terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

HISTÓRIAS COM O FREIZINHO



Hoje o Frei Gabriel está completando ‘cinquenta e um anos’. Há pouco tempo, por ocasião de um retiro do qual ele participava, familiares e amigos fomos convidados a escrever um pequeno depoimento sobre a vida desse amado frade. Não de forma explicitamente autorizada, mas consentida pelo Freizinho, aqui deixo registrado o meu modesto texto.

 

São muitas as histórias que poderiam ser contadas sobre o Frei Gabriel, algumas bastante pitorescas, mas farei apenas um breve relato de algo que me parece suficiente para descrevê-lo.

Certa vez o Frei passou uns dias de férias comigo, quando eu morava num pequeno cômodo nos fundos da casa de um tio, em Mauá.  Jovenzinho ainda, pouco mais do que um menino, o freizinho parecia homem-feito dentro daquela “batina”. Conversa vai, conversa vem, resolvemos dar uma volta na cidade e depois pegamos um trem com destino a São Paulo quando ele me disse: “Eu gosto de andar com você porque eu fico mais à vontade para usar este meu hábito. Não é sempre assim, sabia?... Há quem se incomode com isso!” Fiquei lisonjeado, surpreso até, porque eu não sou o mais simpático dos ‘Moura Lima’ – pelo menos é o que dizem.

Naquele trem, o Frei me deu uma aula sobre o Oriente Médio. Na verdade, eu só queria saber por que diabos palestinos cismavam de jogar pedras em soldados israelenses. Mas ele resolveu fazer uma panorâmica e começou contando a história do povo hebreu desde seus primórdios. Ousei interromper, pedindo que ele apenas respondesse à minha pergunta. Mas pra quê... O homem ficou nervoso e me deu uma enquadrada: “Bom, se você quer saber o porquê dessa briga, então tenha calma, porque esta é a minha maneira de explicar. Preciso partir do começo pra chegar ao final”.

E foi exatamente ali, naquele trem de passageiros entre Mauá e Santo André, que me dei conta de que o nosso Biezim havia ‘crescido em estatura e sabedoria’— e brabeza!.

Na verdade, daquele hábito, que é uma espécie de ‘batina franciscana’ usada pelos religiosos, sempre gostei. Tanto é que, certa feita, estando muitos de nós de férias na casa dos pais, aprontei uma traquinagem. De manhã, enquanto o Frei dormia, catei o seu hábito, que estava pendurado na porta do quarto, vesti e saí desfilando pela casa. Todos me sorriam. Uma irmã, pensando que eu fosse o religioso, me abraçou e foi logo me oferecendo café. Até mamãe se alegrou comigo e me lascou um beijo na cacunda. Nisso, eu comecei a rir e a farsa logo se desfez, deixando a irmã tão desapontada, que ela talvez quisesse me “desabraçar”; e a mamãe também parecia querer me “desbeijar”.

E foi assim que eu pude experimentar a singular alegria de “ser o Frei Gabriel”, ainda que por apenas uns poucos minutos, mas tempo suficiente pra saber que a vida dele, embora sacrificada, é bastante recompensada por afagos, e uma delícia de ser vivida!

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sábado, 17 de fevereiro de 2024

CIDO

 


Eu precisava falar desse senhor aí da foto, porque ele é uma pessoa muito especial.

Estava eu com meus cães fazendo a caminhada de rotina quando vi uma movimentação numa rua acima da minha casa. Havia na calçada uma caçamba cheia de entulhos e, curioso, estiquei os olhos para dentro da garagem quando vi o Cido, que enchia latas de concreto enquanto seu filho manobrava a betoneira.

Ele não sabe que foi fotografado por mim; se soubesse, com certeza não iria gostar.  E, claro que ele também não sabe que estou escrevendo isto aqui. Se souber, talvez fique bravo, e o melhor mesmo é guardar segredo.

Trabalhei com o Cido por uns três anos. Foi ele quem fez a casa onde moro e fez também outra casa cuja construção acompanhei da fundação ao acabamento. Nesses anos de convivência quase diária, de planejamento e ajustes, nunca tive qualquer aborrecimento com o Cido. Claro que isso não diz muita coisa, porque eu posso tê-lo aborrecido. Vai saber...


Durante meses, anos até, eu temia começar a obra que seria esta casa onde moro. Tenho boas razões para isso e há quem concorde comigo. Há muitos pedreiros bons, honestos e responsáveis. Contudo, muitas são as histórias envolvendo obras inacabadas devido a desacertos. Felizmente encontrei o Cido, e com ele as coisas fluíram. Você, raro leitor, se é que o tenho por aqui, vai me entender.

Sabe aquele pedreiro que não pede dinheiro adiantado e só aceita pagamento de acordo com a evolução da obra? Pois esse é o Cido. Sabe aquele pedreiro que comparece ao serviço todos os dias, de segunda a sexta, entrando britanicamente às sete da manhã e saindo às quatro da tarde? Esse também é o Cido. E aquele pedreiro que está sempre bem-humorado, que não é falastrão nem gabola e não explora quem o contrata? Então, esse ainda é o Cido!

Tem mais. O Cido pega um serviço por completo, mas ele sempre abre a possibilidade de que outros “com mais prática”, segundo ele, possa fazer a parte de eletricidade, hidráulica, carpintaria etc. “Eu faço, mas se quiser chamar outro...”, assim ele diz e ainda indica o profissional. Gente, isso é raro! Estou velho, já trabalhei em construção civil e lidei com uma gama desses profissionais, mas o Cido é realmente diferenciado.

Outra particularidade do Cido: ele só trabalha de chinelos. Nunca se viu o Cido calçado de botinas, tênis ou botas durante seu labor. Ele prefere chinelas havaianas, porque “deixa os pés mais leves e livres”. Com elas ele sobe em andaimes, pisa no barro e nos entulhos, desvia de pregos, tropeça... Mas não se machuca! Só Deus mesmo pra proteger o Cido!!

Ah, tem uma história que o Cido me contou e acho que vale a pena registrar. Certa vez, ele estava num andaime, daqueles feitos com eucaliptos, em que se usa uma escada para subir ou descer. De repente, estando Cido lá em cima rebocando a parede, veio uma ventania danada. O andaime vergava e o Cido se segurava como podia. Nisto, a escada, que não estava amarrada, deslizou e caiu, deixando o Cido preso lá nas alturas. A rua era deserta, quase ninguém passava por lá, e a noite vinha.  Por sorte, depois de uns gritos, alguém veio socorrê-lo.

Bom, esse caboclo aí, trabalhador, com jeitão amineirado e meio cismado, é o Cido. O Cido é o cara!!!

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sábado, 3 de fevereiro de 2024

O MISTERIOSO VISITANTE NOTURNO

 


Em todas as manhãs eu encontrava algum vestígio da sua visita. Ora havia manga mordida e abandonada, ora era a semente de uma manga agora inteiramente devorada. Dia sim outro também, estava embaixo da mesa os sobejos do ‘visitante noturno’, que eu nunca soube quem era. Como a refeição desse ‘carinha’ era sempre ali, decidi facilitar-lhe a vida e passei a escolher as melhores frutas e deixá-las numa bandeja de isopor para seu conforto. E assim ele ficou satisfeito e eu também. Então, todas as tardes eu reabastecia o pratinho e mais à noite ele vinha para a ceia.

 

Como a safra da manga estava no fim e pouquíssimas frutas poderiam ainda ser apanhadas, eu já me preocupava com a ‘segurança alimentar’ daquela criatura. Então, decidi variar um pouco, pondo uma goiaba e uma manga. Mas, no dia seguinte, a manga havia sumido enquanto a goiaba permanecera intocada. A exigência desse meu ‘cliente’ fez aumentar a minha preocupação. Embora eu tivesse muitas mangas na geladeira, elas seriam insuficientes para atravessar a entressafra, que se estende por muitos meses.

 

A minha “patroa”, sabendo desse caso, desconfiou de ratos – eu pensava em gambás. Eu nunca soube que ratos pudessem se alimentar de mangas ou de outra fruta, mas sei que a preferência desses roedores é pelos cereais. Gambás, sim, estes, além de carnívoros, são frugívoros vorazes. “Não, não pode ser rato. É gambá ou ouriço”, intuí. 

 

Para melhor elucidação, resolvi armar uma arapuca, utilizando uma bacia, conforme se vê na foto lá em cima. Peguei duas mangas e as trespassei por um arame. Depois, com um pauzinho, sustentei a bacia e amarrei nesse suporte um barbante, ligando-o ao arame. Pensei: assim que o danadinho pegar uma das mangas, o arame vai puxar o barbante, que vai arrastar o pauzinho, e a bacia prenderá o serzinho misterioso. No dia seguinte, cheguei curioso pra ver a surpresa, mas que nada! A bacia continuava armada e as frutas incólumes.

 

Não, não terá sido gambá o visitante noturno, porque gambás são confiados demais para perceber que uma armadilha poderia surpreendê-los. Que bicho poderia ser? Claro que um rato! Ratos são espertos, muito espertos. Não à toa que, na tarde anterior a esse experimento, enquanto eu fazia “uns trem” na minha ‘oficina de carapina’, apareceram-me dois olhos assustados que, mal me avistaram, recuaram apressados e subiram velozmente o muro, desaparecendo num átimo.

 

Eu jamais mataria aquela ratazana.  Assim como não (nunca mais!) matarei cobras nem animal algum, exceto pernilongos e escorpiões com os quais não há convivência possível. Contudo, não estou disposto a alimentar ratos e nem os quero por perto. Por isso, a partir de então, nada de bandeja com frutinhas para a ceia de quem quer que seja o ‘ilustre visitante noturno’, e muito menos para esses “dentucinhos”. Daqui pra frente, a regra é: ‘mais racionalidade e menos romantismo’.

 

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