Como era bom
conversar com a Natalina! Tinha alguma curiosidade, mas era contida nas
perguntas. Gostava mesmo é de falar da vida presente pinçando algo do passado.
Começava a prosa sempre da mesma forma: “Que frio, não?! Deus do céu, tá
frio...”, ou: “Como tá quente, não?! Tô,
que não aguento mais esse calor...” Mas não ficava só nisso não. Falava também
dos netos, do filho que morreu “de repente”; dos filhos que ficaram, mas são
ausentes. “Bom mesmo era o (...). Coitado... Aquele, sim, vinha sempre me ver.
Mas Deus levou”.
Dona Natalina
gostava também de falar sobre o maridão. “Esse aí?... Só eu sei. Gostava de uma
pinga e de confusão. Mas como gostava de confusão, santo Deus!” Mas o maridão
não a deixava falando sozinha não. Entrava na conversa com força e vontade:
“Eu, eu até que bebia um pouquinho sim. Homem bebe mesmo. Pinga foi feita pra
quê?... Foi feita pra homem beber. Mas não é pra encher a cara não, pois eu
nunca enchi a cara com cachaça. Bebia uns goles e pronto. Hoje não bebo mais,
porque tenho diabetes. Mas ela tá falando que eu gostava de confusão. Eu nunca
gostei de confusão. Só nunca levei desaforo pra casa. E não ia levar mesmo. O
cara vinha lá, com a cara cheia de pinga e vazia de vergonha. Vinha mexer
comigo, aí eu dava troco mesmo. E naquele tempo eu tinha força, tinha destreza
e pegava o bicho com firmeza. Rolava no chão com ele.”
Enquanto seu
homem falava, dona Natalina olhava-o misteriosamente. Não se sabe se com
admiração ou... Desprezo, não. Dona Natalina jamais desprezaria aquele homem.
Mas ela enxergava nele algo que eu não conseguia ver nem decifrar. Tartamudo,
ele sempre repetia involuntariamente algumas sílabas. Se fosse, mesmo que
sutilmente contrariado, gaguejava ainda mais.
Mas dona Natalina não ia além da provocação inicial.
Uma vez por
semana eu visitava aquele casal. Na sala, eu rememorava um passado, já meio
distante, de avós que já se foram. Avós, não só os meus, mas os que se fizeram
meus também. Observava, sem “botar reparo”, no velho mobiliário da casa: o sofá
surrado, a porta entreaberta do quarto da sala deixando entrever-se uma cama de
casal bem antiga e desgastada, com um sobreleito puído; o rotundo guarda-roupa,
alto, pendido, pejado de cobertores e outros apetrechos, com uma porta sempre
mal fechada; um retrato na parede bastante desbotado do casal em núpcias: ele,
jovem, ereto com a mão sobre os ombros de uma esguia donzela ostentando um
ramalhete, tendo aos pés um longo véu nupcial enrodilhado em semicírculo.
Tudo isso está
virando passado, pois dona Natalina acaba de passar para o “lado de lá”. Ainda
na semana passada tive a felicidade de conversar um bom tempo com ela. Estavam,
ela e o marido, alegres e “proseiros”.
Convalescia ela de uma cirurgia nos olhos e não via a hora de poder
voltar a cozinhar. Gostava de lidar com as panelas, de fazer a comidinha pro
marido, de agradá-lo, mas seus olhos ainda estavam doloridos demais para lidar
com o calor do fogão . Segundo ela, ele não dava sossego enquanto ela
cozinhava. Com um prato sempre à mão, rodeava o fogão espreitando as panelas.
“Queria comer cru, vê se pode!...”, ela dizia sem que fosse desmentida.
Foi-se
Natalina. Foram oitenta e sete anos de uma vida dura, com certeza. Mas, com
mais certeza ainda, uma vida feliz. Como era bom conversar com a Natalina!
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