sexta-feira, 29 de março de 2019

EU, EMPREENDEDOR


A aula fluía suavemente. O conteúdo: juros simples e compostos – assunto que desperta a curiosidade até de quem não gosta de estudar e que costuma lascar a fatídica pergunta: “Onde vou usar isso?” –  que respondo de bate-pronto: “Em lugar nenhum. Onde você usaria a rica Literatura Brasileira, os conhecimentos de Geografia, os tópicos de História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea?...” Mas não. Um aluno, dos melhores que tenho, perguntou: “Professor, você aplica no Mercado Financeiro, no Tesouro Direto?” “Não, não aplico e nem tenho grana para isso.” “Mas não precisa muito... E quem sabe matemática pode ganhar muito dinheiro em aplicações!” “É, mas já digo por que não mexo com isso.” [Deixo para o último parágrafo a explicação dada ao aluno]

Desde minha infância, tive alguma preocupação em ganhar dinheiro, em ser independente. Aos dez anos, fiz uma parceria com uma vizinha, a dona Angelina Tibúrcio. Eu colhia mamona e ela fazia azeite, que vendíamos e dividíamos o dinheiro. Deu certo enquanto havia mamoneiras. Tempos depois, quando eu já tinha uns doze anos, colhi sementes de capim-jaraguá e de capim-gordura. Cortava os cachos, amontoava-os para que as sementes se desprendessem. Depois ensacava e vendia tudo para uma fazendeira da cidade. Lembro que levei uma charrete lotada com sacos de semente. Mas quando atravessei o rio e a sacaria entrou em contato com a água, pensei: a semente molhou, aumentou o peso e não me parece justo vender assim. Chegando à fazenda, a dona veio até o alpendre e me pediu para seguir para seu depósito, onde a semente seria pesada. Eu falei que passei no rio e a semente molhou. Ela disse não se importar com isso, porque a diferença seria pequena. Entreguei a mercadoria e recebi, feliz, meus suadíssimos caraminguás.

Mas meu “empreendedorismo” não ficou apenas em sementes e azeites. Frustradas ou bem-sucedidas, tive outras experiências que ainda devo registrar neste espaço. Mas uma das minhas mais desastradas empreitadas foi quando me meti a comerciar ovos, que comprava de alguns tios e vizinhos, especialmente da dona Caetana. Esta bondosa senhora tinha dezenas de galinhas e me reservava toda a sua produção. Em determinado dia da semana, antes de sair para o ginásio, eu passava na casa dela, enchia um cesto e levava para a venda do Sr. Antônio Moreira, em Guiricema. Ele contava os ovos, examinando um a um, vendo se não estava com a casca ‘trincada’ etc. Não passava uma vez sem que ao menos um ovo fosse descartado. E meu lucro, que era muito pequeno, ia para o ralo.

Um dia, porém, desisti do comércio de ovos. Isto se deu quando ia levando meu cesto cheio, pesado, e duas moças, que também estudavam no ginásio, me ofereceram carona. Aceitei. Segurando com muito cuidado o cesto, subi na charrete e me ajeitei ao lado delas. O cavalinho disparou naquela estrada cheia de buracos. Nem o cavalo nem as moças sabiam da minha aflição. Foram tantos solavancos... O cesto ia, voltava e quase escapava de minhas mãos. Enfim, chegamos à cidade. Agradeci, desci da charrete e caminhei mais um pedaço até a venda do seu Antônio. Pus o cesto no balcão e não havia surpresa: vários ovos quebrados empapando os que se salvaram. O prejuízo foi enorme. Quebraram-se os ovos e quebrei eu. Falido, nunca mais comprei nem vendi ovos.

Ah, sobre o aluno lá em cima, eu disse a ele que apenas algumas “raposas” conseguem se dar bem no Mercado Financeiro. São pessoas que têm informações privilegiadas do Governo. Não à toa, certos políticos enriquecem sem que possam ser presos como ladrões – que de fato são.

FILIPE

sexta-feira, 15 de março de 2019

CHOVE LÁ FORA




Chove lá fora e eu aqui tentando escrever um texto, que pretensamente chamo de crônica.

A três metros de mim, uma samambaia abriga uma família de pombinhos silvestres. Esta é a segunda vez que eles ocupam o espaço. Na primeira vez, como registrado aqui, ajudei o casal a fazer o ninho, que aceitou sem, contudo, me agradecer. Também desta vez eu tentei, mas a minha ajuda foi recusada pelos ‘mal-agradecidos’ columbinos. As folhas, que ajeitei meticulosamente no pratinho de plástico, foram solenemente rejeitadas, sendo descartadas uma a uma.

No ninho, os dois filhotinhos já emplumes têm o sono velado pela mãe, que, feito um anjo da guarda, fica a postos na “cabeceira”. Tenho vontade de fotografá-los, mas o flash vai assustá-los. E eu não quero e nem posso perturbar o sono desses meus dóceis ‘inquilinos’.

Um carrilhão anuncia ‘vinte horas’. Estou apenas no começo deste texto, mas vou dar uma enrolada e verei se dá para publicar algo.

No jardim, há capim-santo, manjericão, gengibre, açafrão, um pequeno cipó de maracujá e... acho que é só. Ah, tem uns dois pés de couve, que não colho há tempos. Lagartas e lesmas resolveram cuidar dessa minúscula horta e eu não tenho pato que lhes dê cabo. Havia um sapo morando escondido ali, mas há muito tempo que não me manda notícias. Tá tudo meio bagunçado, mas meu jardim é como minha gaveta, minhas coisas e minha cabeça: uma barafunda.

Muita gente vê e elogia o jardim, mas fico meio desconfiado. Depois que observei os elogios falsos que se veem aos monturos no ‘feice’, fiquei cabreiro e passei a não dar muita bola, nem para críticas e muito menos para essas mesuras.

Mas o meu jardim é encantatório. Há nele um arbusto que não se encontra em outro jardim: uma mamoneira que floriu abundantemente. Certa vez, peguei semente dessa espécie no Taquaraçu, um bairro de minha cidade natal, que é conhecido como “Tacuruçu”, e que nos meus tempos de criança era tido por má fama. A “má fama” não vinha de seus habitantes, que sempre foram boníssimos, mas de sua pobreza. A pobreza sempre foi causa de preconceito da grã-finagem. Cresci ouvindo isto: “pobre é preguiçoso e rico é trabalhador”. Naquele tempo, o ‘Tacuruçu’ era o bairro dos pobres, e seria para Guiricema o que a “Rocinha” é para a Cidade Maravilhosa.

O carrilhão dá ‘nove badaladas’ e volto os olhos para o jardim. Daqui, donde estou, vejo as folhas molhadas da mamoneira brilhando à luz da rua. Mas, na penumbra, não vejo seus cachos cor de fogo nem suas flores: brancas, belas e efêmeras. Mas já não chove lá fora. Porque a chuva, como as flores de meu jardim, é bela e efêmera.

FILIPE

sexta-feira, 1 de março de 2019

VIOLÊNCIA JUVENIL


Hora do recreio. Entro na fila da merenda na escola em que trabalho. Nas mãos, tenho um jornal com artigo de Suzana Herculano-Houzel, uma renomada neurocientista que deixou as universidades brasileiras para se radicar nos EUA, onde desenvolve pesquisas em sua área. Seu último texto versa sobre algo que domina como poucos: isquemia cerebral. Tiro os olhos do jornal e tento enxergar o balcão de serviço da cozinha, que continua longe de mim. De uns tempos para cá, tenho observado um fenômeno que talvez desperte algumas mentes mais argutas, como às de sociólogos: enquanto a fila da cantina da escola encolhe cada vez mais, a da merenda espicha consideravelmente. Parece que a grana da moçada está miúda ultimamente. Volto à leitura.

De súbito, algo faz meus olhos se deslocarem do jornal para a “zona de dispersão”, onde pratos cheios de macarrão com molho e frango desfiado tomam rumos diversos. Uma professora esbraveja com alguém que eu não conheço, e que parece não ouvir ou não querer escutar a reprimenda. Em pouco tempo eu soube do que se tratava. Um rapaz, de quase dois metros, espancava um garoto com dois terços de seu tamanho. Em vão foram os apelos para que ele deixasse o moleque, que, estirado no chão, era socado com volúpia diabólica. A custo, o algoz, um tipo ‘mano‘ enfiado num moletom com capuz, foi retirado pela professora e conduzido à direção. A vítima, que nem pôde merendar, foi para uma sala onde permaneceu à espera dos pais, que logo chegaram para tomar as urgentes e necessárias providências contra o agressor.

Outro caso, infelizmente ainda mais grave do que aquele, aconteceu noutra escola do interior paulista. Um professor com mais de sessenta anos foi covardemente agredido por um adolescente. A imagem que vi na tela de um celular era a de um homem simples, como um lavrador, mostrando a face lacerada e a camisa ensanguentada. Provavelmente aquele homem terá entrado tardiamente no magistério, tentando melhorar de vida ou realizando um sonho antigo. Seus olhos aflitos expressavam algo bem mais do que tristeza. Havia neles indignação, impotência, frustração.

Ontem, voltando do serviço e descendo por uma rua, próximo a um cruzamento, uma bicicleta passou rasante e velozmente por mim na minha calçada. Não mais do que um segundo foi o tempo que me livrou de um atropelamento com possíveis fraturas. Olhei para o ciclista, que já ia distante, e vi um moletom cobrindo um corpo comprido com uma cabeça também encapuzada – como o agressor do pátio da escola.

Enquanto a violência grassa forte nos pátios, corredores e salas de aulas, o atarantado ministro colombiano está preocupado com ‘hino nacional’ e demais símbolos pátrios, que nem ele sabe para que servem.

FILIPE