“Maria, Maria... Vem cá!”
Enquanto eu preparava o chimarrão e pensava em como começar este
texto, mamãe me interrompeu. Cedo ainda, quatro e meia da manhã, voltei ao
quarto. Ela insistiu: “Maria... Cadê?...” Eu disse que a Maria vinha mais tarde
e que só eu estava ali. Então ela pediu ‘água e comprimido’. “Dois
comprimidos!”, ordenou.
Ontem à noitinha passei um bom tempo ao lado dela, ouvindo suas
histórias. Poucos de seus filhos conseguem decifrar aquelas frases. Eu tenho me
esforçado bastante e acho que quase consigo. Naquele bate-papo, mamãe me falava
“dele”. Dizia que ele estava sumido. Que “agorinha mesmo estava aqui, mas saiu
e não sei pra onde foi”. Perguntei quem é. “Marido!”, respondeu de imediato. Eu
completei, dizendo que ele deve ter ido a Corgo Preto, porque tem muito serviço
pra fazer lá. Ela assentiu desconfiada.
Desde que papai partiu, mamãe veio para o centro do “palco”. Até
parece ter sido essa a intenção dele. Aqui, na nossa família, penso que as
atenções se voltavam mais para o pai do que para a mãe – pelo menos de minha
parte foi assim e preciso me redimir desse “pecado”. Porém, saindo de cena o
Velho, mamãe ganhou um protagonismo que nunca tivera. Digo isso porque, em
todas as rodas de conversa, mamãe estava sempre um pouco ao lado. Eu até
consigo revê-la, apoiada no batente da porta, tentando participar da prosa até
que, um tempo depois e bastante desanimada, recolhia-se ao seu quarto para
retomar as intermináveis ‘costuras de mão’. No entanto, muitas vezes, eu me
lembro disso também, meu pai, percebendo a situação, dava um salto do sofá onde
estava recostado e corria para o quarto a fim de fazer companhia à sua
‘Neguinha’.
Ninguém mais do que o papai compreendia o universo da mamãe. E por
ser tão zeloso de sua Velhinha, seus últimos tempos ao lado dela foram bastante
aflitivos. Mamãe estava cada vez mais debilitada e papai tinha pouca esperança
da recuperação dela. Foi minha mãe baixar hospital que meu pai quedou-se
também, e daquela vez foi tudo de imensa gravidade. Eu, estando aqui para uma
visita de rotina, assinei a ficha de internamento dos dois. A impressão era de
que papai ficasse poucos dias internado, mas a mamãe não voltaria pra casa. No
entanto, mamãe voltou e papai “decidiu ficar”.
Numa conversa com irmãos, concluímos que talvez papai tivesse esperado
um pouco mais para fazer a ‘passagem’ caso alcançasse o estágio de plena
lucidez de que mamãe desfruta neste momento. Ela está interagindo conosco como
outrora, em seus melhores dias.
Na longa conversa de ontem, mamãe falava do seu “Cabeça Branca”,
que hoje faria aniversário. Ah, era assim que ela se referia a ele em momentos
de descontração num passado já meio distante. Essa forma, um pouco jocosa e
muito carinhosa, era motivo de riso na família e costumava arrancar algumas
gargalhadas do Velho.
Nosso Velhinho não era festeiro, mas com a melhora das finanças,
as tardes de seu aniversário passaram a ser festivas. Ele sempre oferecia bolo
de abacaxi e refrigerante para quem aparecesse.
Desta vez, decidi passar o ‘vinte de novembro’ na casa do papai,
ao lado da mamãe. Se na tarde de hoje não vai ter bolo nem refrigerante, também
não haverá tristeza, porque o aniversariante não permitiria.
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