sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

ILHÉUS, CORAGEM!

Numa ilha inóspita, a muitas milhas da civilização, há uma escola em que...

Teve aluna mandando o professor tnc; mas teve professor que não foi tnc, e fez queixa policial da aluna que o mandou tnc.

Teve professor vociferando e apontando covardemente o dedo para uma colega; e teve professor devidamente enquadrado por ‘grunhir’ covarde e ferozmente com a colega.

Teve professor exigindo decência de quem lhe apontaria o dedo; e teve professor comportando-se “civilizadamente” após reprimenda de quem não aceitou o ‘dedo apontado’.

Teve aluno agredindo verbal e fisicamente o colega de classe; e teve aluno agredindo física e verbalmente uma funcionária da escola.

Teve pai de aluno ameaçando veladamente um professor durante reunião; mas teve alguém pedindo explicação ao homem que ameaçava veladamente o professor.

Teve pai de aluno ameaçando agredir professor com barra de ferro; e teve pai dizendo não se tratar de ameaça, mas de conversa “amistosa”.

Teve professor sugerindo em redes sociais malversação de dinheiro público por colegas; e teve professor exigindo a explicitação da acusação de desvio de verbas.

Teve professor apagando das redes sociais calúnia contra colegas; mas teve professor bloqueado em rede social por confrontar colega caluniador.

Teve professor que não deu aulas; teve professor que fingiu dar aulas; mas teve professores que deram aulas; e teve promoção de quem que não “professou” a profissão de professor.

Teve aluno que fingiu participar das aulas e foi aprovado; teve aluno que não assistiu às aulas, não fez provas e não foi reprovado; mas teve alunos que foram merecidamente aprovados.

Noutra ilha ainda mais distante da civilização...

Teve diretora trancafiando alunos e professores com cadeado; teve aluna grávida, passando mal por não ter acesso ao banheiro; e não teve ninguém capaz de derrubar a infame ‘tirana’ e sua “bastilha”.

Nessas duas “ilhas” teve de tudo neste ano: teve traições aos borbotões; também teve lealdade em pequenas proporções.

Teve pequenas alegrias em diminutas gotas; e teve uma torrente cristalina de felicidade formada pelas gotículas de alegria.

Para o ano que se avizinha...

Há um imenso deserto a ser atravessado; há incontáveis batalhas a serem travadas; e há de haver sucessos, ainda que intercalados de fracassos.

Com destemor e sem rancor – a passos firmes e decididos, sem que a vida “murche’ – os ilhéus vamos marchando. Pois disse Guimarães Rosa, o poeta das ‘sertanejas veredas’, que “a vida quer é coragem”!

FILIPE

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

O ESTADO LAICO

Publicado na "Tribuna de Amparo" - edição de hoje.


O Brasil está em chamas. As “temerárias” labaredas já queimam direitos sociais e chamuscam liberdades individuais, delineando um horizonte tenebroso via reformas. O primeiro desses remendos fez ressurgir, com ares de modernidade, a infame escravidão, que a Justiça tem combatido em seus primeiros movimentos. E querem votar, ainda neste ano, a reforma da Previdência!... Por que não estabelecem o teto do INSS a todos os viventes aposentados deste pais? Seria tão simples e quem quisesse mais, que contribuísse por fora.  Dessa forma, sobraria dinheiro até para o salário mínimo dos trabalhadores rurais aposentados. Os lavradores – na opinião dos “barnabés engravatados”, acredite – são os maiores responsáveis pelo rombo no “casco previdenciário”.

Não se sabe por quê, mas enquanto o incêndio avança, as panelas, que tanto estardalhaço fizeram tempos atrás, estão mudas. Não se ouve sequer um rangido de frigideira ou um roçar de colher de pau. As caçarolas fugiram do fogão, não por terem sido amassadas, mas porque o preço da “botija” está nas alturas. Já são seis aumentos no preço do gás de cozinha em apenas seis meses! Não dá mesmo para usar o fogão, mas o fogo dos manifestantes está aceso e bem vaporoso. Desta vez, porém, aqueles “foliões” investem contra inocentes museus e suas mostras de artes plásticas. Esses arautos da decência pública ficam mais ruborizados com as ‘pudendas desnudas’ de um artista performático do que com o crescente choro das crianças sem creche, o grito desesperado dos desempregados ou com o gemido dos indigentes entulhados nas praças e calçadas.

Solução à vista! Na cidade de Amparo, aqui aos pés da Mantiqueira, alguns vereadores desvendaram um mistério, que poderá resolver os problemas da humanidade. Após longa e exaustiva investigação, descobriram o grande responsável pelas mazelas desta simpática, mas incógnita ‘paróquia’: um crucifixo. Resolveram, então, que aquela inofensiva imagem não mais poderá permanecer na parede do Plenário. No mais genuíno diversionismo, esses vereadores destorcem o foco de assuntos urgentes para essa irrelevância. Enquanto seu chefe, digo o chefe do Executivo, cria secretarias para pendurar cabos eleitorais, aumenta tributos e descuida da cidade, esses edis se divertem numa ruidosa demagogia em nome da ‘laicidade’.

Se é para ter um Estado “autenticamente laico”, como querem alguns vereadores amparenses, faz-se necessário mudar o nome de estados, cidades, ruas etc. Por fim, quem sabe, demolindo o Cristo Redentor, o Rio de Janeiro voltará a ser lindo?...


FILIPE

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O TRONCO DE TAJUBA



“Chegou!”, disse ele às seis da manhã, dando-me um caudaloso abraço. “Nunca pensei que eu fosse chegar a esta idade, mas fazer ‘oitenta e sete anos’, andando... só tenho que agradecer a Deus!”, completou o alegroso aniversariante.

O dia foi intenso. Cedinho, já estava no feice, onde as felicitações se acumulavam, e a cada mensagem ele respondia com particular atenção. O telefone também tocava. Ao som do celular, largava o notebook e corria para o quarto, onde o aparelhinho não lhe dava sossego. Eram filhos, sobrinhos, parentes, amigos, admiradores.

Garboso de sua saúde, papai diz: “Eu sempre fui perrengue, muito doente, mas Deus me concedeu uma velhice tranquila. Olha, eu não tomo nenhum remédio e durmo a noite inteirinha!... Isso é graça!” Mamãe, porém, tem sido objeto de suas preocupações. Ela está bastante fragilizada – mais pelas enfermidades e menos pela idade, que já lhe pesa.

Se o papai tem o seu celular, mamãe tem o dela também. Todos os dias, às sete da manhã e às sete da noite, o ‘telefone’ da mamãe toca. E toca alto! Mas mamãe não atende. “Não vai atender, mãe?... Tá tocando...” Ela sorri, faz um meneio com a cabeça e diz: “Sei lá que é isso?...” Nisto, o pai chega a passos largos: é hora dos remédios. Papai, quando não está no fogão, faz palavras cruzadas ou fica no feice. Mas quando o telefone da mãe toca, larga tudo e vai atender a amada. Pega um copo com cloreto de magnésio, os comprimidos e entrega à esposa, que os toma agradecida e confiante.

O dia avança. Almoçamos ao meio-dia, mas não houve a sesta, porque a agenda estava cheia. Lá pelas duas da tarde, fiz um convite: subir o morro e rezar ao pé do cruzeiro, que ele aceitou de pronto. Indo, passamos na lagoa, onde plantou duas mudas de ipê ao lado de um jovem angico plantado por ele no ano passado. Fomos os dois e rezamos o Terço. Ele estava apressado, rezava rápido e eu não entendia por que a pressa. Mas papai sabe das coisas. Ao final da reza, ele disse: “Meu filho, vamos descer, porque a chuva vai nos pegar. Daquela região, vem mesmo; se fosse de lá, não viria”. Descemos rápido, e ainda assim chegamos molhadíssimos. Num dia tão especial, foi dessa forma que a dadivosa natureza quis presentear meu pai.

Embora quase nonagenário, papai está forte como um tronco de tajuba. Um dos símbolos daquele pedaço das Gerais, essa árvore tem cerne amarelo-ouro, copa robusta, frutos adocicados e espinhos inclementes. O carro de boi gemia mais dolentemente se seu eixo fosse de tajuba. Até as cercas dos sítios, que eram feitas de várias madeiras, tinham os mourões principais, os espichadores, feitos de toras de tajuba, por serem mais resistentes às intempéries.

Para nós, o pai é uma autêntica tajuba. Como um daqueles troncos da cerca, ele dá rumo aos demais mourões, os seus filhos, mantendo-nos alinhados; como árvore, cobre-nos com sua sombra protetora e tem a doçura daqueles frutos. Tem também os espinhos, que são capazes de aguilhoar o rebento traquina numa providencial correção paterna. Papai é isso mesmo: esteio, sombra, frutos, mas também espinho para imprevidentes “pés descalços”.

Uma curiosidade aritmética. Além do amor esponsal, meus pais têm uma particularidade. Num instigante valseado, os algarismos de ‘seus anos’ trocam de posição a cada onze anos. No oitavo movimento de uma série de nove, papai fez ‘87’ e mamãe tem ‘78’. Isso se explica pelo fato de a diferença de idade ser de ‘nove anos’.


FILIPE

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

ESPERANDO NO PORTÃO

Ele estava parado em frente ao portão da escola enquanto os estudantes entravam em costumeira algazarra. Eu deixava o prédio após o expediente e tentava alcançar a rua, desvencilhando-me daquela turba irrequieta. O homem parecia desorientado. De rosto encovado e olhos claros, seus cabelos muito brancos e despenteados davam a impressão de que o chapéu lhe fora arrancado minutos antes por uma ventania. Aproximei-me e perguntei: “O senhor não quer entrar? Não quer encarar essa meninada e dar umas aulas?...” O velho me fitou vermelho e vi seus olhos turvados de indignação. Pensei-o bravo por eu ter sugerido algo “abominável”: dar aulas. Não, ele não estava bravo por isso, mas por outro motivo.

“Você trabalha aqui?”, perguntou. “Sim”, respondi. “Já procurei a deretora, mas não resolveu. Agora eu vou fazer do meu jeito.” “O que foi?” “A minha menina tá dando beijo num sujeito aí, e eu não vou deixar isso ficar assim. Minha mulher está lá no Jardim Público atrás dela, mas acho que não encontrou. Eu vou ficar aqui, quero pegar os dois de cinta!” Disse, mostrando um surrado cinto que mal amarrava a calça.

O homem estava mesmo furioso e parecia ter razão. “É sua neta... sua filha?...”, eu quis saber. “É minha neta! Só tem treze anos e agora cismou de namorar. Mas o namoro de hoje é diferente, não é mais como antigamente. E o rapaz é desses que usam tatuagem, brinco e uns arames na cara. Eu não gosto desse tipo e vou livrar a minha neta das garras dele."

Fiquei um momento com aquele senhor e deixei que desabafasse. No começo estava muito feroz, mas depois suavizou. Passou-me a impressão de ser um homem de ‘muitas roças’. Traz as mãos calejadas, poucos dentes e grande preocupação com a neta – muito sem juízo, pelo jeito.

Sua vida não teria sido fácil. Sustentara a família no ‘cabo da enxada’, labutando sob sol, sob chuva até a velhice. Talvez tenha perdido um filho, deixando órfã a menina de quem passara a cuidar. A vida no campo fora-lhe dura, mas pacata. Na cidade, o pequeno conforto adquirido é contraposto à violência, drogas, preocupações. A neta não pode se perder.

Enquanto conversávamos, às vezes ele lançava os olhos pelas bandas do Jardim Público, mas não via a esposa, que deveria estar nas cercanias ao encalço da neta. Talvez a menina já estivesse na escola, tendo entrado antes ou... pior: ‘fugira’ para a casa do namorado, cabulando aula.

A sirene tocou e o portão estava sendo fechado. Alguns retardatários chegavam correndo e o portão, enfim, cerrou-se num rangido rouco. Despedi-me do homem, que continuou lá esperando a mulher, a neta e uma solução para o problema. Na despedida, conseguiu sorrir, juntando ao sorriso uma sentença: “Comigo vai ser no rei. Porque só mesmo um chicote pra consertar essa gente!

Segui devagar e pouco depois encontrei dois rapazolas sem camisa, enfiados em bermudões coloridos. Tinham uns “arames na cara”, o corpo tatuado e falavam numa gíria viscosa: “E aí, fi, a mina nem veio... Aquele lá é o vacilão do véio. Acho que deu treta prela. Vambora!”


FILIPE

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O JULGAMENTO DIVINO

Recentemente, tive um civilizado bate-boca com um amigo em rede social. No contexto em que se deu o “entrevero”, o jovem, idealista e pertinaz, defendia a primazia da “justiça divina”, enquanto eu apelava para a “divina misericórdia”.

A ideia de um “Deus de Justiça” me vem à cabeça sempre com certo alívio. Fico imaginando aquele homem furibundo, fortão e barbudo, com a balança numa das mãos e a espada na outra. Um arcanjo, acho que os anjos têm essa função, pega a alma e a põe trêmula na balança do “Juiz”. Este entrega a espada ao auxiliar, um querubim, e dá uma ajeitada na balança. Desloca umas argolas, endireita o braço, olha a escala e faz umas contas, de cabeça mesmo, porque calculadora não lhe faz falta. Após breve análise, a alma volta encolhidinha e já com o destino selado às mãos do arcanjo, que estava ali esperando o veredito. A frase: “Afastai de mim, malditos. Ide para o fogo do inferno!” soa-me como ópera, se proferida contra ladrões, homicidas e os demais malvados de nossa espécie. Mas, dependendo do momento, o “Deus de misericórdia” me parece mais conveniente, por não ter espada nem cara crispada. Com este, tudo se resolve numa conversa macia e uns tapinhas nas costas. Ao final, ajeitam-se as coisas e cada um tem garantida a vaga no “ninho celeste”. Bacana, não?...

Não, não é bem isso que deve acontecer no “Dia do Juízo”.  O Deus da justiça é o mesmo Deus misericordioso. A justiça divina está baseada na nossa prática de justiça terrena; a misericórdia divina também se dará conforme nossa conduta, se usamos ou não de misericórdia. Esse “deus bravão” não existe, como também não existe o “deus bonachão”. Sua misericórdia é infinita, mas Sua justiça não falha. Misericordioso, Deus acolhe a todos: puros e impuros, cristãos e não cristãos, muçulmanos, animistas, ateus... todos! Mas Deus não nos obriga a aceitar Sua acolhida. Se estamos em inimizade com Ele, o problema não é divino, mas nosso, e seremos julgados pelos nossos próprios códigos. Naquele dia, a grande surpresa pode ser a seguinte.

Eu levo uma vida de sacrifícios, desapego, jejuns e orações, e de mortificações. Mas o pândego do meu vizinho, ao contrário de mim, é sujeitinho à toa e da pior espécie. Por coincidência, chegaremos juntos diante de Deus para o tão esperado ”julgamento”. Pode ser que Deus me convide a entrar. E eu entro, olhando disfarçadamente para trás, pensando: “Agora ele vai se ferrar!”. Mal eu ponho os pés na soleira da porta do Paraíso, alguém toca no meu ombro: “E aí, parça! Vamo de boa nessa?...” Olho assustado: "Não, não pode. Esse ‘tranqueira’ entrando comigo no Paraíso?..." Com ele, eu não fico aqui!” Então, volto ao Senhor: “Como pôde salvar aquele cara?... Ele deveria estar nas chamas, porque foi dito: ‘Ide para o fogo...’” “Chega!”, diz o Senhor, tentando controlar uma inesperada fúria. “Filho, tu vês apenas a obra. Eu também aprecio os grandes feitos da humanidade: as obras missionárias, o sangue dos mártires. Aprecio também o Barroco de Minas, a Capela Sistina. Mas não só. O que vale aqui, não é o ‘resultado contábil’. Não leste nas Escrituras: ‘Esforçai para passar pela porta estreita’? Por isso, considero o esforço de cada um a maior riqueza. E esse tesouro, apenas eu posso avaliar!”

Concluindo, somente Deus conhece as lutas interiores de cada um de nós. Por isso, apenas Ele pode nos julgar. Apegar-se à literalidade das leis incorre-se num rigorismo inquisitorial típico da Idade Média. E tem mais. Deus nos fez imperfeitos, incompletos, fracos, mas ávidos de felicidade e capazes até de se apaixonar. Ele sabe disso!

FILIPE

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

TRAVOU!

Estava com um texto pela metade e sem meios de continuar. Minha mente travou e a preguiçosa imaginação parecia ter entrado em estado de dormência. Quando decidi continuar e voltei ao computador, quem resolveu travar foi o dito cujo. O notebook implorava por atualizações há tempos, mas eu sempre adiava. Quando cedi aos seus reclamos, talvez por pirraça, o danado engasgou de vez com a mensagem:  ”Instalando atualização 7 de 13”. Dali ele não saiu mais e continua abobalhado desde a tarde de ontem. Fazer o quê?...

Agora, com o computador da ‘patroa’, que não domino a contento, tento rabiscar alguma coisa, mas está difícil. Talvez a culpa seja do calor, da insistente seca que nos aflige e não minha. Porque sempre é bom encontrar algo ou alguém a quem culpar pelos nossos insucessos e frustrações. E como isso conforta!... Ah, mas tem a estiagem... Como é triste a estiagem! Com o estio, tudo fica mais complicado se ele vem acompanhado de calor e ‘ar seco’... Mas nós merecemos sofrer essas agruras atmosféricas, a ausência de chuvas e fresquidão. Como desmatamos... meu Deus! Nos quintais de antigamente havia pomares, que inspiravam os poetas; havia praças arborizadas, que inspiravam os poetas; havia também matas e moitas de bambu... para os poetas. Já não se veem mais matas, nem as moitas, nem os pássaros, nem os poetas.  E eu aqui tentando poetar...

Na postagem de hoje tentei, sem sucesso, inserir um vídeo. Tencionava ‘enrolar’ o raríssimo leitor. “Quem sabe ele se entretenha com as imagens e não se dê conta da minha ‘desinspiração’?...”, pensei. Mas a plataforma rejeitou meu subterfúgio e o jeito foi dedilhar nesse irreverente teclado. Há uma tecla que não funciona e isso me faz apagar e reescrever frequentemente determinadas palavras.

Assunto não me falta, mas não consigo abordá-lo de forma leve, suave, como fazem uns poucos que leio com relativa frequência. Mas tenho observado que até esses literatos não impressionam com seus belos escritos. Quando os reproduzo na minha página, não há a mínima repercussão. Se nem eles conseguem atrair os olhos cada vez mais exigentes (ou preguiçosos) dos ‘feiceleitores’, imagina um sujeitinho de escassas letras e fraco no estilo, como este rabiscador. Seria muita pretensão minha, não?...

No meu quintal há uma já famosa aceroleira. Ela não garante chuvas para este verão que se aproxima seco nem para os verões que virão. Mas nela há muitos pássaros, que me ajudam a rezar todas as manhãs. E tem lá pombinhas silvestres nidificando! De vez em quando isso acontece para minha grande alegria e maior preocupação. É que o Tiziu cismou de querer variar sua refeição e fica à espreita dos filhotes que, segundo ele, “têm carne macia e sem anabolizantes”. Mas eu ponho um “funil” no focinho do Tiziu e preservo os filhotes de suas mandíbulas.  A Pituka e o Tokinho que se cuidem, senão ficarão todos adornados com um “funil” como aquele do Tiziu, porque as minhas “meninas” terão que ficar a salvo dessas rapinagens.


FILIPE 

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

NÃO, GENERAL!

Servi o Exército por dois anos e, apesar da ditadura militar que infelicitava a nação à época, trago boas recordações da caserna. Lá, conheci pessoas íntegras, generosas, que muito me ensinaram.  A disciplina era dura, mas não havia privilégios para os mais abastados. Para o bem ou para o mal, soldado era tratado como tal, sem distinção de cor, classe ou sobrenome. Havia uma frase muito batida, que o sargento repetia aos conscritos nos primeiros dias: “Aqui é o lugar onde o filho chora e a mãe não escuta!”  Não me lembro se chorei no quartel. Devo ter chorado, mas de saudade de alguém, que não escutou, como também minha mãe não escutara – proibida que estava pelo sargento disciplinador.

São impressionantes as oportunidades encontradas por quem ingressa nas Forças Armadas. Para o caboclo estudioso e responsável, uma estradinha de sucesso pode ser aberta, e uma carreira, ainda que modesta, pode surgir-lhe alvissareira. Conheci muitos militares graduados oriundos de comunidades carentes, que se ergueram através do empenho pessoal. Há pouco tempo, Dilma Rousseff (alguém se lembra dela?...) deixou ainda mais auspiciosa a carreira militar, garantindo que mulheres ingressem como oficiais combatentes nas três Armas. Antes, elas poderiam exercer apenas funções burocráticas.

Gosto dos militares e sei o quanto eles nos são uteis. Tive como capelão o padre Gaio, um capitão amável, que nos devotava carinho quase paternal. Gostava de brincar conosco, dizendo que nunca seria papa, porque não poderia se tornar um “papagaio”. Tinha também um cabo cozinheiro e gorducho, muito bonzinho. Disseram-me que ele colaborava com os soldados, quando estes deveriam mandar fezes ao laboratório de análises clínicas. Não conseguindo colher o material, alguns infelizes recorriam àquele benfeitor, que fornecia o “produto” à farta.

Mas tanto lá como cá, maus-caracteres existem e são abundantes. Estes estão nas empresas, igrejas, governos ou repartições públicas, fazendo os estragos de sempre. Quero, com isso, afirmar que não se deve apostar em determinado segmento da sociedade – no caso, os militares – para salvar a pátria, porque salvacionismo só existe nas mentes ingênuas ou insanas.

Recentemente, numa loja maçônica, um general da ativa defendeu a intervenção militar no país. Antes, esse mesmo oficial perdera um importante cargo devido a declarações desairosas. Mas agora, tendo como chefe o “denunciado”, não foi punido. Temeroso, o “temerário” não teve a hombridade de ao menos advertir seu subordinado. Nem uma nota, um bilhete, um rabisco qualquer, ele teve coragem de apresentar à nação, reprovando o malfeito do subordinado.

Mais recentemente, outro general, agora num templo católico, foi na mesma linha daquele. Em homilia transmitida pela TV, o Arcebispo Militar do Brasil, um “três estrelas”, exaltou a bravura, a competência e a honestidade de seus colegas fardados, confiando a eles a missão de tirar o Brasil do lamaçal em que se encontra. De um bispo católico, eventualmente incardinado capelão militar, espera-se o pacifismo; jamais o belicismo de um aiatolá.
  
Os militares são sempre imprescindíveis, mas desde que permaneçam dentro de seu “quadradinho constitucional”. Os civis, bem ou mal, vamos desentortando os caminhos através do voto. E sem a tutela de generais, por favor!


FILIPE

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

NÃO MATARÁS!

“Desculpa pelo mal-entendido, professor! Eu estava errado aquela vez, foi mal...” Pasmo, ouvi do rapaz aquele pedido de desculpas, que aceitei sem delongas. Disse-lhe ainda, que o quero feliz e que todos os dias rezo por ele – como sempre rezo pelas pessoas que me dão alegria ou tristeza. Ele respondeu: “Eu também, professor”. Sem saber se ele rezava por mim ou me desejava felicidade, agradeci de pronto e sinceramente tamanha generosidade.

O episódio aludido pelo rapaz não foi apenas um simples ‘mal-entendido’, mas algo bem mais desagradável. Há tempos, sofri dele uma agressão verbal na sala de aula seguida de ameaças etc. Colérico, reagi como pude, e se arma eu portasse naquele momento, uma história bem diferente desta estaria para ser contada.  Mas a cura para essas e outras chagas encontrei nas preces que faço diariamente.
  
Todos passamos por dolorosos conflitos, quando nos afloram os mais inconfessáveis ímpetos homicidas, mas não podemos sucumbir à força da nossa natureza nada angelical. Usemos a razão ou, doutra forma, trocaremos a civilização pela barbárie.

Recentemente, uma vibrante manchete ocupou várias mídias, louvando a “bem-sucedida” operação policial que deu cabo de dez bandidos. A fatídica quadrilha ousara assaltar uma residência num bairro da grã-finagem paulistana, e se deu mal. Falou-se de “intensa troca de tiros” entre polícia e bandidos. O governador publicou nota em apoio à operação, afirmando que “uma quadrilha foi desmantelada”, e que “quem porta fuzil não quer conversar”.

De início, quis concordar com o governador, mas só “de início”, porque não dá para aceitar aquele tipo de operação como “política de Estado”, principalmente de quem pleiteia ser presidente da República. Explico.

Primeiro: não houve “troca de tiros”, porque, felizmente, nenhum policial foi baleado. Já no lado do ‘inimigo’, uma sinistra média de quatorze perfurações por cadáver – a maior parte com sinais claros de execução. Foram 139 tiros certeiros em 10 homens, alguns com mais de trinta ‘buracos’; quem recebeu apenas um tiro, teve-o na nuca. Segundo: a quadrilha não foi desmantelada. As autoridades sabem que os mentores do crime nem sempre participam de ação armada.  Aqueles que morrem não passam de “soldados” de uma organização sofisticadamente hierarquizada. As “altas patentes” foram preservadas com a morte de seus comandados. Estes poderiam entregar seus chefes, porque a moda agora é “delação premiada” – alguém aí já ouviu falar dela?

O caso “Morumbi” é notícia velha. Ninguém quer saber mais disso nem do que acontece nos grotões do país, quando lideranças camponesas são exterminadas como moscas. Índios, quilombolas, sindicalistas são perseguidos e dizimados sem que ninguém os proteja.

A nova “política de segurança” implantada por Michel Miguel, o Pequeno, é de morte e não de vida. Além de tantas ‘temeridades’, a triste figura acaba de liberar a famosa pistola Taurus Millenium 9 mm, uma das armas mais letais do mundo, capaz de matar até três pessoas com um único tiro. Policiais de folga poderão portá-la, mas apenas os policiais. Mas alguém precisa avisar os bandidos que eles não têm autorização... E nada de ficar chupando o dedinho, cobiçando a arma do meganha, entendeu?...

“Não matarás!” Já li isso em algum lugar, mas faz muito tempo.


FILIPE

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O SOLDADO COSTA

“E o ‘Pica-Fumo’, é bacana com vocês? Cadê ele?”, perguntou-me o soldado Costa numa tarde do ano de 1980. Eu tirava guarda no pátio das viaturas do Esquadrão de Cavalaria, enquanto ele estava numa janela do Quartel-General, um prédio vizinho. Não sabia que seu pai, meu chefe de seção e que foi carinhosamente chamado de ‘Pica-Fumo’, era esposo de uma prima de minha mãe. A partir desse brevíssimo diálogo, estreitei laços com aquela família e passei a integrá-la. Mas o Costa, embora simpático, era de poucas palavras, e nas vezes em que fui à sua casa, pouco conversávamos. Sempre havia muita gente por lá e eu me ocupava mais com os assuntos da mãe, que gostava de recordar antigas histórias de sua terra natal.

Naqueles tempos de Exército, tentei seguir carreira militar e ingressei num curso de cabo. Durante um acampamento, sendo designado chefe de uma patrulha de reconhecimento, eu e meus comandados vagueamos a noite pelo matagal à procura do inimigo, mas fomos subitamente abatidos por uma rajada de metralhadora – que na verdade era uma matraca. No balanço da operação, um furibundo sargento me repreendeu: “Você perdeu todos os seus homens na emboscada! Sua patrulha foi massacrada!” “Sim, senhor!”, respondi. Mas o sargento não se contentava com o meu “sim, senhor” e repetia a cantilena. Daí, já impaciente, retruquei: “Ninguém morreu, sargento. Eu e meus companheiros estamos vivos, porque foi tiro de festim!” Com esta minha ousadia verbal, o homem queria me partir ao meio, mas se conteve. Houve mais: durante um desfile, tive mal-estar e meus olhos turvaram-se. Pedi para sair de forma, mas o sargento não permitiu. “Soldado cai, mas não sai!”. Sai de forma e me sentei na calçada. Recobrados os ânimos, corri e alcancei a tropa, que já ia longe. Chegando, apresentei-me ao sargento, que me recebeu calado, mas com “cara de cão”.

E assim, a “derrota militar” no acampamento, a rebeldia no desfile e as soníferas aulas teóricas depois do almoço selaram minha desventura. Para sorte minha ou da corporação, pus fim num alentado sonho verde-oliva de “homem das armas”.

Mas o Costa, que era um sujeito sabido, se deu bem. Com pouco tempo ele se tornou cabo-enfermeiro e só não avançou na carreira porque não quis. Era competente e poderia ter chegado a oficial, como seu pai.

Numa daquelas visitas à família do Costa, conheci seu irmão. Era um sujeito magro, cabeludo, barbudo – um riponga. Com ele, aprendi a tomar chimarrão, ouvir MPB e apreciar literatura. A música, em volume baixo, temperava sua prosa, que também tinha lá uns tons melódicos. Tornei-me amigo desse magricela e passei a ter menos contato com o Costa.

O tempo passou e nas muitas vezes que voltei àquela casa, nunca mais vi o Costa, que voltou a ser Sérgio, passando a ter outras ocupações: deixara a farda, casara e cuidava agora da família. 
  
A notícia de sua morte foi um grande baque. Não sabendo de sua enfermidade, não rezei pela sua recuperação. Descanse em paz, Sérgio! Para mim você continua sendo o bom “soldado Costa”.


FILIPE

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A CIDADE ENCANTADA

Publicado na “Tribuna de Amparo”, edição de hoje

Sobre os longevos paralelepípedos da rua Quinze de Novembro, afluíam pés apressados para os vários quiosques que ofereciam degustação: uma festiva Amparo inaugurava sua primeira edição do “Festival da Cachaça”. Mas o que nos embriagou de verdade não foi a aguardente, que muitos afirmam ser saborosa, mas a melodia cabocla – muito mais apetecível do que aquelas incursões etílicas. No Largo do Rosário, entre a Capela e o Sobrado da Viscondessa, uma multidão assistia e aplaudia embevecida uma orquestra de viola caipira. Naquela noite de agosto, um grupo de quatorze violeiros cantava e encantava a cidade com suas guarânias, toadas e rancheiras. A praça, a rua e a cidade inteira reverenciavam os seresteiros vindos das cercanias, cujos acordes tangiam a rua Quinze e eram reverberados pelos velhos casarões coloniais no centro histórico da cidade. Por um momento, pudemos esquecer as agruras do dia a dia como carestia, violência e desfaçatez – males que assolam desde sempre esta depauperada nação – e nos deixar embalar pelo som da viola.  E então, uma antologia do cancioneiro sertanejo-raiz foi entoada por aqueles bravos violeiros. Antes de cada canção, o “violeiro-regente” citava a autoria e, dessa forma, Tonico e Tinoco, Liu e léu, Tião Carreiro e Pardinho, Lourival dos Santos, Teddy Vieira etc. foram homenageados e rememorados no evento.

Havia também um CD promocional, que era oferecido por uma pequena colaboração de ‘dez reais’. Quem quisesse adquirir o disco poderia se dirigir a uma pequena mesa, que ficava num ângulo do palco, quase escondida. Ali, sozinho, o próprio cliente abria uma caixa, pegava o CD e fazia seu troco. Na caixa havia vários discos e uma certa quantia de dinheiro, mas os cantadores não se preocupavam com isso, pois seu intento era cantar, alegrar aquele público e nada mais.

Vivemos numa sociedade obscenamente mercantil, de costumes devassos e passamos por uma espécie de assoreamento cultural. Mas aquela singela orquestra de violeiros deixou algum alento. Muito mais do que boa música, ela nos trouxe uma lufada de esperança de dias melhores. Depois daquela apresentação, a cidade de Amparo parece ter ficado mais encantada.


FILIPE

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

INCIVILIDADE

Se bem que pedi a Deus, como costumo fazer todos os dias antes de cada jornada: “Senhor, dai-me paciência e competência para realizar meu trabalho, e nada mais!” Mas o Altíssimo, com outras urgências, teria me abandonado. “Tenho agenda cheia. Preciso ‘destrancar’ o Brasil infestado de ‘zumbis’, enquadrar Trump, libertar a Síria, alimentar refugiados e tantas outras emergências... e esse aí só fica me enchendo o saco com suas pequenezas. Dá sossego, cara!”, teria dito o Criador com o cenho franzido, dando largas passadas e cofiando a barba. Mas não, o Barbudinho não me abandonou.

De volta, após um mês de recesso, período que pode ser visto como férias – afinal, foram trinta dias de folga e eu não poderia lastimar, mas... Nesta volta, já no primeiro encontro com meus alunos, houve um grande desencontro: fui impiedosamente xingado e só não reproduzo a “bendita” frase para não ferir pias e imaculadas retinas que aqui pousam. O “crime” aconteceu nos minutos finais da última aula, já nos estertores da jornada. Embora cansado, eu estava bastante confortado com as pequenas realizações do dia. Mas o fato me deixou no chão, vencido e batido. Naquele momento, senti necessidade de me retirar do “front”, pois o triste episódio me deixou aterrado.

Usando-se de motes bíblicos, o trabalho do professor costuma ser comparado ao de um semeador ou de um pastor. ‘Semeia-se sempre, mas há de germinar a boa semente se se cai em bom solo’. Mas um colega, que em suas aulas gosta de ler a Bíblia em voz alta para que seus alunos respeitem ao menos a Palavra de Deus, ilustra muito bem o trabalho docente. Ele diz, com seu humor singular: “Dar aula é ensinar: o professor tem o conhecimento e quer passar esse conhecimento para o aluno. Mas se o aluno não quiser aprender, não adianta. Pode espernear, que não vai acontecer nada. É como um pastor cuidando de um rebanho de cabritos. Ele leva os cabritos ao poço para que bebam água. Mas se eles não quiserem beber, não tem como obrigá-los a isso. Pior: se muitos estão com sede, mas um cabritinho ‘tranqueira’ resolver atrapalhar, o vagabundinho vai lá, não bebe e ainda suja a água, que é para ninguém beber mesmo. E toda a cabritada fica com sede, mas o pastor vai fazer o quê?...”

O magistério é penoso e ninguém me falou que seria fácil. Tive bons mestres, busquei inspiração neles e abracei esta carreira, que já dura um quarto de século. É uma estrada dura, pedregosa, mas por ela ainda é possível fazer a juventude enxergar algum horizonte. Apesar dos tropicões, é para frente que se vai.     

Neste momento, graças ao Bom Pai, já estou refeito. Mas não demovi a ideia de registrar queixa-crime numa unidade policial, o que certamente farei sem pressa e sem prazer.  Penso que ninguém é obrigado a gostar de alguém, mas civilidade é algo que não se pede. Exige-se.


FILIPE

sexta-feira, 21 de julho de 2017

UMA SENHORINHA

“No meu tempo já havia velhos, mas poucos”, disse Machado de Assis através de um de seus personagens. Hoje há muitos velhos – podemos dizer com júbilo ou preocupação. Amparados ou abandonados, eles estão por aí... e por aqui. Alguns nonagenários; outros, porém poucos, já centenários. Convivo com uma nonagenária, mas na minha infância não conheci ninguém na casa dos noventa. Dona Sarminda, nossa vizinha, tinha uns oitenta. Outras duas octogenárias viviam em Vilas Boas: a dona Inácia, que morava num anexo da casa do Natalino Tibúrcio, filho da dona Sarminda, e a Sadelina. Lembro-me bem da Sadelina, magra, alta, lavava seus “trapinhos” no chafariz do arraial. A molecada, que hoje já se encontra nos umbrais da ‘terceira idade’, fazia troça da ‘desinfeliz’, que respondia com impropérios – sua única defesa. As três pobres negras nasceram “súditas da coroa imperial ”e eram netas de escravos. A dona Sarminda, que não tinha documentos oficiais, se referia a fatos antigos como “no tempo do cativeiro”, ou seja, da ‘escravidão’.

Hoje há velhos bem cuidados pela família; outros, no entanto, explorados por filhos e netos; e há também aqueles descartados como tralhas, numa agônica expectativa do fim. Mas nem tudo são horrores, convenhamos. Nas minhas andanças, costumo cruzar com idosos desfilando prazenteiros, tomando o sol da manhã ou a “fresca da tarde”, como gosta de dizer minha mãe. Não raro encontro duas senhoras, ambas de chapéu, que costumam flanar pelas bandas do Largo do Rosário. De vestidos longos, colares lustrosos e batom carmim, elas caminham solenes, proseiras e sem pressa. Paro à distância e as contemplo furtivamente.

Outro dia, eu caminhava lendo uma crônica de Antônio Prata, que costumo deixar para ser “sorvida” quando volto da escola, após a última aula da semana, numa espécie de fechamento celebrativo de minha jornada. Plácida como sempre, a rua estava sem trânsito e com poucas pessoas com quem cruzaria no meu caminho de volta. Descendo a rua perpendicular à minha, vejo uma velhinha subindo vagarosamente. Uma das mãos segurava o guarda-sol, enquanto a outra, trêmula, apalpava a amurada, buscando apoio para caminhar. De início, pensei que fosse uma conhecida que costuma bater de porta em porta, perguntando onde fica sua casa. Da última vez, trazia consigo um gatinho, que também parecia estar perdido. Então conduzi ambos, mulher e gato, por uns quarteirões até que uma amiga nos acudiu, dando-nos informação. Mas desta vez não era ela, e de perto pude confirmar. Mais alta e um pouco mais encorpada, esta mulher subia lentamente a ladeira. “Tá dando um passeio?’, perguntei. “Sim”, respondeu. “Mora por aqui?” “Moro em Jundiaí.” “Então veio fazer visitas... Tá na casa de alguém?” “Estou na casa do Chicão. Você conhece o Chicão? Ele mora logo ali...” Animada agora, quis dar uns passos na direção da casa do Chicão, mas a fiz desistir. “Seu nome?...” “Júlia. Júlia Penedo da Silva Ferreira!”, disse o nome e sobrenome, conforme o hábito dos de sua geração. “Muito prazer! Quantos aninhos?...” “Noventa e quatro!”, respondeu orgulhosa da idade, aquela doce senhorinha.


FILIPE

sexta-feira, 7 de julho de 2017

UMA CANETA BIC

Há muito que a visita do rapaz ao amigo não passava de uma promessa, pois sempre surgia algo a lhe impedir a viagem. Enfim, ele conseguiu ir. Mas fora prevenido de que aquele senhor costuma estar sem assunto. Noutros tempos, costumava chegar à sua casa algum compadre, que ficava horas na sala, sem uma ponta de prosa. O visitante fazia um cigarro, acendia, fumava, olhava lá fora, cuspia... Mas o velho continuava num silêncio monástico, mantendo as pernas trançadas, contemplando a palma da mão, brincando com os dedos ou olhando fixamente para um ponto indefinido.  E a visita resistia até que: “Então, compadre, eu vou chegar lá em casa.” “Demora mais, compadre!... Não quer mais café?” “Não, compadre, obrigado. O café tá bom, a conversa tá boa, mas preciso ir. Até logo!” “Então... até logo, compadre!” E assim, de forma tão espontânea e natural, os compadres encontravam-se e se despediam.

Sabendo disso, o rapaz, que não é tão moço, encarou o desafio e foi comigo visitar o velho amigo, que não é tão velho assim. O reencontro foi memorável. Os dois se entenderam, muitos causos foram contados e, por fim, o velho se dirigia ao rapaz sempre no diminutivo, tamanha a empatia entre eles.

Conversa vai, conversa vem e eu me lembrei de que aquele senhor estava necessitado de canetas. Então peguei uma caneta metálica, que eu trazia espetada na camisa, e lhe ofereci. Mas ele devolveu, dizendo: “Não gosto deste tipo de caneta. Já tenho umas aqui como essa, que nem uso...” O rapaz sacou de uma Bic e disse: “Olha, desta aqui o senhor vai gostar!” Ele  pegou a caneta e respondeu: “Pois desta eu gosto mesmo”. Aí, o rapaz se alegrou e começou a exaltar a caneta Bic: “Então... não tem caneta melhor do que a Bic. Esse aí quis fazer graça, dando ao senhor uma caneta chique, mas não conseguiu agradar. A caneta Bic, sim, é a melhor de todas as canetas. É simples e baratinha, mas é usada até pelas autoridades! Pode ver: deputado e senador só usam Bic!” Fiquei embasbacado, pois eu não sabia que a Bic era tão boa assim. E o amigo continuou: “Olha, a Bic não falha! É só pegar e começar a escrever, sem a necessidade de ficar rabiscando para que solte a tinta. Mas não é só por isso que eu gosto da Bic. O melhor dela é a tampa!” Aí eu pirei de vez: “A tampa?! O que tem essa tampa, meu Deus?...”, pensei. Mas o rapaz completou: “É com a tampa que eu limpo a orelha!” O velho não se conteve: “É por isso que eu gosto da Bic! Com a tampa, dá pra tirar cada catoto do ouvido... É uma beleza pra isso!”, disse, agora examinando a tampa da Bic que acabara de ganhar. “Olha, essa caneta é novinha, e eu não usei a tampa dela, tá?...”, acudiu o rapaz. “Ah, eu sei... dá pra ver que é nova!”, assentiu o velho, tampando a caneta e tentando disfarçar a gafe.

Já aprendi muita coisa nesta vida e deveria ter aprendido muito mais, porque os anos já me são largos. Mas somente agora eu vim saber que tampa de caneta pode ser usada como cotonete!


FILIPE

sexta-feira, 23 de junho de 2017

OS TRÊS CONSELHOS

Dia desses, perdi preciosos minutos com um vídeo que tem feito almas puras verterem as mais cristalinas lágrimas. Traz a saga de um pobre camponês recém-casado, que se despede da jovem esposa e sai à procura de trabalho. Após vários dias na estrada, ele encontra ocupação numa fazenda, onde se estabeleceria. Contratado, pediu ao patrão que todo seu ordenado fosse depositado numa poupança. Passados vinte anos, o camponês pediu as contas e o patrão lhe propôs o seguinte: “Dou-te todo o salário ou três conselhos. Se quiseres o dinheiro, não terás os conselhos; mas se quiseres os conselhos, não terás o dinheiro”. O camponês, caboclo honesto e trabalhador, mas meio pancado das ideias, ficou de pensar. Matutou a noite toda e decidiu pelos conselhos. O patrão, muito “bondoso”, como costumam ser os fazendeiros, deu-lhe três pães: dois para serem comidos durante a caminhada e um para comer com a esposa, quando chegar em casa. E os conselhos: “Vá pelo caminho mais longo, sem pegar atalhos; não dê ouvidos a coisas do mal, como gritos de socorro, por exemplo; não espanque sua mulher antes de saber que o cara que está com ela pode ser o seu filho”.

Bom, há várias versões dessa “fábula” na WEB e quem quiser detalhes, que assista a um vídeo daqueles e confronte com este texto. A mim, não interessa traduzir em palavras, imagens e sons tão comoventes. Ademais, ainda que eu quisesse, jamais conseguiria fazer alguém chorar com um texto. Mas quero apenas refletir sobre mensagens como essas, que trazem no seu bojo alguma subliminaridade.

No vídeo, o patrão é um homem bonachão e parece preocupado com o empregado, que volta para casa guiado pelos “três conselhos”, caminha por vinte dias e tem como alimento apenas dois pães. Não pôde pegar carona, pois o primeiro conselho dizia para “não tomar atalhos”; não prestou socorro a um agonizante, pois o segundo conselho advertia para “fugir do mal”; enfim, o mais sensato dos conselhos, o terceiro, também foi fielmente seguido: evitou cometer um crime ao encontrar a esposa acompanhada de um homem. Dispararia contra os dois, mas pensou: “Não posso tomar decisões com a ‘cabeça quente’!”

Como nas fábulas infantis, o final foi feliz. Depois dos abraços e beijos, como convém a certos reencontros, a mulher foi para o fogão preparar o café, enquanto o filho... ah, não me lembro. O pai pegou o último pão e... surpresa das surpresas: estava recheado de dinheiro! Como a poupança de vinte anos de trabalho coube num pão, não se sabe. Se bem que o pão era grande, mas...   

Em tempos encardidos como estes, quando deputado propõe que lavradores trabalhem em troca de casa e comida, o vídeo traz uma mensagem subliminar: o patrão decidindo sobre a vida do empregado, que é tratado como súdito.  É uma história piegas, desarrazoada, eivada de machismo, de egoísmo e com apologia à vassalagem, mas faz sucesso nas redes.  


FILIPE

sexta-feira, 9 de junho de 2017

ASSOMBRAÇÕES

A minha infância foi recheada de histórias de assombração. Alguns desses casos pareciam verdadeiros, a fonte era confiável, mas nunca consegui acreditar nisso.  Estradas desertas, casas abandonadas e encruzilhadas eram lugares preferidos das “coisas do outro mundo”.  Algumas dessas “almas penadas” ficariam empoleiradas nas porteiras durante a madrugada. Quando alguém se aproximava, a “coisa” abria a porteira para que o andante passasse tranquilamente. Tranquilo?... Segundo contavam, o coitado partia desesperado, em desabalada carreira. Chegando em casa, pedia que não acendessem luz; tinha que ficar no escuro por algum tempo, não se sabe por quê.  

De um vizinho, homem respeitado por sua valentia, contava-se que a “coisa” montara na garupa de sua mula. O “indesejado” o acompanhou por todo o trajeto, gelando sua cacunda, até chegar em casa. O animal bufava e suava, trotando com dificuldade, pois o troço era pesado à beça.  Noutro episódio, um parente próximo teve de abandonar sua própria casa devido a fenômenos estranhos. Os casos que ele conta são de arrepiar até os mais céticos, como eu.

Recentemente, um colunista da Folha contou uma história dessas ocorrida em Ipanema, no Rio de Janeiro. Após o falecimento do ocupante, um apartamento entrou em reformas, mas alguns operários se recusaram a trabalhar lá. Descargas sanitárias eram acionadas misteriosamente, lâmpadas piscavam, martelos mudavam de lugar; respirações ofegantes, tosses, pigarros, passos também aconteciam sem que tivesse alguém no local além do operário. Até o porteiro evitava visitar o imóvel devido ao caso. Um senhor, alheio aos acontecimentos, alugou o apartamento e morou nele por um tempo, mas não resistiu. Bateu em retirada, porque a coisa estava cada vez mais fora de controle nas suas noites, que se tornavam longas e tenebrosas.

Não acredito em assombrações, porque elas só aparecem a alguém sozinho, à noite, mas nunca no meio do dia e para um grupo de pessoas. São elas tímidas, ou covardes? Mais: por que ao invés de remover um pequeno objeto, como um martelo ou um livro, a danada não desloca a geladeira da cozinha para a sala, ou um guarda-roupa do quarto para a cozinha? Aí, sim, seria mais emocionante, não?...

Ainda. Por que os “seres das sombras” não agem no sistema bancário, fazendo transferências de uma conta para outra? Não dominam a tecnologia?... Se são do mal, poderiam praticar a maldade de forma mais efetiva e charmosa; sendo do bem, a justiça social triunfaria!

Há pouco tempo uma dessas assombrações pareceu ser do bem, quando o “usurpador” foi enxotado do Palácio da Alvorada. Que interessante: um “vampiro” atormentado por “zumbis”, que o puseram para correr! Mas poderiam ter feito o serviço completo, expulsando-o também do Jaburu, de Brasília, do País... que se encontra cada vez mais mal-assombrado.


FILIPE

sexta-feira, 26 de maio de 2017

MAIOS DE ANTIGAMENTE

Como diria Machado de Assis, na minha infância já existia maio. Só que o maio da minha infância parecia ser mais doce do que os “maios” de hoje. Foi num mês de maio que minha mãe ganhou um bolo trazido da escola por meu irmão mais velho. Acostumados às broas de fubá com erva-doce, aquele presente causou alumbramento em casa, pois foi a primeira vez que, crianças, comíamos bolo. Lembro do gosto de baunilha, que eu nem sabia que era baunilha. O pratinho de papelão ficou por tempos em casa, exalando aquele aroma de “bolo das mães”. Foi naquele dia que fiquei sabendo que as mães têm um dia só seu, e que poderia ser comemorado com um bolo de baunilha.

Em maio havia a colheita do arroz-de-abril – uma variação dos inúmeros arrozes que existem e que cultivávamos – cuja planta de cana longa produz exuberante cacho com grãos dourados e esguios. Parece que o arroz-de-abril não era muito apreciado pelo mercado. Mas não me importam as pretensões do mercado, que exporta; importa-me o arroz, que nunca exportei.

No maio da minha infância tinham festas em Vilas Boas, que a dona Angelina Tibúrcio frequentava conosco. Ela, como nós, ia descalça e com sua blusinha branca, de malha – a única que tinha. O Tatão Tibúrcio, irmão da dona Angelina, com quem morava, ficava em casa. Tinha cravos nos pés, reumatismo nas “juntas” e não podia fazer longas caminhadas nem deixar a “casa sozinha”. Àquelas festas acorria muita gente para participar da novena e assistir à coroação de N. Senhora. Minha irmã mais velha foi coroadeira por algum tempo, e diversas vezes orgulhei-me de vê-la vestida de anjo. Havia, a cada ano, a liturgia de despedida da coroadeira-mor, para que as menores pudessem ascender a esse posto.

Após as rezas, havia o leilão. O leiloeiro era o senhor Geraldo Lima, um homem claro, do tipo “galego”, que animava a festa de dentro de um coreto. Pegava uma das muitas prendas que estavam num canto e dizia: “Este aqui tá cheiroso... Deixa eu ver direito. Ih, é um frango assado, que tá uma delícia!... E tá sem preço!!! Quem dá o lance?...” “Vinte cruzeiros, que é pra começar!”, gritava alguém.  “Vinte e um cruzeiros, que é pra minha patroa!”, respondia outro. “Vinte e dois cruzeiros, que é pro compadre não levar!”, gritava um homem que acabava de chegar. E o pregão continuava com aquele “pingue-pongue”, até que: “Trinta e cinco cruzeiros, dou lhe uma. Trinta e cinco cruzeiros! Trinta e cinco cruzeiros! Vou bater o martelo... Trinta e cinco cruzeiros... Dou-lhe duas... dou-lhe três!” E o frango vai foi arrematado por alguém lá de D. Silvério.

No dia da Santa, o mais esperado, havia missa e muitos fogos, especialmente uns tais “foguetes de vara”, que o seu João Firmeano soltava. Somente aquele velhinho dominava o ofício, que lhe conferia certo prestígio. Solene, o “oficial da artilharia divina” segurava firme cada artefato, acendia o estopim e liberava a vara, que subia sibilante, iluminando o céu noturno de Vilas Boas, espocando nas alturas.

Mais um maio se vai. Não houve bolo de baunilha, foguetes de vara nem leilão. Daqueles maios antigos, ficam-me essas doces recordações.


FILIPE

sexta-feira, 12 de maio de 2017

CAÇA À JARARACA

O arredio leitor não se assuste. Não farei uma defesa apaixonada de Lula neste “ensaio”, mas também não lhe farei ataques, pois de safanões ele não carece e deve estar com o lombo ardendo de tanto apanhar. Ademais, o meu político favorito nem é brasileiro, mas uruguaio. Gosto do “Pepe Mujica”. Aquele, sim, quando no exercício do mandato, manteve a simplicidade, dirigindo seu fusca e continuou morando no mato, numa chácara da família. De seu ordenado como presidente do Uruguai, noventa por cento eram doados para instituições de caridade. Se atualmente meia de dúzia de nações estivessem sob o comando de “Mujicas”, a humanidade estaria curando suas chagas e se redimindo de seus males.

Volto ao Lula. Essa “jararaca” é o alvo da caçada que se empreende. As miras do Judiciário, no entanto, não estão no homem, mas sobre o que ele representa. Há contra Lula mais de uma centena de ações em diversos tribunais espalhados pelo País. Enquanto não o puserem sob ferros ou o impedirem de disputar eleições, não haverá trégua. Convocado pelo “justiceiro de Curitiba”, Lula teve de explicar a origem de um apartamento e de um sítio. Ora, alguém que governou o País por oito anos ser acusado de ganhar um apartamento e um sítio?... Isso parece caso de vereador de província e em primeiro mandato. Acredito que um presidente da República, no “ofício de seu vício”, compraria apartamentos em NY, Paris, Londres... ou poços de petróleo na Arábia Saudita. Jamais um sítio com pedalinhos pra lá de brega e apartamento em Guarujá.

Quem leu alguns livros de história conhece a trajetória de Getúlio Vargas e pode compreender o momento que vivemos. Aquele gaúcho, um político multifacetado e polêmico, destorceu o centro do poder, mudando para o Sul o centro de gravidade da política nacional. Mas os oligarcas paulistas e mineiros não lhe deram sossego. Aconteceu a tal Revolução Constitucionalista, logo depois a ditadura do Estado Novo, a queda do “caudilho”, o retorno do “velhinho” e, finalmente, o suicídio do “pai dos pobres”. Agora os tempos são outros, mas a hipocrisia e a desfaçatez permanecem inalteradas, pois vivemos sob o jugo de um governo ilegítimo e despótico, um parlamento venal e um judiciário corporativista e vingativo.

Afirmo nestas linhas, já encerrando, que Lula não é ladrão; sendo, é um bobalhão que nem se presta a “roubar decentemente”. Jânio quadros, que entrou na política pobre, morreu deixando sessenta e seis imóveis. Quantos são os imóveis de Lula? Já Paulo Maluf é um cara esperto. Mantém, segundo a Agência Estado, suspeitosos 340 milhões de dólares no exterior, embora fosse obrigado a devolver à prefeitura paulistana um pouco mais de oitenta milhões de reais. Maluf não é investigado pela Lava Jato, não é fustigado pela mídia e nem corre risco de ser preso.

Lula não é Getúlio. Como uma “jararaca mal matada”, ele ainda dá seus botes, mas, para gozo de seus desafetos, não disputará eleições. Com sorte, passará seus tempos finais no ostracismo; com menos sorte, na carceragem; sem sorte alguma, terá o destino de Getúlio ou de Juscelino.

Em 2018, aprofunda-se o caos. Ah, não vai dar e eu terei que me mudar para o Uruguai. Quero morar naquela Pasargada, que já foi a nossa “Província Cisplatina”.


FILIPE

sexta-feira, 28 de abril de 2017

O REBANHO EM PERIGO

Artigo publicado no jornal "A Tribuna", edição de hoje.

“Escreva algo positivo no jornal. Tem dia que atendo confissões por até quinze horas, celebro missa no cemitério, faço tantas outras coisas... e você vai ao jornal só para criticar?! Vá lá, escreva alguma coisa boa, que os católicos agradecem!” Assim, o pároco da catedral de Amparo interrompeu a sessão de abraços, fartamente distribuídos aos fiéis numa extensa fila após a missa matinal no Domingo de Páscoa, para me dar esse pito.

Penso ser desnecessário dizer publicamente, mas admiro o trabalho do padre Anderson à frente da Catedral. Amável, discreto, exigente e comprometido, esse jovem sacerdote exerce com louvor seu ministério. Suas celebrações são concorridas, sobretudo pelos jovens, que não suportam delongas – aquelas missas intermináveis. Além de pastor zeloso, é um destacado administrador do rico patrimônio histórico sob sua responsabilidade, cuja manutenção é feita com singular desvelo.

Justiça seja feita também a inúmeros religiosos, além do padre Anderson, que doam a vida em favor dos deserdados. Num trabalho silencioso, muitos pastores declinam do conforto da “civilização” e se embrenham nos sertões inóspitos, enfrentando os rigores da natureza, a pobreza e muitas vezes os violentos da sociedade. Levam a palavra aos sem voz, a liberdade aos cativos e a alegria aos entristecidos.

Padre Anderson tem razão. Eu tenho sido áspero nas minhas observações e talvez injusto nas avaliações. Mas a nota publicada por mim, aqui na Tribuna, pareceu-me justa e não lhe era direcionada. Lamentei o fato de “Biomas”, o tema da Campanha da Fraternidade deste ano, tão rico e oportuno, ter sido ignorado e substituído por “dados estatísticos” de nossa diocese. Também fiz menção a uma “névoa”, intrigante e misteriosa, que encobre a reluzente figura do Papa Francisco cujas exortações não fazem eco por aqui.

Reafirmo, com pesar, minha crítica. A CNBB – graças a Deus, nós a temos – vem denunciando veementemente os desmandos da classe política perpetrados contra os trabalhadores.  Estes, os verdadeiros construtores da nação e que vivem exclusivamente de seu labor, assistem pasmados à supressão de seus direitos via reformas: trabalhista e previdenciária. Mas o brado da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ainda não ressoou nos templos durante as celebrações a que assisto.

Nossos pastores deveriam ficar mais atentos ao balido de suas ovelhas, porque uma alcateia está à espreita... e já se aproxima!


FILIPE

sexta-feira, 14 de abril de 2017

DESÂNIMO



Desacorçoado. Assim me sinto perante a juventude, de quem Luiz Melodia disse ser ‘transviada’. Não sei se o poeta tinha razão, mas um desalento ameaça nosso futuro. Para onde descaminham essas massas?

Lido com jovens de classe média baixa desde “tempos imemoriais” e cada vez mais me surpreendo. Afora as exceções, das quais me nutro, muitos são tíbios nos estudos, lassos nos costumes, uns desapiedados.

Dia desses na sala de aula, ouvi algo apologético à pedofilia. O rapaz – que atraía para si a curiosidade e admiração de muitos colegas – ao ser repreendido, retrucou com júbilo: “Sou de menor, o que vão fazer comigo?...” “Mas você já responde por isso, pois tem quase dezoito anos!...” Tentou continuar, mas, na possibilidade de o caso ser levado adiante, aquietou-se.

Para muitos, as aulas são maçantes, desinteressantes, enfadonhas. Alguns pedagogos (demagogos) costumam responsabilizar os professores pela má gestão das aulas, resultando no insucesso da aprendizagem. Essa, porém, é outra questão que não quero abordar agora. Já estou suficientemente agastado e este texto não precisa de mais tempero.

No País, todos os anos gasta-se ao menos um bilhão de reais com merenda escolar e material didático. Mas carteiras são quebradas, livros amarfanhados, cadernos desfolhados; lápis, borrachas, réguas e canetas encontram-se aos borbotões, abandonados ou destruídos.  Na merenda, pratos de comida – com carne, que muitos nem têm em casa – são jogados no lixo. Ah, tem também as maçãs. Conheci maçã na infância, mas nas páginas de “Branca de Neve”; e na Bíblia, onde se conta a história de Eva, aquela glutona, que irritou o Criador, comendo maçã proibida e corrompendo Adão. Por culpa daqueles dois, fomos expulsos de uma “paradisíaca chácara”, e hoje somos obrigados a ralar para sobreviver. Que casalzinho trouxa! Mesmo embora associada à maldição, costumo comer maçã. De vez em quando, pego uma do chão, já mordida por um daqueles “pestinhas”, lavo, recorto a parte ferida e aproveito o restante.

As provas. Estas são elaboradas, impressas e aplicadas. O mano pega, não lê e devolve em branco. “Não vai fazer?”  “Ah, eu num sei, fi. Vô fazê uma coisa que num sei... Sai fora!” “Mas como não? Foi ensinado...” “ num ensina direito, fi... Suave!” “...” Numa dessas avaliações, propus algo assim: “Dona Maria foi à feira e comprou 5 peras (não escrevi maçãs, porque jogam fora!), a um real e sessenta centavos cada uma, trezentos gramas de alho, a 17 reais o quilo e pagou a compra com uma cédula de vinte reais. Determine o troco.” É conta que o ‘seu Zé da feira’, que não completou o primário, faz mentalmente e a todo instante. Mas o meu aluno do Ensino Médio, na escola há mais de dez anos, não conseguiu fazer!

Tem mais. Recentemente, num protesto contra o ‘temeroso’ e suas reformas, não havia meia dúzia de jovens. Além deste “ranzinza” que vos aporrinha e outros poucos, estava o Tokinho, o meu velho cãozinho, que não entendeu direito, mas gostou da passeata. Logo o Tokinho, que já nasceu aposentado, saiu de sua bacia e foi lutar pelos que desistiram da luta.

Jovens, acordai!


FILIPE

sexta-feira, 31 de março de 2017

CARNE FRACA

Não fui consultado sobre o que penso da ‘Operação Carne Fraca’ que abalou o País, mas estou dando meus palpites. De início, estranhei o nome “carne fraca”, que me fez lembrar o apóstolo Pedro num franco desabafo ao Mestre. Pedro tinha o ‘espírito forte’, mas admitiu ter a ‘carne fraca’. De minha parte, não sei se minha carne é forte o bastante para trabalhar até os sessenta e cinco anos como quer o “ogro do Planalto”, mas o meu espírito é bem fraquinho e tem passado por muitos perrengues ao longo desses anos.

Deixando de lado a “franqueza petrina” e voltando às mazelas verde-amarelas, parece que os policiais federais acharam carnes estragadas, e carne estragada não é carne fraca, mas podre. Se a operação não pôde ser batizada com o sugestivo nome de “Carne Podre” é porque algo ainda mais putrefato ocorrera com as autoridades.  

A mídia não destaca, mas está também em curso a ‘Operação Carne Fria’. Nesse trabalho, a PF investiga negócios entre pecuaristas de áreas ilegalmente desmatadas do Norte e os famosos frigoríficos. Naqueles descampados, o gado é criado clandestinamente e adquire ‘certificação fria’ para ser comercializado regularmente. Como os grandes proprietários de terra da região amazônica são também os donos do Congresso, a coisa não vai andar.

Não tenho muito a dizer sobre assuntos tão sisudos, como o comércio de carnes vencidas, mas imagino que na net podem ser encontradas informações bem detalhadas na forma de textos, tabelas, planilhas e que tais. Este espaço, porém, reserva-se à opinião deste blogueiro e de uns poucos leitores que aqui aportam. Quero, então, fazer um pequeno questionamento: o que o bicho, o verdadeiro dono da carne, acha de tudo isso? Ninguém foi entrevistá-lo, até porque o boi, o porco, o frango e seus semelhantes, sempre desconfiados dos humanos, não costumam dar entrevistas. Mas fico pensando: o que eles teriam a dizer?...

O ser humano, esse glutão, só quer saber de comer carne. E a carne tem de ser saborosa, barata e abundante, não importando os meios para se chegar a isso. Faz-se churrasco porque é fim de semana, o Flamengo ganhou, o Flamengo perdeu... Enfim, sempre há um bom motivo para um bom churrasco! O pior nem é a churrascada, mas o desperdício. Observe, devotado leitor, numa festinha, como se desperdiça carne!...

Neste breve ensaio, recuso-me a discorrer sobre o abate, algo ainda paleolítico, horripilante; também não quero falar sobre as “fábricas de carne”, onde o bicho vive seu inferno particular; o transporte então... E não vou comentar as condições subumanas dos operários nos frigoríficos. Apenas quero provocar uma reflexão: todo alimento é sagrado, porque vem de nosso trabalho; a carne, contudo, tem mais sacralidade, pois não é apenas resultado de um labor, mas fruto da dor do animal que foi abatido. Desperdiçar um pedaço de carne é dessacralizá-lo!

O Criador deve estar muito aborrecido com as atrocidades cometidas pelos humanos contra inocentes criaturas. Por isso, gostaria de viver o suficiente para ler uma bula, uma encíclica, uma pequena carta papal em defesa da vida animal. Para que se cumpra a exortação bíblica: “Feras e rebanhos, bendizei o Senhor!”


FILIPE

sexta-feira, 17 de março de 2017

UMA CORRESPONDÊNCIA

Meu querido irmão Filipe, paz e bem! 

Que bicho estranho eu sou, né? Você até se antecipou ao meu aniversário e eu, nada! 

Mano, muito lhe agradeço as palavras de sincero afeto por ocasião de meu natalício! A gente é humano e se alegra pela amizade e pelas expressões de carinho, sobretudo quando são expressões da alma! Estou muito feliz de chegar aos 44! (um pouco preocupado também, é verdade... Tô ficando velho e às vezes isso assusta! Coisas para integrar!) 

Mano, como de outras vezes, consegui passar uns dias, durante o meu níver, no Morro [um eremitério], lá em Guarapuava. Dessa vez foi bem diferente, pois fiquei sozinho. Na primeira noite, fiquei meio receoso (ansioso). Me chuchei cedo debaixo das cobertas – na verdade, o meu mantéu de frade. Não levei cobertor, pois achei que lá já teria, ou quem sabe..., é verão ainda e estaria mais quente. Passei um frio danado. Aos poucos, fui me acalmando e só não dormi melhor mesmo, devido ao frio. No segundo dia não pousei lá, mas no Convento, por causa de compromissos. Então voltei, levando um cobertor na guaiaca e aí pude dormir bem. Encontrei cobra escondida na latrina (jararaca), que ficou lá até o final, e duas baitas aranhas em noites diferentes. Mas isso não me assustou. Pude acender o fogãozinho, bem mais precário que esse aqui [do eremitério] de Ponta Grossa. Mas é algo tão singelo ver aquele fogo crepitando, a fumaça corcoveando, aquele arzinho de se estar em casa, mas ao mesmo tempo tão só. A natureza exuberante, muita chuva, muitos pássaros... E, sobretudo, estar a sós com Deus. Não ter pressa de rezar, não consultar muito o relógio, deixar o dia fluir entre pequenas leituras espirituais e atos de entrega, confiança, pedidos e louvor ao Criador, que nos envolve por dentro e por fora.
  
Tudo isso não é lá tão romântico assim. Às vezes vem o vazio, o tempo não passa. Então, é hora de alguma atividade física: buscar lenha, pedras para a construção, água na mina... Esquentar a água e tomar banho de cavalo (é isso?), usando-se uma pet. Deita-se cedo para combater o medo e também por estar sempre chuvoso. E acordar para o louvor, iniciando o dia com o rito de acender o irmão fogo. Depois, mais tarde, da capelinha próxima, de pedra, escutar a água já chiando na panela... Deus seja louvado! 

A tal da cobrinha deu trabalho. No penúltimo dia, à noite, um grupo apareceu por lá. Um deles era militar e eu pedi para dar um jeito de retirar a peçonhenta, pois poderia machucar alguém desprevenido. Ele se prontificou, arrumando um barbante e uma forquilha para imobilizá-la. Tudo pronto para a ação louca de arriscada, quando aparece um companheiro, descontado da ideia (muito gente boa, em geral) com um trago de pinga na cabeça e se atirou sobre a cobra, pegando-a à unha. Foi imediatamente picado e levado às pressas para o hospital (descer todo o morro a pé, pegar o carro lá embaixo, e por estrada de chão de uns 3 km, a procurar recurso). Salvou-se, mas amargou uns quatro dias de hospital... Quem sabe tenha aprendido, pois estragou a nossa noite! 

Mano, tô comprido hoje, né?! Fico por aqui. Estou bem, graças ao bom Deus. Sábado passado tivemos a ‘sopa na rua’: mais de trinta jovens juntos. Lembrei-me de você. Ah, a Indiasara, de Guarapuava, também mandou abraços, e o povo do Fernando!
  
Deixo-lhe um abraço muito carinhoso. Desculpe o “sumiço do tio Gerson” no paiol. Não sei se é o “espírito do Vô Aurélio”, que me faz cair na capoeira!... Mas estamos bem!
Saudações para a Rosana.
  

Seu Frei Gabriel

sexta-feira, 3 de março de 2017

BANANA-MAÇÃ

Um ano atrás, ganhei de meu pai uma pequena plantinha, que embrulhei com muito jeito num jornal e pus dentro da mochila com cuidado para não a sufocar. Não há criatura mais vulnerável do que uma mudinha de banana, principalmente se ela está dentro de uma mochila e se essa mochila está com alguém displicente, que quer transportá-la por centenas de quilômetros.

Meu pai pegou essa muda onde existe uma rústica plantação de bananas-maçãs, ainda dos tempos de meu avô paterno. E o pequeno filhote chegou ao destino, ganhando como “bercinho” um vaso bem adubado. Então, entre mimos e regas, a primeira folha despontou minúscula, num desanimado verde-abacate. Depois, com outras folhas já num verde mais pronunciado, a menina foi se animando, refolhando-se e se vestindo, até ser necessária sua mudança para o solo, onde se emancipou. Seu novo lar foi numa encosta, próximo a um pé de manga-espada, que por aqui se diz manga bourbon. A anfitriã mangueira, uma exuberante “pré-adolescente” que também veio das Gerais, agora tem para quem contar seus muitos causos mineiros.

O meu affair com as bananas é antigo e até já falei das casas dos caboclos de antanho, que tinham as bananeiras como providenciais banheiros. Mas essa minha “menina” tem uma única função: dar bananas e nada mais.

Na casa onde fui criado, não havia bananeiras. Meu pai diz que aquele solo arenoso não era apreciado por elas, que preferem terra massapê. Já na casa de minha avó materna havia bananas, que eram guardadas na despensa, dentro de uma arca – uma enorme caixa de madeira onde se armazenava arroz em casca. De vez em quando, minha avó tirava dali umas pencas madurinhas e as distribuía conosco. Que delícia!

Na despensa de meu avô paterno também tinha bananas. No chão, atrás da porta, encostado numa parede que tinha um prego para pendurar molhos de chaves, costumava aparecer um rotundo cacho de bananas-maçãs soberbamente orgulhoso de suas bagas verdes, e sem pressa de amadurecê-las.   Eu apenas observava. Em poucos dias, porém, uma mancha amarela partia de sua base, cobria toda a extensão e chegava ao topo: era hora de atacar. Ali, diferentemente da casa de minha avó, as bananas estavam sob domínio de minhas mãos. De vez em quando, precisando entrar naquela despensa para pegar as chaves, também pegava furtivamente umas bananas e as comia ali mesmo. Muitas vezes, deixava o recinto entalado, tentando disfarçar o malfeito. Eu pegava as bananas de trás do cacho na tentativa de ludibriar o meu avô, que não se importaria com isso. Mas a “cratera” ia aumentando rápido, de forma que comecei a desconfiar de alguma concorrência. Tinha lá o irmão mais velho, o irmão mais novo, uns primos. Vai saber... 

Mas a minha bananeira, antes pequenina e solitária, cresceu, teve filhas e netas e me deu, como prova de gratidão, um belo cacho de bananas, que comi sem pressa e sem culpa.  Neste Carnaval, comi muitas bananas-maçãs que eu mesmo cultivei. Elas tinham o mesmo cheiro e sabor das bananas que eu esgueirava de meu avô. Bananas com sabor de infância!


FILIPE