobre uma pedra, em meio à correnteza, o homem berrou: “É esse mesmo! É esse aí!...” Um estupefato nadador atirou o machado na água, desaparecendo num mergulho.

Acabou o espaço. Eu ia usar esta fábula para ilustrar uma burla, mas não deu. Desculpas!


FILIPE

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

AFETAÇÃO

Era madrugada e me preparava para escrever este texto quando um esbarrão involuntário derramou o chimarrão por sobre o notebook, fazendo uma senhora lambança. Desanimei com a crônica, tentei limpar o teclado, mas algumas teclas ficaram desobedientes.

Estava pensando nas relações humanas, na amizade. Um familiar, a quem muito considero, disse não saber ao certo o significado de ‘amizade’, e que talvez nem tenha amigos. “Sabe, eu acho que não tenho amigo!”. Disse isso, acrescentando que os laços devem ser reforçados prioritariamente dentro da família. “Mas, há pessoas que não têm família...”, provoquei. Uma gargalhada na outra ponta da linha encerrou o assunto.

Mas, o que é amizade? Há virtude em cultivá-la? A amizade é necessária, mas ninguém se torna virtuoso por ter muitos amigos. Cristo disse: “Amai vossos inimigos!” – não ‘vossos amigos’.  Essa impactante frase pode ser contraposta a outra, também do Mestre, de igual contundência: “Não deem pérolas aos porcos!” Sou constantemente tentado a seguir apenas o segundo conselho, porque ‘amar o inimigo’ é de lascar!

Recentemente um amigo fez um desabafo no ‘feice’, dando a entender que alguém lhe traiu a amizade. Escrevi logo embaixo, que amizade é pedra preciosa, algo que não se desperdiça.  Em alusão ao ‘segundo conselho’, recomendei ao amigo dar farelo e lavagem aos porcos – isso fará com que chafurdem de contentamento – não o tesouro.

As relações humanas tendem a ser neuróticas, egoístas, utilitaristas e não é necessário doutorado em filosofia, antropologia ou psicologia para tirar essa conclusão. Isso pode ser dito, com a classe e a sabedoria dos ébrios, por qualquer ‘borracho’ dialogando com seu copo no balcão do boteco. Se tenho um amigo, se me entendo com um colega de serviço ou se me dou bem com o dono do botequim, é por que tiro proveito disso. Terei sempre com quem dividir minhas angústias, ajuda nas tarefas cotidianas ou uma pinguinha de graça. O resto é lorota.

A amizade deve ser semente que se semeia espalhadinho; depois, planta que cresce bem devagarinho; mais tarde, árvore frondosa e de caule lenhoso – solitária, porém. E não há bosques, matas ou florestas assim. Não há!

Ainda quero falar sobre o amor.  Mas o amor, que não é tema destes rabiscos, teria que ser abordado carinhosamente, com mais capricho. Neste momento, não consigo sequer escrever sobre a ‘amizade’, algo supostamente banal, quem me dera discorrer sobre coisa tão elevada! Acredito que o amor exista nas versões egoísta e oblativa. A primeira, sedutora, é o que impulsiona o ser humano; a segunda é sublime e nos humaniza divinamente.

Entendo que a base de toda relação deve ser a fraternidade, porque o amor que não seja fraterno, não é amor. É afetação.


FILIPE

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

ESCOLA PARA QUÊ?

Além de inteligente, fina, ela é uma aluna muito aplicada. Dia desses, me interrompeu com uma pergunta: “Professor, sem querer ser grosseira, para que vai servir isso que você está ensinando? De prático, em que vou poder usar na minha vida, por exemplo?”

De uns tempos para cá, é muito comum o aluno questionar os porquês de se aprender determinado conteúdo. Quando era estudante e não conseguindo entender um tópico de álgebra, procurei o professor em particular e perguntei educadamente para que serviria aquilo. Ele, “muito gentil”, respondeu: “Primeiro você aprende isso, depois pergunte para que serve”. Fiquei tão embriagado de satisfação, que saí sem lhe agradecer.

Muitos “educadores” – uma gente à toa, que não dá aula, mas passa a vida inventando coisas e publicando bobagens – costumam afirmar que o professor deve contextualizar tudo o que ensina para que o aluno seja estimulado a aprender. Concordo. Mas aquela gentalha vai adiante: “Se o aluno não sabe onde vai usar o que aprendeu, como vai se interessar pela aula?” – emenda a besta, que só sabe futricar com a vida de quem trabalha. Quando surgem perguntas assim, normalmente respondo que o ENEM, os vestibulares e os concursos cobram. Noutras vezes, costumo dizer que aquilo não serve para nada, que a escola poderia fechar e dispensar a todos e que a sociedade economizaria muito com a extinção do ensino. Por que aprender Literatura, História, Geografia? Vai usar poesia onde?... A História foi escrita pelos vencedores, logo é mentirosa. Geografia é algo provisório, porque as fronteiras se movimentam sempre. Melhor mesmo é aprender uma profissão e ganhar a vida, fazendo pães, apertando parafusos, assentando tijolos, instalando antenas parabólicas... Opa! Eu disse ‘parabólicas’?!  

Mas voltando à mocinha lá em cima, o conteúdo que lhe causou aborrecimento é bastante simples: equações quadráticas, que geram gráficos denominados parábolas e que são a base da tecnologia de transmissão de sinais em telecomunicação. Sem esse conhecimento, as tais ‘antenas parabólicas’ não existiriam e alguém já ficaria sem emprego! Expliquei à mocinha, que até o século dezenove muitas equações eram de amplo domínio, mas sem um emprego prático. Caso os alunos de outros tempos aprendessem apenas o que lhes fosse de uso imediato, talvez estivéssemos ainda rolando cargas sobre toras, como fazíamos há alguns milênios.

Semana passada, a imprensa publicou matéria sobre a educação no País, dando destaque para Matemática: os alunos do Ensino Médio estão cada vez piores nessa disciplina. Fico tomado de angústia quando leio coisas assim. Mas, pensando bem, de quem é a culpa? É óbvio que é do governo, mas vamos fugir das obviedades. Não seria também dos pais, dos mestres, dos próprios alunos? Não sei responder. Mas sei que nosso aluno, em geral, está cada vez mais preguiçoso, não quer estudar, não quer pensar!

Albert Einstein, quando esteve no Brasil, impressionou-se com a malemolência do brasileiro. O ‘Pai da Relatividade’ teria afirmado que “o calor dos trópicos amolece o caráter do brasileiro”. Maldade à parte, penso que deveríamos ser mais responsáveis com nosso ensino formal. Se ‘a escola existe para desasnar o povo’, conforme ensina Renato Janine Ribeiro, ‘a sala de aula deve ser uma oficina de pensamento’. E um povo que não sabe pensar, não pode sequer sonhar um projeto de nação.

FILIPE

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

ELES VENCERAM

Já fui repreendido mais de uma vez por ‘politicar’ este espaço, mas não me emendo e cá estou novamente a resmungar. Peço desculpas aos amigos que me aturam, porque a amizade deve estar muito acima da ideologia, da consanguinidade e de qualquer credo ou rabugice. “Quem encontra um amigo, encontra um tesouro”, diz o Eclesiástico. Eu tenho alguns amigos, poucos, mas o suficiente para minha despesa, que não é das maiores. Há quem tenha muitos amigos, talvez centenas deles – ou “um milhão”, como pretendia Roberto Carlos, que não é amigo de ninguém. Inimigos não tenho, penso eu, mas vai saber... Já Dilma Vanda Rousseff tem inimigos em número e importância muito maiores do que os que eventualmente eu tenha. Mas Dilma encontrou seu ‘tesouro’ na figura de Kátia Abreu, que lhe “garante forte proteção”, conforme afirma o mesmo Eclesiástico. Precisamos aprender com Dilma e Kátia o significado disso!

Não quero falar sobre as causas do impeachment e, no momento, pouco me importam os seus porquês. Não sei se os Estados Unidos tramaram; se a Quarta Frota está ou não de prontidão; nem se o nosso petróleo, nossos aquíferos e o nióbio sejam a razão para isso. Não me importa o provável fim dos acordos comerciais Brasil-China, a implosão do Mercosul nem a explosão do BRICS. Nada disso me interessa, porque em geopolítica sou um ignorante bastante esforçado. Sei que o nióbio é fundamental na metalurgia moderna, que ligas de nióbio formam esqueletos de navios e de naves espaciais, que 98% desse minério está em solo brasileiro, que os americanos importam 80% do que usam e que três quartos de todo o nióbio do planeta está em Minas – como sempre, as Gerais!

Também não quero falar sobre os governos anteriores aos de Dilma-Lula. Nos estertores da era tucana, após as privatizações, FHC apagou luzes de ruas e avenidas devido ao colapso na geração de energia elétrica. Naquela época, ninguém pôde construir casas, porque não havia autorização para novos padrões de rede elétrica nas residências. Um parêntese: não havia seca!

Acabei falando de FHC e foi sem querer. Confesso, envergonhado, que, por alguma razão recôndita, gosto de ler FHC. Ler – não ouvir, entendido? Mas não leio nem ouço seus pares. Tenho asco de Serra e Aécio, mas faço uma defesa do “mineiro de Ipanema”: derrotado nas urnas, teve todo direito de contestar, espernear, pegar pirraça e até rolar no chão contra o resultado das eleições. É do jogo isso. Já o Serra é sórdido, porém não traiu. Este é como o escorpião: todos sabem que é peçonhento e que não se deve ter contato com ele. Só mesmo uma taça de vinho nas mãos da Kátia Abreu para pô-lo no devido lugar.

Não quero falar do usurpador, o maçom traíra, covarde, cujo nome me recuso a escrever. Esse, sim, se houvesse paredón e me fossem dados poderes, ainda que pequeninos... Deixa disso, !

O segundo governo Dilma degringolou não por inépcia, conforme acusam. Nosso presidencialismo é de coalizão: o Executivo governa em parceria com o Legislativo, mas houve sabotagem do Parlamento com as chamadas pautas-bombas do “correntista suíço”, que atende pelo nome de Eduardo Cunha. E assim, o País travou de vez, resultando no inacreditável: uma senhora honesta foi julgada e defenestrada da presidência por figuras desprezíveis. Nenhum algoz conseguiu apontar didática e categoricamente o crime de Dilma. Agora, “livre dos petralhas”, o País está pronto para implementar um “audacioso projeto” inverso ao de JK: retroceder “cinquenta anos em (menos de) cinco”.

Parodiando Machado de Assis: “Ao vencedor, as baratas!”,  porque desta vez fomos vencidos.


FILIPE

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

A OLIMPÍADA DE ALINE

Artigo encaminhado ao jornal "A Tribuna" de Amparo



Aline estava de volta à “Luiz Leite”, uma escola pública onde estudou da quinta série ao terceiro colegial. Como convidada, falava de sua trajetória para uma pequena plateia de jovens como ela, que sonha com uma vida melhor e um mundo mais justo. De família humilde, Aline quis quebrar o paradigma da perpetuação da pobreza, típica de uma sociedade capitalista e cruel como a nossa. Para isso, teve que estudar, enfrentar dificuldades, transpor barreiras e amassar com pés e mãos o barro que emoldura o triunfo dos fortes.

Terminado o Ensino Médio, Aline entrou num cursinho pré-vestibular, que ela mesma pagava com seu pequeno salário de ajudante de manicure. Sem tempo de sair, de se divertir, a sua rotina se resumia ao serviço, estudos e nada mais. Prestou vestibular ao final do ano, mas não conseguiu passar. Com apoio dos pais, parou de trabalhar para se dedicar exclusivamente aos estudos preparatórios, intensificando ainda mais a sua já fatigante jornada. Saia cedinho para o colégio, onde se reunia com colegas, e lá costumava ficar estudando o dia todo, muitas vezes dividindo um marmitex como almoço. Se a fome era grande, a grana era pequena e ela não podia se dar ao ‘luxo’ de fazer uma refeição completa. E assim, durante um ano inteiro, do amanhecer até altas horas, ela só teve tempo para equações, textos, análise sintática e redações. Todas as outras coisas deixaram de ser prioridade: namoro, encontros, baladas etc. Até que Aline adoeceu com estresse e pneumonia. Mas ela não desistiu. Curada, a jovem guerreira estava de volta ao “front”, empunhando com garra seus livros e cadernos.

Chegada a temporada de exames, Aline foi aprovada no curso desejado em duas universidades federais além da PUC de São Paulo, pelo Prouni. Agora, a sua dificuldade residia na escolha da faculdade – que charme! Optou por uma e lá se foi a garota com apenas duas malinhas e uns poucos reais no bolso. Se desistisse, não teria como pagar a passagem de volta... Mas Aline jamais desistiria!

Contudo, a luta de Aline estava apenas começando. Ingressa na faculdade, sem dinheiro, teve que batalhar por moradia, material didático, pela sobrevivência. Não bastasse isso, veio a enfermidade do pai, que infelizmente faleceu.  Nesse período, pôde contar com a ajuda de colegas e as inúmeras rifas que sua mãe vendia, mas ela não ficou à mercê da boa vontade alheia. De início, trabalhou como faxineira nos finais de semana, depois deu aulas, foi monitora e desenvolveu projetos acadêmicos remunerados até a conclusão do curso.

Esta é a história da filha de um padeiro e de uma merendeira, que acaba de se formar em medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora, uma das mais tradicionais do País. Por isso, nestas Olimpíadas, quando o país-sede ostenta um mingau ralo de medalhas, doutora Aline Pavani representa um povo aguerrido que não medra, que luta e vence.

Que se curvem à Aline e a outros anônimos os deuses do Olimpo, porque a esses heróis pertencem todos os pódios e todas as medalhas!

FILIPE

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

PRA QUE CHORAR?...



Andei pesquisando e não encontrei a informação de que tanto preciso: Com quantos anos, em que cargo e com que salário se aposentou o ministro Eliseu Padilha?
Ficaria muito agradecido se o próprio me informasse.
FILIPE   


Fui ignorado pelo ministro-chefe da Casa Civil a quem ousei mandar o e-mail acima, mas isso não me surpreendeu. O que me assombrou foi a súbita indignação de uma boa alma, até então muito crédula da ‘nova ordem’ que se instalou no país.

“Quanto tempo falta para você se aposentar?” –  perguntei àquela mulher, uma velha conhecida. “ contando nos dedos. Pra mim, faltam cinco anos... Cruz-credo, num aguento mais esperar!” “É, mas talvez falte mais tempo...” “Como assim, mais tempo?!...” “O novo governo vai mexer no tempo de contribuição.” “Mas, pros novos, né?... Pra nóis, os véio, num mexe mais não.” “Querem aumentar em quarenta por cento o tempo de contribuição para todos. Assim, você terá que trabalhar mais sete anos, em vez de cinco.” “Mas num pode...” “Poder, não pode, mas você não sabia?” “Não! Eu vejo o Jornal Nacional todos os dias e não vi nada disso...” “Ahn!...” Mordi a língua para não dar risada.

Esse assunto foi um despropósito. Após um dia inteiro na labuta, a mulher estava esparramada no sofá – cansada, mas serena e feliz. Queria assistir à tevê tranquilamente, mas alguém lhe estraga a tarde... E estraguei mesmo. Ela se reposicionou no sofá, agora o rosto teso, ruborizado, e começou a vociferar contra o governo. “Eu não aguento trabalhar por mais tanto tempo. Já estava certa de que ia me aposentar daqui a cinco anos...” E começou a despejar uma malcheirosa carga de impropérios. Por pudor, não reproduzo suas palavras e as trocarei por algo próximo a parônimos. O leitor que se esforce e me desculpe. “Mas num pode..., buda baliu! Mas que filho da luta! O que nóis vai fazê  pra arrancar esse fiado de lá?! (...)”

Estranhei o rompante de quem sempre esteve empolgada com o ‘temerário interino’, mas arrumei um jeito de piorar a coisa e fiz a fervura levantar a tampa da panela. “Tem uma saída”, eu disse. Ela arregalou os olhos, esperando consolo. “O governo propõe, a quem não aceitar o aumento no tempo de serviço, idade mínima de 65 anos para homens e 62 ou 63 para mulheres e você poderá escolher.” Mal terminei e a pobre começou a tossir. Sua face, antes rubra, tornou-se arroxeada. Mas não era de brabeza aquela tosse. Talvez cigarro, um golpe de ar frio, sei lá..., brabeza é que não era. Saí dali ‘morrendo de dó’, coitada...

Eu, que me aposentaria ano que vem, terei que ralar ainda por sete, talvez setenta, ou quem sabe setenta vezes sete anos! Muitos perguntam: “Já se aposentou? Quando se aposenta?... Estou velho, mas sem exageros, por favor. Outro dia, um trouxa passou de moto e gritou: “Oi, fessô, num morreu ainda?!”

Não morri, não recebi resposta do ministro, mas senti uma estranha comichão de contentamento com a macabra notícia da reforma da Previdência engendrada por Padilha, que o JN não deu e a Folha escondeu na última página. Mas o povo bem que merece as traquinagens do “pai do ‘Michelzinho’”! Então, pra que chorar?...


FILIPE

sexta-feira, 22 de julho de 2016

TROCANDO OS ÓCULOS


“Escuta aqui, a armação destes óculos é de titânio, então por que quebrou tão facilmente? Olha que tenho muito cuidado...” “Deixa eu ver...”, disse o rapaz, deixando o celular e pegando meus óculos. “Ah, mas tá meio velha, não?! Tá oxidada, desgastada..., quando é que você fez?” “Há uns cinco anos.” “Vixe! Tem que trocar mesmo. Já tá velha pra caramba!” “Imagina... Por que velha, se deveria durar muito mais?...” “É o seguinte...”, ele disse pegando meus óculos, soprando as lentes e passando um papel higiênico (argh!). “Óculos não são eternos e se não quebrassem, as óticas fechariam!” “Mas, não assim tão depressa..., com sete anos de uso!” “O quê!? Sete anos?! É pra durar só dois anos!” “Nada disso. Meus primeiros óculos duraram dezessete anos, e esta armação é de titânio, de titânio!” Agora a besta fingiu que não ouviu e ficou ciscando na vitrine, com a parte amputada de meus óculos na mão. Ele não sabe o que é uma ‘liga de titânio’. Ignora ser material top, utilizado em naves espaciais, resistente a altas temperaturas, à irradiação, a bombardeio de meteoros, a bafo de balconista. “O que faço?”, perguntei. “Faz outros óculos!” “Mas essas lentes são novas, tem só uns dois meses e foram feitas aqui...” Ah, não tem jeito não. Não tem armação para elas e o negócio é fazer tudo novo.” “Vou pensar um pouco. Até mais (ou até nunca, pensei)!” O rapaz voltou para seu celular, deslizando freneticamente os dedos na tela. Agastado, saí dali sem solução para o problema.

“Bom dia! Em que posso ajudar?”, disse a moça da outra ótica onde fui pedir socorro. “Eu trouxe meus óculos, que quebraram e eu não sei por quê. Olha, eu tenho muito cuidado com eles e ...” “Deixa eu ver”, interrompeu-me com um sorriso. “Sim, aqui estão. Esta armação é de titânio, material resistente usado em naves...” Interrompeu-me novamente, descartando essas informações inúteis: “Foi feito aqui, não?” “Sim, tenho cadastro.” “Diga seu nome completo e eu já vejo.” A moça voltou com uma ficha e alguma intimidade: ”Então , você sumiu, não?! Faz tempos que não nos procura... Olha, eu vou ver o que posso fazer.” E saiu com uma lente, deixando o resto da sucata no balcão. Enquanto ela experimentava a lente numa e noutra armação, eu tentava ler o jornal cujas letras mais pareciam formiguinhas ziguezagueando. “Acho que consegui. Veja se pode ser esta.” Peguei a armação e fiquei maravilhado. “Olha, que ótima!” “Então eu posso pôr as lentes, ?” “Sim, pode pôr, que vou levar.” Ela trouxe os óculos, limpou as lentes num guardanapinho e me pediu para experimentar. Olhou bem e disse: “Ficaram melhores do que os outros. E esses ‘restos mortais’, vai levar?...”, perguntou, apontando para os "destroços de nave espacial" a que se tornaram a armação antiga. “Vocês põem na reciclagem?” “Sim.” “Então vou deixar com vocês. Obrigado e já vou indo.” “Obrigada, . Precisando, volte!”

De Carlos Drummond de Andrade, tenho apenas a mineiridade e a miopia. Como ele, também costumo perder os óculos e a paciência. Por isso, quis pô-lo no topo desta.

FILIPE

sexta-feira, 15 de julho de 2016

O HOMENZINHO IMPERTINENTE

Postado originalmente em 26/08/2011 no “blogdofilipemoura”
Quase sempre chega atrasado. Apressado, com o boné numa das mãos, olhando para os lados e com um meio sorriso naturalmente esculpido, aquele homenzinho toma assento num dos bancos da capela. Busca sempre o mesmo lugar e caso já tenha alguém ali – não importa quem, nem quantos –, o problema é de quem chegou antes. Ele vai se enfiando entre um e outro: empurra o primeiro, o segundo, e o terceiro escapa furioso. Já sentado, seu boné ainda está na mão e será preciso acomodá-lo ao lado. Portanto, alguém mais terá que se espirrar dali.
Ninguém se move. Enquanto isso, o sacerdote continua a celebração, a assembleia entoa cantos e faz as preces. Mas o intrépido senhor não desiste. Está decidido que seu boné terá que ficar ‘sentado’ ao seu lado e dará um jeito nisso. Impaciente, gesticula-se batendo levemente os pés no genuflexório. Não sendo isso suficiente, começa a fazer uns ruídos. A ausência de dentes lhe possibilita produzir algo muito semelhante àqueles sons que emitimos – não pela boca, é claro –, mas que fazemos somente na ‘solidão do trono’. E percebendo a eficácia deste método, anima-se. Capricha nos vocais e, pouco a pouco, começa a debandada. Primeiramente uma ruborizada mocinha; depois, aquela sobranceira senhora; agora, um esguio senhor com fumos de barão também se rende.
Finalmente, o homenzinho vê-se livre daquela ‘gente incômoda’. Sozinho, estica bem os braços espalmando as mãos sobre o ‘império’, agora sob seu domínio, a que se tornara o banco. Contempla orgulhoso aquela vastidão de madeira e então decide participar, triunfante, da missa que já termina.
P.S.: “Tuto”, este era seu nome, faleceu dias atrás, aos 79. Que Deus o acolha e o acomode confortavelmente num dos ‘bancos’ do Reino!

FILIPE

sexta-feira, 8 de julho de 2016

FRUTA MADURA

Cá estou outra vez na varanda de meu pai. A lamparina continua com sua chama trêmula, desconfiada.  Num papel de pizza, acompanhado do chimarrão – como na outra crônica –, rabisco minhas impressões nesta fria madrugada (doze graus, aponta o termômetro), mais tarde, transcritas para a tela. Enquanto isso, papai e mamãe continuam “embalados por Morfeu”.

Cheguei há poucos dias, encontrando mamãe alegrosa e com saúde; e papai também saudável e proseiro. É muita graça ver os pais octogenários, gozando saúde, felizes. Aqui em casa, isso é segredo, as idades dos onze filhos, se enfileiradas, ultrapassariam quinhentos anos de história e encontrariam Cabral com as naus do Descobrimento! É, estamos ficando todos velhinhos e continuamos agasalhados pelos pais... Ah, a mamãe tá uma gracinha, de tão fofa. Dia desses, pela manhã, liguei o aparelhinho de som de meu pai para que ela ouvisse. Pus Tonico e Tinoco cantando “Cabelo de Trança” e, sabendo que ela gosta dessa música, observei seus olhos flamejando de embevecimento.

Outro dia, fizemos um breve passeio na cidade e que me fez recuar quase meio século. Encontrei parentes próximos de uma das pessoas mais admiráveis que conheci e com quem convivi: Tatão Tibúrcio. Vi sua sobrinha Nina, com o sorriso do Natalino Tibúrcio, e vi a Terezinha, mãe da Nina. De toda a família Tibúrcio, o Natalino foi o único que deixou descendência. Angelina e Tatão morreram solteiros; Zé Tibúrcio, que se casara com Evangelina, não teve prole. Mas o Natalino foi um autêntico “Abraão”: teve mais de uma dezena de pivetes. Foi muito penoso para ele, com ofício de sapateiro, sustentar aquele povaréu. Lembro que papai costumava visitá-lo e aproveitava para lhe cortar o cabelo. Certa vez, papai chegou em casa e disse: “Fui no Natalino e cortei seu cabelo. Mas seu cabelo tava parecendo um guarda-chuva, de tão grande, coitado...”

Estava com saudade do sorriso, da gargalhada da Terezinha do Natalino. Uma mulher que experimentou todo infortúnio que a vida ousa oferecer: doença do marido, miséria, a morte de filhos recém-nascidos, e a morte do Zé. Este, seu primogênito, morreu jovem e era quem sustentava a família como metalúrgico em Volta Redonda. Mas a Terezinha sempre deu risada de tudo isso e continua a gargalhar – agora, impossibilitada de andar.
 
O “Zé do Natalino”, como era conhecido, me fez um grande favor quando comecei a frequentar o grupo escolar. Eu era novinho, pequeno, e os moleques gostavam de me surrar. Então, ele me disse: “Olha, ninguém mais vai de bater, pois não vou deixar”. Na primeira investida, enxotou uns três, porque o Zé era valente mesmo. A partir daí, nunca mais apanhei. Obrigado, Zé, que Deus o recompense com o Paraíso!

Esta visita à minha terra tem sabor de fruta madura apanhada no pé, molhada pelo orvalho da manhã. Eu diria que tem gosto da pouco conhecida e saborosa frutinha de grande-galho, que devorávamos numa infância igualmente doce.


FILIPE

sexta-feira, 24 de junho de 2016

NOITES JUNINAS

Ainda pequeno, tinha eu uns sete anos, papai nos levou a uma festinha – que eu não sabia ser junina. O festeiro, seu Antônio Inácio, morava numa velha casinha de pau-a-pique, que ficava próxima ao local do ranchinho onde costumo fazer a sesta nas tardes de minhas férias.

Chegamos à noitinha. No terreiro, um alto mastro de madeira exibia uma estampa de Santo Antônio, o patrono do folguedo. Ao lado, toras cruzadas crepitavam ao sabor das chamas, aquecendo aquela noite de junho. Não havia lua; havendo, fora ela ofuscada pela fogueira e por nós ignorada. Havia chaleiras de café e muita batata doce, que púnhamos nas cinzas que iam se formando. Broa de fubá também havia, mas preferi as batatas, que eu mesmo cobria com cinzas e depois as tirava fumegantes. Havia também uma sanfona ‘8 baixos’, que seu Antônio tocava.

Lá pelas tantas, meu pai consultou seu velho relógio de bolso e disse: “Vamos embora, que já é meia-noite!”  Um deslumbramento: nunca eu ficara acordado até meia-noite! Seu Antônio perguntou: “Quem vai ‘pular’ a fogueira?” E começou a preparar a passarela, quebrando as brasas, formando uma trilha pedregosa e incandescente.

Alguém se animou e passou. Depois outro e mais outro. Meu irmão mais velho, passou num galope e eu o segui. Impressionou-me o fato de sentir as brasas sob os pés descalços e não me queimar – uma proteção do santo milagreiro então festejado?... Mas a minha fé não era maior do que o medo das brasas. Por isso, fiz a travessia repetidas vezes, mas em poucas e velozes passadas. Meu pai também se aventurou. Com o caçula no colo – o bebê, que anos mais tarde seria missionário sacramentino –, caminhou lentamente por sobre o brasido, para espanto e admiração de todos. Com certeza, a sua fé, muito maior do que a minha, o salvou das bolhas.

Anos mais tarde, na escola onde fiz o primário, outra festinha aconteceu, desta vez de São João. Era sofisticada: tinha iluminação elétrica, bandeirolas, Quadrilha e Casamento do Jeca. Só que, para entrar, teria de pagar ingresso – de valor simbólico, é claro –, mas o que é ‘valor simbólico’ para quem não tem dinheiro? Eu não podia pagar e, na companhia do irmão mais novo e de um amigo, empreendemos uma burla. Havia um roçado nos fundos da escola, que no inverno virava um matagal de espinhos e carrapichos. Chafurdamos naquele mato até darmos na cerca de bambu, que rodeava a escola. A custo, abrimos um buraco e entramos um a um. Com a roupa amarfanhada, tendo que nos livrar dos espinhos e carrapichos, chegamos a tempo de participar. O sanfoneiro, seu Gentil, que eu conhecia da padaria, animava a Quadrilha. Enfim, chegou o momento mais esperado: o Casamento do Jeca.  No ‘altar’, o Zé Amaury era o ‘seu vigário’; os ‘nubentes’: Zé Lourenço e Zita; havia também um ‘delegado’ para evitar que o noivo fugisse. Estavam adornados de roscas no pescoço e pães doces na cintura, mastigando sem parar. E o ‘padre’ deu início à cerimônia com: “Pelo sinal da santa lambança, por enquanto não entrou nada em minha pança!” – arrancando a primeira de outras tantas gargalhadas.

Outras festas aconteceram: modernas, teatrais. Essas duas, porém, ficaram cravadas na minha memória como as mais notáveis.

Hoje, já não há mais folguedos nem fogueiras. As noites juninas não são mais fagueiras e suas festas não são mais joaninas.


FILIPE

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A GAMELEIRA


Eu a descobri garbosa e poucos sabem de sua existência ou por ela não se importam. Cresceu silenciosa, como crescem as árvores, e sua copa já alcança as alturas – uma enormidade. Lembra uma catedral gótica, quando observada a partir de seu tronco repleto de nervuras. Antes, disputava fiapos de sol com a vizinhança galhuda e folhosa; hoje, reina soberba por sobre a ramagem. Balançando ao vento, seus galhos, feito longos e encurvados braços, parecem desdenhar de mim e dos arbustos – uma insignificância rasteira cá embaixo. Brotando de sua base, sinuosas e robustas raízes se estendem pelo solo como serpentes em fuga.

Quando criança, tinha medo das gameleiras, pois diziam serem elas mal-assombradas. Havia uma dessas, um pouco distante de nossa casa, enorme, gigantesca! Crescera em meio a um rochedo com reentrâncias cavernosas, onde urubus nidificam. Morreu prematuramente, ainda uma ‘jovem’ centenária, e dela restou o caule desprovido de galhos, semelhante a um gigantesco braço nu erguido em permanente protesto.  Seu tronco repleto de catanas, como convém às gameleiras, é de difícil acesso.  Medrava ao passar perto daquela árvore, onde havia um caminho estreito e margeado por uma espessa vegetação. Os antigos – sempre eles! – juravam haver ‘coisas do outro mundo’ naquelas bandas. Passando por lá à noite, só não corria de olhos fechados pela óbvia razão de que eu erraria o caminho e adentraria o matagal.

A fama da defunta gameleira, como a de outras tantas, não é apenas de assombração.  Muita gente se beneficiou delas, pois as ‘velhas benzedeiras’ de antanho tinham o costume de ‘pregar tosse coqueluche’ no seu tronco. Diziam-se que, à meia-noite e em determinadas ocasiões, as curandeiras acorriam àquele tronco munidas de martelo, prego e muita fé. A cada batida, uma prece para a moléstia ficar cravada para sempre no lenho gameleiro.

Mas os camponeses não se serviam apenas das propriedades miraculosas da gameleira a fim de pôr fim a suas enfermidades. O termo ’gameleira’ deriva de ‘gamela’, um recipiente de madeira que tinha múltiplas funções na casa dos caboclos. Havia gamelas para guardar ou lavar alimentos e gamelas usadas como penicos. Meus ancestrais usaram desses utensílios, que eram feitos a partir das tais catanas da gameleira. O gameleiro – artesão fazedor de gamelas – cortava com machado aquela protuberância, preservando a árvore, e a esculpia de forma a torná-la uma espécie de tigela. Na minha casa havia uma dessas gamelas que mamãe usava para alguma coisa na cozinha.

Naquelas redondezas, muitas gameleiras foram dizimadas por sitiantes ambiciosos ou temerosos de ‘almas-penadas’. Não se usam mais gamelas e o que dá lucro é capim, que engorda o gado e o bolso. Por isso, limpam os pastos de árvore ‘agourenta’ para produção de forragem.

Protegida de superstições e das mundanas ambições, cresce formosa a minha rica gameleira. Sabedora da iniquidade humana, resolveu fixar-se num despenhadeiro inóspito, em terreno de pouca valia, onde apenas tatus e gambás se amoitam. Mas não somente tatus e gambás, porque também eu, ainda que em pensamento, escondo-me naquelas brenhas para me curar do fastio quando a vida me enfada.

FILIPE

quinta-feira, 26 de maio de 2016

CARTA AO POETA

Texto encaminhado ao jornal "A Tribuna" de Amparo, em réplica a um artigo.


Caro Marcelo Henrique.
Ainda que um poeta não precise de conselhos, atrevo-me a lhe dizer que um ‘imortal’ da poesia e da prosa deveria se preservar da cólera verborrágica que nos acomete, os reles mortais.

Em seu texto intitulado “Em busca do equilíbrio” e publicado na última edição deste semanário, você diz, entre outras coisas, que “o PT é um cadáver insepulto, fede muito e verte chorume”, que “as centrais sindicais e o MST são, em sua quase totalidade, uma horda de baderneiros” e que “a UNE continua sendo um nicho de comunistas”! Bom, para quem prega o “equilíbrio”, conforme sugere o título do artigo, seu autor parece estar um pouco desequilibrado. Não se deve lançar à geena inocentes almas misturadas aos desalmados, que se encontram também em outras plagas.

Quanto ao alvo de sua verrina, o PT, posso afirmar que não se trata apenas de uma estrela ou uma sigla, mas um partido político com inserção social, tendo entre seus membros pessoas de altíssima e ilibada reputação. Dentre seus filiados, há os que trabalham duro e honestamente, encampando a luta política contra os espoliadores da classe operária. Chamar o PT de “cadáver insepulto” é atentar também contra nós, seus simpatizantes e eleitores eventuais.

Talvez o articulista não saiba, mas nos outros partidos há ladrões e alguns roubam até verba da merenda escolar! Neles há também os lambe-botas sempre à espreita de uma “boquinha” na Administração Pública, uma gente mesquinha, bem relacionada e que costuma lograr êxito, sobrepesando a sociedade em cargos comissionados. Em Amparo, na atual gestão, isso chegou a ser questionado pelo Ministério Público.

O fato é que o Partido dos Trabalhadores, apesar de seus inúmeros defeitos e injustificáveis equívocos, foi a força motriz responsável por riscar o Brasil do mapa da fome neste início de século. Dos adversários, não se espera outra coisa senão a crítica irresponsável. Mas do povo pobre, esperava-se gratidão e não essa fúria tresloucada alimentada pela mídia nazifascista. Por ignorância ou maldade, muita gente beneficiada pelo “Minha Casa, Minha Vida”, “ProUni” e outros programas de inclusão social apedreja o PT. A história, sempre ela, há de dar o justo veredito e esse “cadáver” poderá revivificar.

Uma palavra final. Para nós – os mortais viventes de parcas letras, mal-ajambradas palavras e de pensamentos vis – não é de todo ruim “descascar a mexerica com dedos sujos”.  Mas não me parece de bom-tom tais práticas por quem ostenta as mãos enluvadas da intelligentsia tapuia, não é mesmo, Marcelo Henrique? Da próxima vez, não seja tão deselegante, caro poeta!


FILIPE



sexta-feira, 13 de maio de 2016

MALEDICÊNCIAS

“... e não serei maledicente.  Só por hoje!”

Há tempos, colei essa frase na porta do armário na escola onde trabalho. A intenção era guardar-me desse malfeito que assola a humanidade desde seus primórdios. Mas parece que aquele papel descorou não pelo tempo, mas pela vergonha de mim. Continuo dando conta da vida alheia, e deixando a minha vida tão necessitada de cuidados.

Não me consta que Moisés tenha recebido, na “Tábua das Leis”, um mandamento que proibisse sua tribo de maldizer o próximo. Mas Cristo disse nos evangelhos: “Raça de víboras, como podes dizer boas coisas sendo mau? No dia do Juízo, pelas tuas palavras serás justificado ou condenado!” Ah, o Mestre sabia o que estava falando, porque aquele povo do templo devia ter uma língua devastadora!

O vício da maledicência é de difícil tratamento. Não passa um só dia, faça chuva, sol, calor ou frio, sem que este impenitente “escriba” cometa a impudicícia de caluniar alguém. E olha que eu me esforço... Desde a minha infância, já ouvia gente grande dizer que é feio falar da vida alheia. Um parente, quando nos visitava, engatava uma conversa com meu pai em que se falava de tudo e por horas. Dele, era comum ouvir: “Compadre, você sabe que eu não sou de falar mal dos outros. Mas tem gente de ‘língua grande’, que não deixa a vida da gente em paz... E aquele fulano, compadre, é um desses. Ele é porcaria, não vale uma b... de gato!”

Também era comum haver gente um pouquinho mais refinada que o compadre de meu pai. Antes da ‘fuzilaria’, ia logo se defendendo: “Eu sou muito positivo e falo somente a verdade. E eu falei mesmo e foi na cara!” Bom, deve ser mesmo muito positivo falar na cara, que é para ofender e afundar de vez o desafeto. Outros, ainda mais sofisticados, costumam usar a palavra ‘sinceridade’. “Estou te falando isso, porque eu sou sincero e não sou de falar por trás.” Mas a tal ‘sinceridade’ costuma ser uma autêntica grosseria, principalmente contra alguém frágil.

E olha só..., cá estou eu a falar das pessoas, ainda que sub-repticiamente, sem citar nomes. Não, não dá para continuar assim. Todos os bípedes falantes deveríamos resolver esse problema. É preciso debelar essa moléstia, que assola a humanidade desde os tempos em que descemos da árvore e emitimos os primeiros guinchos.  Relações sociais e familiares são destruídas por palavras maldosas. A futrica tem natureza de uma progressão geométrica: avança exponencialmente no grupo e seu estrago é devastador.

Tenho pensado muito nisso. Não só famílias, mas nações são irrecuperavelmente divididas, antagonizadas, devido a esse flagelo. O meu caso – o que interessa no momento – não é assim tão simples. Hoje mesmo, e estou bastante arrependido, já falei mal de alguém. Pior: falo apenas para amigos íntimos, com quem tenho cumplicidade, e essa relação de confiança turbina o efeito deletério da maledicência. E aqui toco no ponto central dessa reflexão: quem tem mais credibilidade é também mais perigoso. Um nóia pode falar o que quiser e ninguém lhe dará ouvidos. Mas alguém ‘de respeito’..., o que diz é demolidor.

Nem tudo está perdido nessa luta contra meus vícios. Aquela frase poderá ter bom uso, fazendo-se dela um epitáfio. Sofrendo uma sutil modificação, em minha lápide cunhar-se á:
“...e não serei maledicente. Agora é para sempre!”


FILIPE

sexta-feira, 29 de abril de 2016

BOM-DIA

Cumprimentar as pessoas faz parte do ofício de quem é, ao menos razoavelmente, educado. Ainda que desprovido de beleza e parco de inteligência, pode-se arrumar na vida sendo simpático, porque o sorriso é um infalível abre-portas. Talvez pelo fato de não ser belo nem inteligente, conservo esse velho costume, apesar de eu não ter me “arrumado na vida”.

Um bom dia sempre começa com um bom-dia, diz o ditado. Por isso, costumo cumprimentar as pessoas que encontro, mas nem sempre sou correspondido. Nas minhas caminhadas, que normalmente faço lendo um pedaço de jornal, fico atento a quem cruzo. Aproximando, tiro os olhos do jornal e fixo na figura. Se o fulano (ou fulana) despistar, olhando para o lado, já sei: não quer ser cumprimentado e continuo a leitura. De vez em quando, passo perto de uma senhora, que me ignora inteiro. Noutros tempos, tentei cumprimentá-la, mas ela colheu o meu bom-dia virando a cara com um resmungo, atirando ao longe a minha saudação.  Ela não quer que eu a cumprimente e eu não a cumprimento mais. Passo raspando, sinto roçar-me o sopro quente de suas narinas, mas vou reto e mudo. No entanto, já foi pior. Uma colega costumava responder: “Bom dia pra quem? Só se for pra você, porque o meu dia tá uma m...”

Deixando de lado essas torpezas, penso que deveria apenas haver ‘bom-dia’ e ‘boa-noite’. Lá no Gênesis, está: “Deus chamou à luz dia e às trevas noite”; a ‘tarde’ e a ‘manhã’ foram citadas, mas só de raspão. Já que há ‘boa-tarde’, por que não “boa-manhã”? Tem mais. No início do horário de verão, a noite começa com o astro-rei ainda a “metros” acima do horizonte e os ‘boas-noites’ já se assanham... Acho uma falta de respeito para com a majestade solar. E ainda, pelos manuais da etiqueta, após a meia-noite – duas da madrugada, por exemplo –, a saudação deve ser ‘bom-dia’.  Vê se pode, dizer bom-dia no meio da escuridão?...

Sei que é de bom-tom cumprimentar as pessoas, mas isso nem sempre é possível. Quando, numa rua deserta, vem um sujeito meio assustado, de longe já se desconfia das intenções dele. Os passos costumam ser largos e descompassados, olha para trás, para os lados e estando já à meia distância, fixa em você. Penso que atravessar a rua lhe seja mais prudente, pois a situação exige cautela. Se você lhe der bom-dia, ele retribuirá com um: “Ô moço, numprocê me cinquenta centavos? Preciso pegá o ônibus pra (...) e sem grana”. Olha que esse bom-dia já lhe custa ‘cinquenta centavos’!... Tá barato, mas pode custar caro. Tome cuidado!

Quando entro na sala de aula, a primeira coisa que digo é o tal ‘bom-dia’. Mas sempre há um engraçadinho, berrando: “Bom dia, fessô! Num dá bom-dia pra nóis não?!” E aí, para não ter que ficar explicando a esse mala, que eu cumprimentava a classe enquanto ele fuçava no celular, escrevo no canto da lousa: “Bom dia! Guarda teu celular”.

Aliás, vou confessar algo e gostaria de que ficasse somente aqui, entre nós. Quando resolvi escrever a saudação com a “regra do celular”, quis ser chique e usei o imperativo. Mas pus o verbo na terceira pessoa e o pronome na segunda, lascando um “guardem vosso ...”. Então, uma colega, muito sutilmente e com a discrição dos sábios, advertiu-me: “Não seria ‘guardai vosso’?...” “Ah, sim, tem razão!”, respondi sorrindo para disfarçar minha parvice.

Não consegui ser chique, continuo antipático, mas aprendi a usar verbo e pronome de forma correta.


FILIPE

sexta-feira, 15 de abril de 2016

ANGÚSTIA

É madrugada, interrompo a conversa com meu pai pelo ‘feice’, porque amanhã preciso cumprir a obrigação de postar algo neste blog. Tenho um texto antigo, mas não vou publicá-lo agora. Estou angustiado e aquela crônica não reflete meu estado de espírito. Os maus ventos que sopram de Brasília, ou sopram para Brasília, ou que sopram Brasília, também varrem minha inspiração. Sufocado e paralisado, perco a vontade de escrever.  

Politicamente nulo e sem filiação partidária, cumpro sem entusiasmo meu dever cívico a cada dois anos, votando. No passado, votava num candidato que foi defenestrado da política por envolvimento no mensalão. Dias desses, soube que era inocente e que fora absolvido por unanimidade no STF. Atualmente, tenho votado em candidato que faz vigorosa oposição ao governo do PT. Acredito na democracia, e democracia se faz com contrários, com barulho; o silêncio é das tiranias e dos túmulos.

A história ensina que o afunilamento ideológico desemboca em autoritarismo: de esquerda ou de direita. E o Brasil caminha para o chamado ‘pensamento único’, só que de direita.

O desembarque de políticos aliados do barquinho de Dilma é nauseante. Ratos, camundongos e ratazanas escapam tresloucadamente do naufrágio. Enquanto a tripulação se salva, nós, a “arraia-miúda”, submergimos.

Já à beira do precipício, fomos surpreendidos por forças antagônicas como a maçonaria e evangélicos, que se irmanam pelo mesmo fim: o impeachment da presidente.

Triste sina de quem nos últimos anos lutou por um Brasil mais justo e decente. Mais triste, porém, é ouvir os aplausos dos ‘pequenos burgueses” mal remunerados, mas com fumos de barão.

Domingo é o dia mais amargo para quem teme pelo futuro deste país. A Câmara, composta de muitos réus e com aprovação popular de apenas 10%, julgará em “primeira instância” a presidente, que nem sequer foi indiciada pela Justiça.

O mês de abril evoca Tiradentes, mas também seu traidor: Joaquim Silvério dos Reis. Dilma não é Tiradentes, mas tem o seu “Silvério dos Reis” na figura de um vice traíra, ávido por assumir “essa coisa toda”, prometendo um governo de “salvação nacional”. Eles se salvarão, não a nação.

Sobre o governo salvacionista de Michel Temer e Eduardo Cunha, os evangélicos e a maçonaria hão de lhe dar respaldo, porque em breve, todo o reino será deles e eles reinarão sobre todos nós.

Ah, que vontade de procurar uma “Pasargada”..., e nem precisa ser a de Manuel Bandeira. Eu me contentaria com o Uruguai, nossa antiga província. “Vou me embora para a Província Cisplatina!”, porque...

“Cada louco com sua alegria, porque somente os loucos são felizes!”


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