O celular me acordaria às 4h45min, mas bem antes já estou desperto e desarmo aquela “granada” cujos estilhaços despertariam minha companheira.
Levanto-me. A fria madrugada vai
se despedindo e esquecendo para trás uns restos de escuridão. Gela lá fora, então
eu me aqueço com um pouco de chimarrão antes de ir para o trabalho.
Saio exatamente às 6h15min,
caminho durante oito minutos e às 6h30min chega meu ônibus. Entro nele e dou uma
cédula de cinco reais ao motorista, que me dá sessenta centavos de troco em
duas moedas. Passo pela roleta enquanto o ônibus ronca e se arranca e quase me
derruba. Cambaleio até um banco e sento nele, mas uma das moedas me escapa e, disfarçadamente,
me ponho a procurá-la, em vão. Mesmo enxergando mal com os óculos embaciados
devido à máscara, vejo com alívio que perdi a moeda miudinha; a mais gordinha está
a salvo.
Ajeito-me no banco e tento pensar
noutras coisas para esquecer a moeda. Como não tenho conseguido ler, aproveito
para divagar, meditar ou refletir nesses dez minutos de viagem. Em geral há
silêncio, o que muito me apraz porque detesto ouvir falatório logo cedo.
Mas dessa vez não há silêncio. No
banco de trás um casal deita falação sobre política, e fala alto, tonitruante. Um
diz algo e outro concorda, de forma que vou reproduzir trechos daquela fala sem
destacar os personagens, e farei daquilo uma gororoba. Ao serviço.
“Ficam falando mal de nosso
presidente, mas ele não tem culpa de nada, meu Deus.” “Isso mesmo. Os chineses
criaram o vírus e depois a vacina. Vê se pode?...” “Aí, nós pegamos o vírus e pagamos
pela vacina...” “Nosso presidente é muito bom. Eu gosto muito dele e, se dependesse
de mim, ele nunca sairia de lá.” “É, mas
vai ter eleição e não sei se vai dar pra ele ganhar, não.” “O Lula tá na frente,
mas não vai ganhar.” “Sei não... O povo é burro, não lê nada!” “Ah, mas se o
Lula ganhar ele não vai levar, e sabe por quê?” “Por quê?...” “Porque o
Boçonaro tem uma ‘peque’. Sabe o que é ‘peque’?” “Não...” “Então... ele tem
essa ’peque’ e com ela, ele vai convocar o Exército pra tomar conta do Brasil!”
“Ah, que bom. Com o Exército, não tem pra ninguém. Os soldados vão tomar conta
da rua e vão acabar com a bandidagem toda.” “Vai mesmo, porque a polícia...
coitada da polícia, não consegue fazer nada! Um policial ganha muito pouco e
não vai se arriscar pra pegar bandido. Mas o exército, sim, vai pôr tudo no lugar
certo. Ah, se vai...” “E o Supremo, será que vai deixar nosso presidente agir?”
“Ah, o Supremo é petista, mas o Boçonaro vai dar um jeito naqueles comunistas
também. Minha fia, com o Exército não tem pra ninguém! E tem a Marinha também e
a outra lá, aquela que tem avião.” “Ah, sei, a Aeronáutica. Ela pode jogar umas
bombas nessa gente besta que quiser reagir, né mesmo?...” “É, mas é perigoso
eles acertarem a gente aqui, que não tem nada com isso.”
Enfim, minha viagem chega ao fim.
Não a deles, que continuam animados com suas lucubrações.
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