sábado, 27 de abril de 2024

CESARINHO

 


Em setembro último, estando na casa de um velho conhecido, encontrei-me com o Cesarinho. Assim que nos vimos, ele me reconheceu e perguntou se eu me lembrava dele. “Não, eu não me lembro de você!”, respondi envergonhado. Perplexo, ele bradou: “Sou o Cesarinho, rapaz! Já se esqueceu de mim?!” Fiquei embasbacado. Afinal, muitas décadas se passaram sem que eu visse esse meu colega de escola, com quem estudei o ‘quarto ano primário’. Acontece que os anos costumam fazer estragos no corpo e na memória da gente, o que nos deixa meio embaraçados quando reencontramos amigos de infância – e esse é o meu caso.

A conversa que eu teria com o outro senhor, a quem visitava, migrou para o Cesarinho. Bom de prosa, ele contou muitos casos naquela curta meia hora de bate-papo. Eu também rememorei com ele alguma coisa bastante pitoresca, de que ele se lembrou com impressionante nitidez.

“Cesarinho, você se lembra daquela vez que eu achei na estrada uma chave de mecânico e que troquei com você por um pedaço de lápis? Levei um baita prejuízo, né não?...” Ele deu uma gargalhada e me disse que também não ficou no lucro. “Aquela chave eu acabei trocando por fósforos!”, ele disse e continuou. “Eu estava indo pra roça e não tinha como acender o cigarro. Então peguei aquela chave ofereci à minha irmã em troca de uma caixa de fósforos, que nem estava cheia, mas era o que eu teria para o momento. E assim se foi a chave, que deveria valer nem sei quantas caixas de fósforos...”

A história da chave trocada pela caixa de fósforos eu já sabia, não pelo Cesarinho, mas por um irmão meu.  Numa conversa entre os dois, esse irmão tocou no assunto e o amigo contou o ocorrido, o que agora foi confirmado.

Outra história, talvez ainda mais interessante, não foi abordada nesse nosso reencontro. Depois que levei aquela “manta” (expressão usada por meu irmão mais velho pra dizer que eu ‘me ferrei” com a barganha), fizemos outra 'breganha', que será descrita abaixo.

Certa vez, no Dia das Crianças, cada aluno ganhou uma bola. Eu voltava pra casa todo alegre com meu presente, mas gostei mesmo foi de um isqueiro que o Cesarinho mostrou. Então propus a ele uma troca. O amigo topou, levando a minha bola e deixando comigo o isqueiro. Agora eu estava ainda mais feliz com aquele trequinho. Era só dar uma dedada no rebolo, que a faísca gerava uma pequena labareda. No entanto, minha alegria acabou assim que cheguei em casa. O isqueiro, que era a gasolina, foi reabastecido com querosene. Resultado: ele não acendia mais. Por mais que tentasse, nada! Então, já com a amarga lembrança daquela ‘chave trocada por um toquinho de lápis’, decidi procurar o amigo pra resgatar a bola. E lá fui eu à casa do Cesarinho.

Chegando lá, a mãe dele me atendeu e disse que o filho estava no roçado. Expliquei meu drama e o arrependimento por trocar a bola pelo isqueiro, e que eu queria destrocar. Ela ficou reticente, mas me compreendeu e permitiu que eu entrasse pra procurar a bola no quarto do filho. Entrei e não vi nada. Ela sugeriu que eu olhasse embaixo da cama. Sim, a ‘minha’ bola estava repousando embaixo da cama do Cesarinho. Deitei no chão, estiquei-me a fim de alcançá-la e lhe dei um toque. A bola me obedeceu, batendo na parede e voltando feliz para as minhas mãos.

No dia seguinte, no caminho da escola, um furioso Cesarinho me chamou de cotieiro, mas nem liguei. Somente depois pude saber que “cotieiro” é quem descumpre a palavra, desfazendo negócios. Então admiti que fui cotieiro, mas prometi pra mim mesmo ser aquela a única vez em que eu faltaria com a palavra.

O tempo foi passando, o Cesarinho me perdoou, terminamos o primário e continuamos amigos. O tempo deu mais umas cambalhotas e, após meio século, nos reencontramos.  O rapaz queria conversar mais e me convidou pra ir à sua casa. Eu prometi que iria, mas não deu tempo. No dia onze deste mês de abril, enquanto trabalhava, o meu amigo de infância se despediu.

Muitas são as histórias e estórias que eu gostaria de ouvir, mas somente o Cesarinho poderia contar.

FILIPE


sábado, 13 de abril de 2024

O ESTEIO DA FAMÍLIA

 


Fazendo memória nestes dois anos da ‘passagem’ de meu Velho, começo este texto ouvindo “Esteio de Aroeira” – um clássico da dupla Zé Fortuna e Pitangueira. “Meu pai que também era o esteio firme da família (...)” – ouço emocionado. 

Na última vez que visitei meu pai, estávamos jogando cartas quando me veio a ideia de pôr algumas músicas pra tocar e enfeitar nosso lazer. Comecei por “Esteio de Aroeira”, tendo a certeza de que ele a conhecesse e apostando que gostasse dela, mas não foi bem assim. Papai, que até então escolhia atentamente as cartas que formariam canastras e aquelas que deveria descartar, desviou o foco para aquela música, que o embevecia.  Ao final, perguntei se a conhecia, e para minha surpresa ele disse que não, mas que achou muito bonita. Na foto acima, um registro daquele carteado, que foi o último; no dia seguinte ele seria internado pra não mais voltar. 

Desde a primeira vez que ouvi ‘Esteio de Aroeira’, e isso já faz muitos anos, a imagem de meu pai me veio solene com ela. Ainda assim, não sei por que, eu nunca havia pensado em pôr essa música para ele ouvir. Nem mesmo quando lhe dei uma caixinha de música com um pen-drive contendo mais de uma centena de clássicos da música sertaneja-raiz. Ali havia sucessos de Tonico e Tinoco, Liu e Leu, Pedro Bento e Zé da Estrada, Zilo e Zalo, Pena Branca e Xavantinho, e até mesmo de Zé Fortuna e Pitangueira, mas não havia ‘Esteio de Aroeira’. 

Meu pai sempre gostou de música e cresceu ouvindo rádio. Numa ocasião, quando ele era pouco mais do que um menino, talvez no começo da década de quarenta, meu avô Sebastião comprou um rádio a válvula, que era ligado sempre à noitinha. A energia elétrica vinha de uma pequena usina construída por esse avô, e o gerador conseguia abastecer duas ou três casas na redondeza.  Em torno daquele rádio, a família Lopes de Lima recebia a vizinhança para ouvir a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a mais famosa na época. 

O tempo passou, meus pais se casaram e compraram um rádio a válvula semelhante àquele do meu avô. Certa feita, o casal teve que se mudar para uma casa mais distante, de forma que ficaram sem eletricidade e... sem rádio! E assim se passaram muitos anos até que, com a família já grande e para a alegria de todos nós, papai adquiriu um rádio a pilha. 

Os anos foram passando ainda mais velozmente e a tecnologia foi chegando à nossa casa. Agora papai já podia assistir televisão, ouvir rádio à vontade, mas ainda não tinha internet e nem queria saber dessas ‘modernidades’. No entanto, foi a caixinha de música com aquele pen-drive que fez a alegria de meu pai por bastante tempo. Sempre que eu chegava, lá estava ele fazendo palavras cruzadas e com a caixinha ligada, ouvindo música. 

O tempo deu outro salto e na casa de meu pai chegou um notebook. Agora com o computador, tudo mudou radicalmente. Papai tornara-se um internauta e passou a se ocupar com seus inúmeros ‘amigos e amigas’ do Facebook.  E foi a partir daí que a “minha” caixinha de música foi aposentada e dela nunca mais se teve notícia. 

Enfim, há exatos dois anos, papai foi ‘tombado pelo tempo’. E como aquele sempre lembrado ‘velho esteio de aroeira’, o ‘Velho Esteio’ da nossa família jamais será esquecido.

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sábado, 6 de abril de 2024

DITADURA NUNCA MAIS


 

O assunto não agrada, eu sei, mas preciso falar de coisas chatas também. E já adianto ao raro leitor: caso tenha algo mais divertido pra fazer, corra daqui porque não serei suave.

No último 31 de março (ou primeiro de abril) completaram-se sessenta anos do golpe militar que arrastou o nosso país para uma ditadura de duas décadas. Muitos ignoram o golpe e a consequente ditadura: uns por desconhecimento, outros por maldade.

No sexagésimo aniversário da infâmia, o presidente da República proibiu atos oficiais alusivos à data e por isso ele foi bastante hostilizado, sendo, inclusive, tachado de covarde. Eu também penso que a data não pode ser apagada e o golpe deve ser rememorado todos os anos, sempre no ‘primeiro de abril’. Mas Lula tem lá suas razões e não quis arrumar encrenca com os fardados.

Para entender o governo federal, há uma linha de raciocínio bem simples. As nossas ‘forças armadas’ são semelhantes às ‘gangues armadas’ que dominam as comunidades. Ao cidadão suburbano que vive sob o jugo desses facínoras, a prudência aconselha a não se mexer. Dessa forma, um pacto de convivência se estabelece para a sobrevivência de quem não tem armas. Acho que está explicado, né?... Eu não sei desenhar!

O arguto leitor pode citar as ditaduras no Chile, Argentina e Uruguai cujos agentes foram julgados e condenados, enquanto no Brasil ninguém foi punido. É verdade, mas a história nos oferece uma resposta muito simples para isso. No nosso país, a hegemonia militar tem histórico de um século e meio. O protagonismo dos generais começa na Guerra do Paraguai, passa pela deposição do imperador e atravessa a República – desde Deodoro até esse Vilas Boas. 

Nessa trajetória golpista, veio 1964, e ali os militares tomaram o poder com a fome e a fúria de seus ancestrais. Nos vinte e um anos de ditadura, todas as vozes dissonantes foram silenciadas e muita gente foi presa, torturada ou assassinada simplesmente por divergir do sistema. A retórica golpista aponta apenas para uma reação a guerrilheiros. Houve, sim, alguma resistência armada à tirania, mas a repressão alcançou cidadãos comuns, pacíficos, que apenas contestavam o regime. Para provar isso, e antes de encerrar este texto, ficarei com dois exemplos bastante pessoais que dão conta da truculência dos “gorilas”.

Nos anos oitenta, quando eu prestava o serviço militar, fui ameaçado de prisão por um sargento por simplesmente eu ter dito “João Figueiredo” em referência ao presidente da República. O esbravejante praça me disse que o correto é “presidente” e que eu poderia ser preso por me referir de forma tão “desrespeitosa” ao general Figueiredo. O outro caso se deu num restaurante, quando me encontrei com um antigo colega de farda que passara a trabalhar na ‘inteligência’ do exército. Durante aquele almoço, ele disse que meu irmão, antes seminarista e depois padre em Juiz de Fora, tinha sido monitorado pelo serviço secreto.

Hoje, apesar de tudo, alegra-me saber que, embora ainda poderosos, ‘pela primeira vez na nossa história’ militares de alta patente são inquiridos por civis, tendo que suportar até oito horas ininterruptas de interrogatório. Alguns tergiversam, outros se recolhem ao silêncio covarde, e já houve até quem desmaiasse diante de uma ordem de prisão. Gente, isso não é pouco!

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domingo, 24 de março de 2024

NA SORVETERIA


 

Noutros tempos eu gostava de me amoitar num cantinho de boteco para ler, escrever ou simplesmente observar as pessoas que entram e saem – e também aquelas que nunca saem. Eu me divertia vendo um ébrio encostado no balcão com um copo de cachaça pela metade, mirando o líquido numa contemplação apaixonada e sem fim. O homem pega o copo, dá uma balançada na pinga, mas desiste de beber, deixando novamente o copo no balcão. Olha meio desconfiado para o lado, dá dois ou três passos em direção à porta, mas volta para seu cantinho e fica novamente namorando a pinguinha, que parece ser boa.   

Antigamente a cena com o manguacinha no boteco era mais pitoresca. Naquele tempo, o sujeito tinha a liberdade de acender o cigarro, mas para isso teria que usar uns três palitos de fósforo: um quebrava na primeira riscada; o outro palito caía e ele, por razões óbvias, não conseguia pegá-lo; com sorte, era bem-sucedido na terceira tentativa. E os copos... ah, preciso falar disso. A cachaça foi feita pra se servir no copo americano. Pinga, qualquer que seja ela – premiada, de litro ou garrafão, até mesmo do barril – tem que ser tomada em copo americano. Doutra forma, quem é bom cachaceiro jamais vai cumprir o “sagrado” ritual de beber um gole e dar aquela baita cuspida em seguida.

Numa tarde quente e úmida, eu estava numa cidadezinha do interior do Paraná quando resolvi dar uma escapadinha para um boteco bastante fuleiro, onde havia apenas três ou quatro mesinhas e nenhum cliente, que é do jeito que eu mais gosto. Pedi uma cerveja, fui para um canto e comecei a bebericar enquanto retomei a leitura de um livro. Comigo estava Dom Casmurro, que, na minha opinião, é a melhor obra de Machado de Assis. Enquanto o botequeiro, sem ter o que fazer, cochilava do outro lado do balcão, eu submergia na história de Bentinho e Capitu. Subitamente, chega um cliente e desperta o homem, dizendo quase num grito: “Seu Manduca, me dá uma cerveja!”.  Não poderia ser menor o meu susto, não por ele rasgar violentamente aquele benfazejo silêncio vespertino, mas porque naquele exato momento eu lia no romance a história de um personagem que, coincidentemente, tinha o nome de Manduca. Como pode?... Manduca ali e Manduca aqui?! Sim, o homem tinha esse apelido, que provavelmente tenha saído das páginas de Machado. Vai saber...

Agora os tempos são outros. Já não frequento boteco e muito raramente vou a barzinho. Meus anos foram passando, antes devagarinho e agora bem mais apressadinhos. Com a idade, me veio também algum juízo, de forma que meus espaços de lazer são mais escassos e bem selecionados – como uma sorveteria, por exemplo. É dela que eu gostaria de falar nesta crônica, mas fui atraído pelo boteco.

Bom... semana sim, semana não, dou-me ao luxo de ir a uma sorveteria.  Ali, leio e como picolés. Sim, eu mordo e mastigo picolés – não os chupo. Devoro sempre três: de abacaxi, limão, milho verde ou coco queimado. Enquanto vou sorvendo aquela delícia gelada, vou mergulhando nas páginas de um livro. Só que outro dia eu esqueci de levar esse companheiro e resolvi fazer umas continhas. Mas... atenção, matemáticos! Na demonstração da fórmula na foto que abre este texto, não há rigor algébrico. No entanto, fiquei satisfeito com o resultado. E com os picolés.

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sexta-feira, 8 de março de 2024

ELA SE FOI VESTIDA DE BRANCO

 


Vivi com minha mãe os seus últimos momentos. Nunca, jamais pude imaginar que seria eu a pessoa a estar com ela em sua hora derradeira. Uma profusão de pensamentos me tonteava naquele começo de noite do dia 29 de fevereiro. Mamãe inerte, respirava silenciosamente com o oxigênio no fluxo máximo.

Eu tinha à disposição uma poltrona confortável, mas preferi uma cadeira de plástico, porque eu sabia que naquela noite eu não poderia cochilar. E numa cadeira menos confortável, provavelmente eu velaria o sono de minha mãe sem que dormitasse. Naquelas horas aflitas, eu me dividia entre a mamãe e o celular, de cuja telinha brotava um jorro interminável de mensagens, muitas não respondidas. Eram irmãos, parentes e amigos que queriam saber como ela estava. Eu não imaginava que aqueles seriam os instantes finais de minha mãe. Naqueles minutos, que depois eu saberia serem os últimos, enquanto eu observava a respiração e a temperatura da minha mãe, a minha irmã mais velha costurava o ‘vestido branco’ que mamãe, em palavras cifradas, encomendara um ano antes. As máquinas tinham pressa e trabalhavam freneticamente: no hospital, a de oxigênio soprando no limite máximo; na casa da minha irmã, a de costura na velocidade de um raio. E o vestido ficou pronto no momento em que mamãe partia. 

Na tarde do dia anterior, mamãe estava em casa e sua crise respiratória agudizava. Havia um cilindro de oxigênio prestes a se esvaziar. Procurado o fornecedor, primeiramente por minha irmã, esta não teve seu pedido atendido; depois fui eu a ligar para a empresa e experimentei a mesma frieza do funcionário, que, por razões absurdamente burocráticas, dificultava a entrega dos cilindros. A pressão no manômetro diminuía a olhos vistos e nós ficamos apavorados. Por fim, acabou o conteúdo e mamãe ficou “como um peixe fora d’água”. Desfalecida, sua saturação caiu a níveis absurdamente incompatíveis com a vida. 

Felizmente, o posto de saúde ofereceu um cilindro com a terça parte do conteúdo, mas suficiente para o socorro.  Mamãe já se recobrava quando chegou o doutor a pedido da mana. De longe, o médico já adiantou que o quadro era grave e que a enferma deveria seguir imediatamente para o atendimento intensivo. E assim foi feito. 

A ambulância estacionou no terreiro de casa naquela tarde de 28 de fevereiro, mamãe seguiu para o hospital e ficou até altas horas numa sala de emergência, porque não havia leitos vagos. Finalmente, devido a uma transferência, minha mãe conseguiu subir para a enfermaria, sendo acomodada num dos leitos do quarto 205. Há mais de um dia sem se alimentar e sem beber água, porque não tinha forças para engolir, mamãe tinha sede. Em casa, seus lábios eram molhados com um algodão embebido e nesse momento ela erguia as mãos, tentando agarrar uma mamadeira, que lhe era invisível. Na enfermaria, mamãe voltou a pedir água, o risco de engasgo era real, mas decidi arriscar.  Peguei um copo de plástico com uma pequena quantidade e levei até à sua boca. Ela sorveu sofregamente, amarrotando o copo e sem engasgar. Pediu mais, eu dei. Ela adormeceu feliz, porque matou a sede. Na manhã seguinte, às sete horas, eu disse: “Mãe, vamos tomar os comprimidos?...” Ela abriu os olhinhos e repetiu: “Comprimido?!” Dito isso já foi abrindo a boca como um filhote de passarinho. Eu pus um comprimido e dei um pouco de água. Ela engoliu e abriu a boca novamente. Pus o segundo comprimido e dei mais um pouco de água. Ela fez um movimento de deglutição, mas não fiquei certo de que tinha engolido, porque vi algo parecido com um comprimido na sua boca. E perguntei: “Engoliu?” Ela disse: “Pronto!” Aí percebi que o “comprimidinho branco” era um dentinho solitário que sempre me confundiu quando eu lhe dava os medicamentos. 

Terminei meu turno e deixei minha mãe aos cuidados de uma amiga da família. Antes, recomendei que mamãe devesse tomar alimentos oralmente, sem introdução de sonda e expliquei que ela estava deglutindo. Saí para descansar, porque eu voltaria à noite. No meio do dia fiquei sabendo que mamãe tinha piorado, e que estava sondada e prostrada. Um cardiologista havia sinalizado para o pior, mas eu tinha esperança. Quando cheguei ao hospital no começo daquela que seria a última noite, deparei com o quadro descrito no primeiro parágrafo. 

Mamãe estava mal e eu dizia à família que ela não retornaria com vida. Sentado naquela cadeira de plástico, eu me inclinava a cada minuto para ver se ela estava bem. Não dava para saber, porque seu quadro era de extrema prostração. Às nove da noite, as demais pacientes e acompanhantes pediram para apagar as luzes, e eu não pude mais ver com nitidez minha mãe. 

Tive fome. Eu tinha na mochila um lanche que seria para a noite anterior. Mas aquela noite, na qual mamãe se internou, foi bastante agitada. Ela estava impaciente e eu teria de segurar sua mão por duas razões: afagá-la e impedir que removesse o acesso. De repente, percebi na penumbra algo estranho. O acesso soltara e o soro juntamente com o sangue havia molhado três lençóis. Foi um horror! A enfermeira veio correndo, trocou tudo e, a custo, estancou o sangue. Pensei: mamãe, que está desidratada e sem se alimentar, agora sofreu uma perda substancial de sangue e, além disso, ficou sem o soro. Isso tudo na noite anterior ao ‘triste desfecho’. 

Volto para a noite seguinte, que seria a última. Passava das nove da noite, tive fome e comecei a comer o lanche. O lusco-fusco não me permitia observar a minha mãe, mas eu espiava assim mesmo e via que ela dormia tranquilamente. Terminado o lanche, fiz a checagem de sempre: apalpei suas mãos, seu pescoço, tentei ver sua respiração, e me pareceu que algo não estava normal. Fui ao postinho e procurei uma enfermeira: olha, acho que mamãe parou de respirar. A enfermeira chegou, checou, me pediu para pegar o estetoscópio com a colega dela, auscultou e, meio assustada, já ia saindo quando a interpelei: o que acha? Ela respondeu: é melhor chamar a médica para dar certeza, mas acho que ela se foi. 

Uma hora depois a médica veio, deu o veredito, me abraçou emocionada e saiu. Um minuto depois chegaram duas enfermeiras, que me abraçaram chorosas, me disseram palavras carinhosas sobre minha mãe e me pediram para sair. Elas iam trocar a mamãe e remover seu corpinho. 

Eu saí dali meio sem ter para onde ir e resolvi me sentar no sofá numa área de descanso. Ali, fui rememorando a vida de minha mãe desde a sua juventude. A natureza indócil, difícil, sendo dobrada pouco a pouco com a idade; a vida de sofrimento com a epilepsia: muitas quedas, inúmeras quedas; a vida de oração: muitas rezas; a parcimônia alimentar: comia pouco, só pedia água e nunca pediu comida; seu rico patrimônio: as sacolinhas de meias, blusas, toucas, todas dentro das gavetas de uma cômoda; as inúmeras internações: algumas por queimadura; a gratidão: mamãe sempre agradecendo e abençoando. Paro por aqui, mas prossigo adiante. 

Enquanto eu estava naquelas ruminações, tentando escapar da última cena que seria a remoção, um barulho lúgubre, muito conhecido de quem vara noites no hospital, me trouxe à realidade. Um porta-cadáver, que é uma espécie de maca de inox com rodas de aço, vinha pelo corredor e na minha direção. Eu quis sair dali, mas não havia tempo. Foi neste momento que me dei conta da realidade. Aquelas enfermeiras do quarto 205 vinham conduzindo o carrinho, e nele havia um lençol branco cobrindo o corpinho inchado de alguém com pequena estatura. 

Ainda naquela noite, procurei uma funerária e escolhi uma urna. E com o agente funerário, deixei uma pequena sacolinha plástica contendo o ‘vestido branco’ para minha mãe. 

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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

HISTÓRIAS COM O FREIZINHO



Hoje o Frei Gabriel está completando ‘cinquenta e um anos’. Há pouco tempo, por ocasião de um retiro do qual ele participava, familiares e amigos fomos convidados a escrever um pequeno depoimento sobre a vida desse amado frade. Não de forma explicitamente autorizada, mas consentida pelo Freizinho, aqui deixo registrado o meu modesto texto.

 

São muitas as histórias que poderiam ser contadas sobre o Frei Gabriel, algumas bastante pitorescas, mas farei apenas um breve relato de algo que me parece suficiente para descrevê-lo.

Certa vez o Frei passou uns dias de férias comigo, quando eu morava num pequeno cômodo nos fundos da casa de um tio, em Mauá.  Jovenzinho ainda, pouco mais do que um menino, o freizinho parecia homem-feito dentro daquela “batina”. Conversa vai, conversa vem, resolvemos dar uma volta na cidade e depois pegamos um trem com destino a São Paulo quando ele me disse: “Eu gosto de andar com você porque eu fico mais à vontade para usar este meu hábito. Não é sempre assim, sabia?... Há quem se incomode com isso!” Fiquei lisonjeado, surpreso até, porque eu não sou o mais simpático dos ‘Moura Lima’ – pelo menos é o que dizem.

Naquele trem, o Frei me deu uma aula sobre o Oriente Médio. Na verdade, eu só queria saber por que diabos palestinos cismavam de jogar pedras em soldados israelenses. Mas ele resolveu fazer uma panorâmica e começou contando a história do povo hebreu desde seus primórdios. Ousei interromper, pedindo que ele apenas respondesse à minha pergunta. Mas pra quê... O homem ficou nervoso e me deu uma enquadrada: “Bom, se você quer saber o porquê dessa briga, então tenha calma, porque esta é a minha maneira de explicar. Preciso partir do começo pra chegar ao final”.

E foi exatamente ali, naquele trem de passageiros entre Mauá e Santo André, que me dei conta de que o nosso Biezim havia ‘crescido em estatura e sabedoria’— e brabeza!.

Na verdade, daquele hábito, que é uma espécie de ‘batina franciscana’ usada pelos religiosos, sempre gostei. Tanto é que, certa feita, estando muitos de nós de férias na casa dos pais, aprontei uma traquinagem. De manhã, enquanto o Frei dormia, catei o seu hábito, que estava pendurado na porta do quarto, vesti e saí desfilando pela casa. Todos me sorriam. Uma irmã, pensando que eu fosse o religioso, me abraçou e foi logo me oferecendo café. Até mamãe se alegrou comigo e me lascou um beijo na cacunda. Nisso, eu comecei a rir e a farsa logo se desfez, deixando a irmã tão desapontada, que ela talvez quisesse me “desabraçar”; e a mamãe também parecia querer me “desbeijar”.

E foi assim que eu pude experimentar a singular alegria de “ser o Frei Gabriel”, ainda que por apenas uns poucos minutos, mas tempo suficiente pra saber que a vida dele, embora sacrificada, é bastante recompensada por afagos, e uma delícia de ser vivida!

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sábado, 17 de fevereiro de 2024

CIDO

 


Eu precisava falar desse senhor aí da foto, porque ele é uma pessoa muito especial.

Estava eu com meus cães fazendo a caminhada de rotina quando vi uma movimentação numa rua acima da minha casa. Havia na calçada uma caçamba cheia de entulhos e, curioso, estiquei os olhos para dentro da garagem quando vi o Cido, que enchia latas de concreto enquanto seu filho manobrava a betoneira.

Ele não sabe que foi fotografado por mim; se soubesse, com certeza não iria gostar.  E, claro que ele também não sabe que estou escrevendo isto aqui. Se souber, talvez fique bravo, e o melhor mesmo é guardar segredo.

Trabalhei com o Cido por uns três anos. Foi ele quem fez a casa onde moro e fez também outra casa cuja construção acompanhei da fundação ao acabamento. Nesses anos de convivência quase diária, de planejamento e ajustes, nunca tive qualquer aborrecimento com o Cido. Claro que isso não diz muita coisa, porque eu posso tê-lo aborrecido. Vai saber...


Durante meses, anos até, eu temia começar a obra que seria esta casa onde moro. Tenho boas razões para isso e há quem concorde comigo. Há muitos pedreiros bons, honestos e responsáveis. Contudo, muitas são as histórias envolvendo obras inacabadas devido a desacertos. Felizmente encontrei o Cido, e com ele as coisas fluíram. Você, raro leitor, se é que o tenho por aqui, vai me entender.

Sabe aquele pedreiro que não pede dinheiro adiantado e só aceita pagamento de acordo com a evolução da obra? Pois esse é o Cido. Sabe aquele pedreiro que comparece ao serviço todos os dias, de segunda a sexta, entrando britanicamente às sete da manhã e saindo às quatro da tarde? Esse também é o Cido. E aquele pedreiro que está sempre bem-humorado, que não é falastrão nem gabola e não explora quem o contrata? Então, esse ainda é o Cido!

Tem mais. O Cido pega um serviço por completo, mas ele sempre abre a possibilidade de que outros “com mais prática”, segundo ele, possa fazer a parte de eletricidade, hidráulica, carpintaria etc. “Eu faço, mas se quiser chamar outro...”, assim ele diz e ainda indica o profissional. Gente, isso é raro! Estou velho, já trabalhei em construção civil e lidei com uma gama desses profissionais, mas o Cido é realmente diferenciado.

Outra particularidade do Cido: ele só trabalha de chinelos. Nunca se viu o Cido calçado de botinas, tênis ou botas durante seu labor. Ele prefere chinelas havaianas, porque “deixa os pés mais leves e livres”. Com elas ele sobe em andaimes, pisa no barro e nos entulhos, desvia de pregos, tropeça... Mas não se machuca! Só Deus mesmo pra proteger o Cido!!

Ah, tem uma história que o Cido me contou e acho que vale a pena registrar. Certa vez, ele estava num andaime, daqueles feitos com eucaliptos, em que se usa uma escada para subir ou descer. De repente, estando Cido lá em cima rebocando a parede, veio uma ventania danada. O andaime vergava e o Cido se segurava como podia. Nisto, a escada, que não estava amarrada, deslizou e caiu, deixando o Cido preso lá nas alturas. A rua era deserta, quase ninguém passava por lá, e a noite vinha.  Por sorte, depois de uns gritos, alguém veio socorrê-lo.

Bom, esse caboclo aí, trabalhador, com jeitão amineirado e meio cismado, é o Cido. O Cido é o cara!!!

FILIPE