sexta-feira, 31 de maio de 2013

NATALINA


Como era bom conversar com a Natalina! Tinha alguma curiosidade, mas era contida nas perguntas. Gostava mesmo é de falar da vida presente pinçando algo do passado. Começava a prosa sempre da mesma forma: “Que frio, não?! Deus do céu, tá frio...”, ou: “Como tá quente, não?! , que não aguento mais esse calor...” Mas não ficava só nisso não. Falava também dos netos, do filho que morreu “de repente”; dos filhos que ficaram, mas são ausentes. “Bom mesmo era o (...). Coitado... Aquele, sim, vinha sempre me ver. Mas Deus levou”. 

Dona Natalina gostava também de falar sobre o maridão. “Esse aí?... Só eu sei. Gostava de uma pinga e de confusão. Mas como gostava de confusão, santo Deus!” Mas o maridão não a deixava falando sozinha não. Entrava na conversa com força e vontade: “Eu, eu até que bebia um pouquinho sim. Homem bebe mesmo. Pinga foi feita pra quê?... Foi feita pra homem beber. Mas não é pra encher a cara não, pois eu nunca enchi a cara com cachaça. Bebia uns goles e pronto. Hoje não bebo mais, porque tenho diabetes. Mas ela tá falando que eu gostava de confusão. Eu nunca gostei de confusão. Só nunca levei desaforo pra casa. E não ia levar mesmo. O cara vinha lá, com a cara cheia de pinga e vazia de vergonha. Vinha mexer comigo, aí eu dava troco mesmo. E naquele tempo eu tinha força, tinha destreza e pegava o bicho com firmeza. Rolava no chão com ele.”

Enquanto seu homem falava, dona Natalina olhava-o misteriosamente. Não se sabe se com admiração ou... Desprezo, não. Dona Natalina jamais desprezaria aquele homem. Mas ela enxergava nele algo que eu não conseguia ver nem decifrar. Tartamudo, ele sempre repetia involuntariamente algumas sílabas. Se fosse, mesmo que sutilmente contrariado, gaguejava ainda mais.  Mas dona Natalina não ia além da provocação inicial.

Uma vez por semana eu visitava aquele casal. Na sala, eu rememorava um passado, já meio distante, de avós que já se foram. Avós, não só os meus, mas os que se fizeram meus também. Observava, sem “botar reparo”, no velho mobiliário da casa: o sofá surrado, a porta entreaberta do quarto da sala deixando entrever-se uma cama de casal bem antiga e desgastada, com um sobreleito puído; o rotundo guarda-roupa, alto, pendido, pejado de cobertores e outros apetrechos, com uma porta sempre mal fechada; um retrato na parede bastante desbotado do casal em núpcias: ele, jovem, ereto com a mão sobre os ombros de uma esguia donzela ostentando um ramalhete, tendo aos pés um longo véu nupcial enrodilhado em semicírculo.

Tudo isso está virando passado, pois dona Natalina acaba de passar para o “lado de lá”. Ainda na semana passada tive a felicidade de conversar um bom tempo com ela. Estavam, ela e o marido, alegres e “proseiros”.  Convalescia ela de uma cirurgia nos olhos e não via a hora de poder voltar a cozinhar. Gostava de lidar com as panelas, de fazer a comidinha pro marido, de agradá-lo, mas seus olhos ainda estavam doloridos demais para lidar com o calor do fogão . Segundo ela, ele não dava sossego enquanto ela cozinhava. Com um prato sempre à mão, rodeava o fogão espreitando as panelas. “Queria comer cru, vê se pode!...”, ela dizia sem que fosse desmentida.

Foi-se Natalina. Foram oitenta e sete anos de uma vida dura, com certeza. Mas, com mais certeza ainda, uma vida feliz. Como era bom conversar com a Natalina!

FILIPE

sexta-feira, 17 de maio de 2013


ALFABETIZAÇÃO DE PROFESSORES

Desculpe-me o solitário leitor por eu fazê-lo entrar nesta pedregosa seara, que deveria ser somente minha. Não me falta assunto – neste momento é o que mais tenho -, mas somente o faço por dever de ofício. Explico:

A SEE – SP convocou grande parte dos professores para um curso, com o objetivo de humanizá-los e torná-los mais sensíveis e democráticos à nobre causa do bem ensinar; ou de alfabetizá-los mesmo. Para tanto, a escola ficara desprovida de seus mestres por alguns dias, e, “dão-lhes palestras!” Na avaliação da primeira etapa desse curso, produzi a “pérola“ que se verá logo abaixo. Um colega, talvez tocado por esses “ventos democratizantes”, decidiu ler o texto para os presentes (uns cinquenta professores naquela sala). Mas a coordenadora do curso, que até então era pura simpatia, aborreceu-se de súbito interrompendo a leitura pela metade. “Nosso tempo é curto. Pare, por favor!” – disse ela, quase às lágrimas, diante da insistência do orador em continuar, a pedido dos colegas.


PERNÓSTICOS PALESTRANTES

            O nome é pomposo: “Melhor Gestão, Melhor Ensino”. Autoridades como o secretário e até o governador compareceram ao evento que marca o início daquele que seria o grande salto na educação paulista. Mas o curso, de abertura tão solene, nem de longe toca nos problemas enfrentados pelos docentes em seu dia a dia. Palestrantes bem pagos e bem orientados se apresentam num hotel para uma sorridente plateia igualmente selecionada. Entre afagos e rapapés, esses ícones do pensamento pedagógico moderno vão desfilando suas teorias permeadas por citações de filósofos famosos. Aliás, é bom ressaltar, como esses teóricos da educação gostam de citar Paulo Freire! Uma dessas palestrantes, talvez a mais afetada da trupe, já decanta algo como “pensamento freiriano”. Chique, não?! E ainda se mete a enfiar Nietzsche e Spinoza numa salada que tem Marx, Luckesi, Velazquez, Duchamp e outros muitos. Tudo isso, mais as frases compiladas dessas e de outras celebridades. Fica uma dica a quem deseja fazer uma “boa palestra”: decore frases desses garotos, de preferência Foucalt, pois este fez a cabeça de várias gerações de “inteligentinhos”, como diria o iconoclasta do Iluminismo Luís Felipe Pondé. Irreverente e competente, Pondé deveria ter sido convidado para um debate com os tais gênios da educação. Se não quisessem Pondé, que ao menos se prontificassem a debater com os professores. Mas nada de palestrinhas prontas e embaladas em modelo tipo “exportação” como sói acontecer, pois o público-alvo nada pode fazer, a não ser assistir passivamente - entre resmungos, bocejos e cochilos - à empáfia dessas sumidades que ora se apresentam como os redentores do pensamento contemporâneo. Que tédio!

            Caso esse governo, ou qualquer outro que o venha suceder, quisesse resolver o problema da educação, teria que se inspirar nos melhores colégios públicos ou privados. Ver-se-ia que, naquelas instituições, o ensino é levado a sério por todos os atores educacionais. Lá, jamais a escola ficaria desprovida de seus coordenadores, diretores ou professores para participar de palestras, reuniões ou qualquer atividade afim. Nessas instituições, o trabalho docente é sobremaneira valorizado, a remuneração é decente e a cobrança por resultados é regra para todos: gestores, docentes e discentes.

            Supõe-se que intelectuais de universidades devam ter o que fazer em suas instituições, e o governo nos faria enorme bem poupando-nos de seus pitacos. Além disso, recursos destinados a esses senhores seriam economizados e realocados para a sala de aula, a fim de remunerar melhor os profissionais que estão na lida com os problemas, tentando resolvê-los.


FILIPE       
ps.: disponível também em "blogdofilipemoura.com"                                                                      

sexta-feira, 3 de maio de 2013

O ADEUS DE NEGUINHA

Sua presença silenciosa e felpuda terminou. A cadelinha serelepe, que há um mês ciceroneava os enlutados visitantes pelas ruelas do cemitério, não mais existe. Foi lá que a encontrei por ocasião do sepultamento do pai de uma amiga. Durante aquele fúnebre cortejo, parecia ser ela a única “pessoa” a estar alegre. Enquanto todos caminhavam pensativos - talvez meditando sobre a particular tragédia que é o fim de cada um -, a cadelinha passeava por entre os passantes num corre-corre sem parar. Talvez nem estivesse assim tão feliz, visto que fora recentemente abandonada e, por certo, estando à procura de seu dono.

“O que não tem remédio, remediado está”, afirma um ditado meio besta. Mas o remédio para aquela cadelinha foi a adoção. Aproximei-me dela fazendo algum gesto de bom amigo e ela deixou-se cativar por mim. Embalei-a nos braços e a conduzi ao novo lar.

Por alguns dias ela me pareceu saudável e feliz. Interagia com sua nova companheira, Pituka, como se fossem velhas conhecidas. Mas as coisas não estavam muito bem com ela. Com o organismo debilitado por uma súbita enfermidade, ela se achegava a mim sempre que eu estava neste rancho a dedilhar no computador. O olhar baço, já sem curiosidade, parecia pedir ajuda como convém a todos os animaizinhos diante do perigo. Assim, aquela criaturinha se aninhava sobre meus pés, ainda quente, mas morrente.

 Por que a vida se sucumbe, às vezes tão rápida e dorida?  Por que não ser diferente como sempre queremos, principalmente para com as inocentes criaturas? Essa brevidade que assusta e apavora não nos faz melhores, mas talvez mais amargos.

Então, a cadelinha que estava bastante moribunda – uso o “bastante” como se “moribunda” já não significasse abundância de sofrimento - chorava. Neguinha chorava um choro incomum a adultos, pois os anos lhes ensinam a inutilidade da reclamação. Por isso, muitas vezes, os mais velhos padecem silentes e conformados. Somente os jovens recorrem a esse mecanismo banal e infrutífero.

Morreu Neguinha. Morrera poucos minutos antes de eu chegar. E sozinha. Sem que eu pudesse ouvi-la, assisti-la em seus estertores. Os cães nos veem como deuses. Eles nos creditam o poder sobre o vento, o sol, a chuva, a vida..., sobre tudo. E Neguinha pôde presenciar o fracasso da divindade a que recorreu.

                Na manhã seguinte, bem cedo, cavei-lhe cova rasa e nela depositei seu corpinho esquálido e gélido, na companhia de sua amiguinha Pituka. Esta, que à noite visitara-a quando finava, fez honras ao seu cadáver não arredando pé durante o sepultamento. Observava cada movimento da enxada, cada punhado de terra que descia sobre a companheira. E assim, sob uma roseira, está para sempre aquela “menininha” que fora alegre e faceira; que por instantes distraiu pessoas, arrebatando-as de suas funéreas preocupações quando a sepultar o ente querido. 

                Ainda na tarde daquele dia, chega Tokinho, um jovem “rapazinho” com cara de velho, barrigudo, ferido, faminto etc., confirmando a misteriosa transmutação da morte em vida, proporcionada pela mãe Natureza.
FILIPE