Vivi com minha mãe os seus últimos momentos. Nunca, jamais pude
imaginar que seria eu a pessoa a estar com ela em sua hora derradeira. Uma
profusão de pensamentos me tonteava naquele começo de noite do dia 29 de
fevereiro. Mamãe inerte, respirava silenciosamente com o oxigênio no fluxo
máximo.
Eu tinha à disposição uma poltrona confortável, mas preferi uma
cadeira de plástico, porque eu sabia que naquela noite eu não poderia cochilar.
E numa cadeira menos confortável, provavelmente eu velaria o sono de minha mãe
sem que dormitasse. Naquelas horas aflitas, eu me dividia entre a mamãe e o
celular, de cuja telinha brotava um jorro interminável de mensagens, muitas não
respondidas. Eram irmãos, parentes e amigos que queriam saber como ela estava.
Eu não imaginava que aqueles seriam os instantes finais de minha mãe. Naqueles
minutos, que depois eu saberia serem os últimos, enquanto eu observava a
respiração e a temperatura da minha mãe, a minha irmã mais velha costurava o
‘vestido branco’ que mamãe, em palavras cifradas, encomendara um ano antes. As
máquinas tinham pressa e trabalhavam freneticamente: no hospital, a de oxigênio
soprando no limite máximo; na casa da minha irmã, a de costura na velocidade de
um raio. E o vestido ficou pronto no momento em que mamãe partia.
Na tarde do dia anterior, mamãe estava em casa e sua crise
respiratória agudizava. Havia um cilindro de oxigênio prestes a se esvaziar.
Procurado o fornecedor, primeiramente por minha irmã, esta não teve seu pedido
atendido; depois fui eu a ligar para a empresa e experimentei a mesma frieza do
funcionário, que, por razões absurdamente burocráticas, dificultava a entrega
dos cilindros. A pressão no manômetro diminuía a olhos vistos e nós ficamos
apavorados. Por fim, acabou o conteúdo e mamãe ficou “como um peixe fora
d’água”. Desfalecida, sua saturação caiu a níveis absurdamente incompatíveis
com a vida.
Felizmente, o posto de saúde ofereceu um cilindro com a terça
parte do conteúdo, mas suficiente para o socorro. Mamãe já se recobrava
quando chegou o doutor a pedido da mana. De longe, o médico já adiantou que o
quadro era grave e que a enferma deveria seguir imediatamente para o
atendimento intensivo. E assim foi feito.
A ambulância estacionou no terreiro de casa naquela tarde de 28 de
fevereiro, mamãe seguiu para o hospital e ficou até altas horas numa sala de
emergência, porque não havia leitos vagos. Finalmente, devido a uma
transferência, minha mãe conseguiu subir para a enfermaria, sendo acomodada num
dos leitos do quarto 205. Há mais de um dia sem se alimentar e sem beber água,
porque não tinha forças para engolir, mamãe tinha sede. Em casa, seus lábios
eram molhados com um algodão embebido e nesse momento ela erguia as mãos,
tentando agarrar uma mamadeira, que lhe era invisível. Na enfermaria, mamãe
voltou a pedir água, o risco de engasgo era real, mas decidi arriscar.
Peguei um copo de plástico com uma pequena quantidade e levei até à sua boca.
Ela sorveu sofregamente, amarrotando o copo e sem engasgar. Pediu mais, eu dei.
Ela adormeceu feliz, porque matou a sede. Na manhã seguinte, às sete horas, eu
disse: “Mãe, vamos tomar os comprimidos?...” Ela abriu os olhinhos e repetiu:
“Comprimido?!” Dito isso já foi abrindo a boca como um filhote de passarinho.
Eu pus um comprimido e dei um pouco de água. Ela engoliu e abriu a boca
novamente. Pus o segundo comprimido e dei mais um pouco de água. Ela fez um
movimento de deglutição, mas não fiquei certo de que tinha engolido, porque vi
algo parecido com um comprimido na sua boca. E perguntei: “Engoliu?” Ela disse:
“Pronto!” Aí percebi que o “comprimidinho branco” era um dentinho solitário que
sempre me confundiu quando eu lhe dava os medicamentos.
Terminei meu turno e deixei minha mãe aos cuidados de uma amiga da
família. Antes, recomendei que mamãe devesse tomar alimentos oralmente, sem
introdução de sonda e expliquei que ela estava deglutindo. Saí para descansar,
porque eu voltaria à noite. No meio do dia fiquei sabendo que mamãe tinha
piorado, e que estava sondada e prostrada. Um cardiologista havia sinalizado
para o pior, mas eu tinha esperança. Quando cheguei ao hospital no começo
daquela que seria a última noite, deparei com o quadro descrito no primeiro
parágrafo.
Mamãe estava mal e eu dizia à família que ela não retornaria com
vida. Sentado naquela cadeira de plástico, eu me inclinava a cada minuto para
ver se ela estava bem. Não dava para saber, porque seu quadro era de extrema
prostração. Às nove da noite, as demais pacientes e acompanhantes pediram para
apagar as luzes, e eu não pude mais ver com nitidez minha mãe.
Tive fome. Eu tinha na mochila um lanche que seria para a noite
anterior. Mas aquela noite, na qual mamãe se internou, foi bastante agitada.
Ela estava impaciente e eu teria de segurar sua mão por duas razões: afagá-la e
impedir que removesse o acesso. De repente, percebi na penumbra algo estranho.
O acesso soltara e o soro juntamente com o sangue havia molhado três lençóis.
Foi um horror! A enfermeira veio correndo, trocou tudo e, a custo, estancou o
sangue. Pensei: mamãe, que está desidratada e sem se alimentar, agora sofreu
uma perda substancial de sangue e, além disso, ficou sem o soro. Isso tudo na
noite anterior ao ‘triste desfecho’.
Volto para a noite seguinte, que seria a última. Passava das nove
da noite, tive fome e comecei a comer o lanche. O lusco-fusco não me permitia
observar a minha mãe, mas eu espiava assim mesmo e via que ela dormia
tranquilamente. Terminado o lanche, fiz a checagem de sempre: apalpei suas
mãos, seu pescoço, tentei ver sua respiração, e me pareceu que algo não estava
normal. Fui ao postinho e procurei uma enfermeira: olha, acho que mamãe parou
de respirar. A enfermeira chegou, checou, me pediu para pegar o estetoscópio
com a colega dela, auscultou e, meio assustada, já ia saindo quando a interpelei:
o que acha? Ela respondeu: é melhor chamar a médica para dar certeza, mas acho
que ela se foi.
Uma hora depois a médica veio, deu o veredito, me abraçou
emocionada e saiu. Um minuto depois chegaram duas enfermeiras, que me abraçaram
chorosas, me disseram palavras carinhosas sobre minha mãe e me pediram para
sair. Elas iam trocar a mamãe e remover seu corpinho.
Eu saí dali meio sem ter para onde ir e resolvi me sentar no sofá
numa área de descanso. Ali, fui rememorando a vida de minha mãe desde a sua
juventude. A natureza indócil, difícil, sendo dobrada pouco a pouco com a
idade; a vida de sofrimento com a epilepsia: muitas quedas, inúmeras quedas; a
vida de oração: muitas rezas; a parcimônia alimentar: comia pouco, só pedia
água e nunca pediu comida; seu rico patrimônio: as sacolinhas de meias, blusas,
toucas, todas dentro das gavetas de uma cômoda; as inúmeras internações:
algumas por queimadura; a gratidão: mamãe sempre agradecendo e abençoando. Paro
por aqui, mas prossigo adiante.
Enquanto eu estava naquelas ruminações, tentando escapar da última
cena que seria a remoção, um barulho lúgubre, muito conhecido de quem vara
noites no hospital, me trouxe à realidade. Um porta-cadáver, que é uma espécie
de maca de inox com rodas de aço, vinha pelo corredor e na minha direção. Eu
quis sair dali, mas não havia tempo. Foi neste momento que me dei conta da
realidade. Aquelas enfermeiras do quarto 205 vinham conduzindo o carrinho, e
nele havia um lençol branco cobrindo o corpinho inchado de alguém com pequena
estatura.
Ainda naquela noite, procurei uma funerária e escolhi uma urna. E
com o agente funerário, deixei uma pequena sacolinha plástica contendo o
‘vestido branco’ para minha mãe.
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