quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

SEXAGENÁRIO

 


Hoje completo sessenta anos e de mim já se pode dizer em linguagem bíblica: “aquele senhor de muitos dias”.

Se aos trinta anos alcança-se a ‘idade da razão’, aos sessenta, com ou sem razão, chega-se à ‘idade da libertação’. Livre, agora, da obrigação de ser polido com a aspereza e sensato com a malvadez, quero sorver com sofreguidão esses poucos dias que ainda me restam. 

Se a vida para o jovem requer coragem, para nós, os provectos, ela exige destemor e suavidade. Nesta crônica, tentarei a suavidade. 

É manhã e estou na varanda de uma simpática pousada na Serra da Mantiqueira e meus olhos alcançam as montanhas verdes e molhadas, todas cobertas de névoa. Não muito distante daqui, está a igreja matriz de Maria da Fé cujo pináculo perfura uma parte do nevoeiro. No posto, um pequeno trator estaciona para abastecer. Sobre ele há seis caboclos de chapéu  e mochila, prontos para o trabalho rural – roçar, plantar, talvez colher. 

Sento-me com o notebook, deixo a cuia de chimarrão na soleira da balaustrada e ponho a garrafa de água quente no chão (vai que cai...). De vez em quando, deixo o teclado e pego a cuia para um trago de mate. 

O trator tomou rumo com seus cablocos para roçar ou plantar ou colher. Agora encosta uma caminhonete e dela desce o  motorista, que parece mal-humorado. Olha para os lados, não achando os frentistas, ele mesmo calibra os pneus.  

Lá na frente, um homem atravessa a rua com dois cães: um preto e outro encardido, que talvez fosse branco algum dia. Por aqui, bicicletas e motos passam frenéticas. Um ônibus da Venetur desacelera, dando passagem a um assustado cãozinho amarelo. 

No posto, o frentista reaparece e atende a um senhor de chapéu e botinas trazendo consigo um pequeno galão. Este certamente não tem carro, mas tem uma roçadeira e vai abastecê-la.  

O céu ainda está nublado com muitos tons de cinza-chumbo. À noite choveu e durante esta manhã deverá permanecer “embruscado” (essa é uma expressão de minha mãe). 

No outro lado da rua passa veloz um cãozinho preto, que teria sido enxotado por alguém.  E a padaria do Tiaguinho, que fica a poucos metros daqui, acaba de tirar uma fornada de pão francês. O cheiro é convidativo para o desjejum. 

Desde bem cedo, antes de raiar o dia, ouço os canários-da-terra, que aqui são abundantes. Mas a sinfonia agora é de pardais, ainda mais numerosos. 

Subi a Mantiqueira à procura de um frio que não encontrei. Todavia, com os nossos verões cada vez mais quentes, a temperatura aqui está amena.  

Volto à rua e vejo um homem com um porrete passeando com seu cão. O cão para e começa a beber de uma poça. O homem puxa, o cão resiste; o homem insiste e o cão não desiste. Por fim o cão se rende ao homem ou ao seu porrete.

Lá na frente vem vindo alguém com uma carriola, que deve estar vendendo mandioca, mas não vou saber, porque ele virou numa esquina. Na pracinha há uma feira e aquele homem foi lá para comprar ou vender. 

A padaria do Tiaguinho acaba de desenfornar alguma coisa diferente de pão francês, que eu não sei o quê. Enquanto isso, um caminhão passa gemendo sob o peso de centenas de toras de eucalipto. Logo atrás dele, sem gemer, segue o caminhão de lixo e seus  socialmente invisíveis operadores. 

No horizonte, o nevoeiro que cobria as montes com suas matas e pastagens se desfez, mas o céu continua nublê (na expressão de minha ‘patroa’), agora num tom mais aclarado. Na rua, ao trote de um cavalinho castanho-escuro, bamboleiam carroça e carroceiro. E da igreja matriz vem um anúncio fúnebre: “Comunicamos o falecimento de (...)”. 

Deixo a rua e suas muitas surpresas e desço para o café da manhã, que nem é café, mas chocolate quente com o pão do Tiaguinho. 

É, a vida aos sessenta requer suavidade e apaziguamento. A pressa é para os jovens. 

FILIPE


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

MINHA ÚLTIMA AVALIAÇÃO

Como faço desde o início da carreira, em dezembro dou um pedaço de papel a cada aluno para que avaliem meu trabalho. Recomendo que essa avaliação deva ser anônima a fim de que possam expressar mais livremente seus pontos de vista sobre meus inúmeros erros e possíveis acertos também.  O resultado, embora doloroso para mim, tem sido frutuoso, pois a partir dele, eu me esforço bastante para melhorar a atividade docente. De início, essa “enquete” era feita no último dia de aula, mas devido à debandada prematura dos alunos, tive que antecipá-la.

No entanto, engana-se quem pensa ser isso vaidade. De posse dos papeizinhos preenchidos, costumo abri-los apenas quando estamos encerrando a burocracia. No silêncio de uma sala de aula deserta é que eu costumava desdobrar os pequenos “bilhetes”. Ali eu me pegava ora maravilhado com demonstrações de afeto de uns, ora terrificado com a violência verbal de outros. Agora, se me faço vidraça, é por que deveria confiar numa blindagem – mas ela não existe. As sibilantes pedradas que recebo costumam me estilhaçar. Contudo, continuo acreditando que esse trabalho faz parte de meu ofício. De todas as críticas recebidas, as que mais me incomodam são aquelas que desnudam meu comportamento discriminatório. “O professor dá atenção para uns, os inteligentes, e despreza outros”, muitos já disseram essa “mentira”, e parecia ser vã minha tentativa de mudar essa conduta tão ferina. No entanto, devo admitir, esse traço de minha personalidade extrapola o ambiente da sala de aula. Nas relações sociais sou bastante seletivo e confesso (não muito envergonhado) que essa seletividade me traz conforto.

Volto à “minha última avaliação” que dá título a esta crônica. Assim que peguei todos os papeizinhos, separei-os por classe e os pus em uma sacolinha para cumprir aquele ritual: ler quando estiver só. “Leu, professor?”, perguntavam-me curiosos alguns alunos no dia seguinte. Eles queriam que eu me manifestasse, que debatesse o assunto. No outro dia, cheguei e disse: “Hoje vou fazer uma coisa que nunca fiz em trinta anos de sala de aula”. Houve um silêncio, uma expectativa, parecia que eu anunciaria o dia do apocalipse. Chamei uma aluna à mesa e a apresentei à classe, dizendo: “Eu não li os bilhetes, mas a colega de vocês vai ler para nós. Vai ler tudo o que estiver escrito, até xingamentos, a menos que o pudor a impeça. Mas ela não vai ler o nome de alguém que resolveu assinar. Fiquem tranquilos”. 

A classe ainda estava silente, apreensiva, paralisada, quando uma aluna irrompeu, protestando: “Por que tem que ler pra todo mundo?!” “Porque quero! Não é anônimo? Qual o problema?...”, rebati. Ouvi dela ainda um pálido resmungo, mas a leitura se iniciou.

Por sorte minha, pura sorte mesmo, os bilhetes eram só elogios. Todos, sem exceção, me exaltavam e eu fiquei até embasbacado. No entanto, um aluno visivelmente incomodado mudou de carteira, indo mais à frente. Por fim, ganhou coragem e disse: “Posso pegar meu bilhete de volta? Eu queria mexer nele”. Respondi que até poderia, mas como os bilhetes são anônimos, não teria como. “Eu assinei, professor”, disse ele. A mocinha pegou o papel, que ainda não tinha sido lido, e o entregou ao rapaz. Este o trocou por outro e eu fiquei sem saber por quê.  

E assim em todas as salas: um aluno lia e todos ouvíamos atentos aquela que foi a ‘minha última avaliação’. Alvíssaras! Desta vez até fui tachado de chato, mas não xingado nem acusado de discriminação intelectual.

FILIPE

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

MARIANA

 


Você acaba de completar trinta anos! Ainda ontem uma “pirralhinha”; hoje uma sóbria senhora, porque tem a ‘idade da razão’, é esposa, é mãe. 

Lembro com carinho das mamadeiras no meio da noite, nas madrugadas, nas manhãs e nas tardes – todas feitas de leite com Ovomaltine. Tempos depois, veio a ‘papa-papinha’ de mandioquinha; de sobremesa, Yakult ou Danoninho, mas que você queria como antepasto. 

Lembro com saudade das manhãs preguiçosas, assistindo ao Castelo Rá-Tim-Bum na Cultura, e das tardes sonolentas, vendo Chaves no SBT, e dos fins de semana com as "fitas-cassete" da Disney, que eu pegava para você na locadora do bairro. Em tardes de sábado, costumávamos ir de trem a Santo André. As suburbanas vagas humanas comprimidas nos vagões tal qual um “formigueiro” conforme você denominava e com ele se irritava. A missa na Catedral, uma parada na banca de jornais e um passeio na livraria do shopping. Você querendo um livrinho infantil e o insensato pai dando-lhe um dicionário! 

Recordo-me de quando eu voltava da escola, noite alta e fria -- e você, pés descalços, me esperando ansiosa para tomar o chá que eu sempre trazia num copinho de plástico. Saía com o copo cheio, mas o bamboleio da caminhada fazia que derramasse uma parte na rua; ao abrir o portão, outro tanto ficava na calçada; depois teria que desviar dos afagos das cadelas Madona e Dolly, fazendo com que apenas metade chegasse até você. Dois ou três goles de chá morno já a deixavam agradecida, realizada e completa para dormir. Dali, você escalava o berço e se amoitava numa cabana de cobertores idealizada por mim para que não se resfriasse. 

Havia também as consultas e as seções de inalação no postinho. Você chorava, não queria, brigava com o inalador, mas parece que o choro fazia parte da terapêutica. 

Ah, e tinha também a creche! Eu a levava todas as manhãs, a pé, mas você queria colo. Chegando lá, você não queria entrar, mas o ‘tio Paulo’, bondoso porteiro, a convencia e você cedia. Enfim, você entrava e era recebida pela ‘tia Hélia’, a quem você detestava, não sei por quê. Certo dia, ligaram, dizendo que você estava doente e fui lá para pegá-la. Foi a única vez que entrei naquele prédio, de ambiente estranho, sem brinquedos nem paredes enfeitadas. Num cômodo havia uns colchonetes e sobre um deles estava você. Eu não disse nada, mas naquele dia compreendi as razões de seu enfado. 

À tardinha, quando ia buscá-la, eu levava uma balinha Babalu e o Pitoko que, embora de pelúcia, tinha personalidade. Genioso, o bichinho nem sempre queria papo, mas de vez em quando fazia graça também. De dentro de meu casaco, ele deixava escapar uma patinha, que você via e dizia: “Acho que estou vendo alguém aí...” Então havia um teatrinho. Eu corria com o Pitoko, dizendo que ele não queria sair do quentinho do bolso. Mas você não desistia. Corria, já um pouco brava, até arrancá-lo de mim. Aí você o acarinhava, dizendo: “Você não gosta mais da mamãe, é?... Não sente saudades de mim?! Estou chateada com você!” E, com esses afagos, você reconquistava o Pitokinho. Caminhando mais um pouco, passávamos a uns cem metros de uma sorveteria. Você olhava para lá e dizia: “Soverte, soverte, pai. Quero soverte!” Eu fingia não entender, mas você insistia. Houve vezes em que passamos lá para gelar o gogó. Mas eu dizia sempre que picolé dá dor de garganta, resfria, dá gripe... embora isso nunca a convencesse, nem a mim. 

Obrigado, Mariana, pelo ensejo. Agora é sua vez de viver essa doce saga com a Maria Eugênia.


FILIPE


sexta-feira, 5 de novembro de 2021

O PEDREIRINHO

Ele acaba de completar ‘cinquenta anos’! Ainda ontem esse mano era um rapazinho franzino, que furava buracos, amarrava ferragens, levantava muros e paredes, armava laje, cimentava, rebocava e azulejava. Com apenas dezoito anos ele ergueu a minha casa!

Olha, que tempos foram aqueles!... Era finalzinho dos anos oitenta e começo dos noventa. A inflação roía nossas economias, tornando difícil um planejamento. Mas, com o mano ao meu lado, fui em frente. Trabalhando quase sempre sozinho, ele fazia a argamassa, punha na lata e subia no andaime onde despejava a massa no caixote. Depois descia, ajeitava a masseira e retornava ao andaime com a colher de pedreiro, prumo e nível. E assim, as paredes de alvenaria foram erguidas, colunas concretadas, laje batida, telhado posto.

Por tempos, levantando muito cedo, ele atravessava parte da cidade, percorria alguns quilômetros, até chegar à obra. A comida era bem precária: arroz, feijão, carne cozida e talvez uma salada, ou nem isso. O cardápio, que eu mesmo preparava, não variava nunca. Mas ele talvez não saiba que a minha comida era ainda mais pobre. A carne eu reservava a ele, enquanto eu me virava com um ovo cozido.

O interessante é que ele nunca pediu aumento no ordenado. Combinamos um valor no começo da obra e depois as coisas foram se ajustando. Certa vez eu lhe propus pagar o valor de ‘dois sacos de cimento’ como diária. Ele se animou, dizendo que “o Chimba sempre falou que o pedreiro deve ganhar ‘dois sacos de cimento’, e que o servente pode ganhar ‘um saco’”. Fiquei contente, porque não foi preciso mais fazer muitas contas. Bastava contar os dias de trabalho e ver o preço do saco de cimento que eu pegava lá no Zé da Roleta. Então, quando eu ia acertar, ele ia nos seus guardados e pegava um pedaço de papel onde estava sua contabilidade. Nesse papel, que não por acaso era de saco de cimento, ele apontava os dias trabalhados e eu pagava.

É importante explicar uma coisa. Naquele tempo, a Votorantim monopolizava a produção de cimento e punha o preço que lhe conviesse, chegando a sonegar o produto para encarecê-lo. Mas isso mudou depois que o presidente Itamar Franco importou cimento da Grécia, fazendo o preço cair. Hoje, ainda que o cimento seja caro, o preço não se compara ao que já fora.

Mas o mano não perdia tempo mesmo. Trabalhava o dia todo e à noite ainda ia para a escola estudar aquilo que era conhecido como ‘primeiro grau’; concluído esse, fez o segundo grau. Lembro dele naquela escola, onde eu também lecionei. Nesse tempo, sua vida tinha melhorado, porque já estava trabalhando na indústria. Ele chegava timidamente e se dirigia a um professor para pegar a ficha de estudos. Não sei se por coincidência ou sorte dele, mas eu nunca o atendi.

Econômico, quase não gastava o que ganhava. Na minha memória ficou uma domingueira calça jeans que ele sempre usava. Nela tinha um desenho de um vampiro e a palavra “Vamp” alusivo a uma novela. Acho que ele tinha outras calças, mas só me lembro dele com essa.

Hoje o "pedreirinho" já não tem dessas preocupações. Estabilizado, oferece sem medir esforços todo conforto à sua família composta de esposa e três filhos – o mais velho, um futuro economista.

O que mais me impressiona nesse mano, de poucas palavras e humor cáustico, é sua sabedoria. Dentre os onze irmãos, talvez ele seja a voz mais sensata, ponderada e esperada quando surge algum impasse entre nós.

FILIPE

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

PASSAREDO


O flagrante acima é de um jacu. Essa ave esbelta e um pouco arredia costuma me dar o agrado de uma breve visita, mas que só acontece de vez em quando. Ela deve ter suas razões, e por isso não gosta de muita prosa comigo. Quando chega, pousa no telhado, olha ao redor, caminha um pouco e pula para o abacateiro, depois voa para a mangueira e de lá segue seu destino para outras e longínquas paragens.

Moro numa região bastante arborizada onde há várias espécies de pássaros. Por aqui há sabiás, bem-te-vis, rolinhas, tico-ticos, corruíras, sanhaços, canários-da-terra, tucanos, galos-da-campina, pica-paus, joões-de-barro, maritacas, anuns, colibris, asas-brancas e um sem-número de outros pássaros que não consigo nomear.

Nas manhãs de sábado, ando pelo bairro com meu cãozinho Tokinho e vamos ouvindo o passaredo. Outro dia, num desses passeios, notei algo estranho na casa de um vizinho. O homem estava com uma vara comprida – talvez um bambu, ou sei lá o quê. Ele usava aquilo para dar golpes violentos na garagem, onde estava seu carro. De vez em quando ele abaixava e enfiava o bambu por debaixo do carro, levantava novamente e socava o bambu pra lá e pra cá. Quando me viu, parou por um momento, mas voltou ao serviço. Daí a pouco sua mulher chegou, talvez para ajudá-lo ou, quem sabe, fazê-lo desistir daquela difícil empreitada que lhe roubava as forças. E ele bate com o bambu aqui, bate ali, bate lá até quebrá-lo. Nesse momento, quando ele se abaixou para pegar o pedaço do chão é que vi o que acontecia. De súbito, um jacu passou rasante pela sua cabeça e ganhou o bosque lá embaixo. Mas foi por pouco que o homem não o acertou. Furioso, ele ainda conseguiu lançar aquele pedaço de bambu, chegando arrancar uma pena da pobre ave.

A última imagem que me ficou daquela cena – que considero “obscena”, é bom ressaltar –  foi a do homem com uma pena preta na mão e olhando na direção do bosque, à procura do jacu – agora feliz e salvo.

Durante o inverno, os passarinhos sofrem bastante. Esses pequenos seres vagueiam à procura de alimentos que são bastante escassos. Tento atendê-los com uma pitangueira, duas goiabeiras e três amoreiras. Não posso fazer mais do que isso, mas ajudo um pouco. A vizinhança, porém, não colabora. Dois anos atrás, um vizinho “removeu” árvores que o incomodavam com folhas na calçada. Cortou as árvores para vender o imóvel em seguida. Vai entender... Outro vizinho fez algo semelhante àquele. Cortou dois grandes pés de lichia, que alimentavam inúmeras famílias de maritacas, e vendeu a chácara logo depois.  

Os pássaros – essas pequenas, frágeis e dóceis criaturas – são tão necessários que, sem eles, em dois anos os insetos nos dominariam, sendo extintos todos os vertebrados não marinhos do planeta. Pelo menos foi o que ouvi há muitos anos no extinto programa Projeto Minerva da rádio MEC.

“Vinde a mim as criancinhas, mas também os passarinhos!”, talvez dissesse Cristo no dia de hoje.

FILIPE

 

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

PERDAS

 

Cheguei ao ponto de ônibus às ‘seis horas e vinte e cinco’— como faço todos os dias, de segunda a sexta-feira. Há vezes em que o ônibus atrasa uns minutinhos, chegando às seis e meia. Dessa vez, no entanto, ele não atrasou.

Como sempre, uma senhora já está lá desde muito antes de eu chegar. Com cigarro aceso, fazendo fumaça e pensando na vida, ela me parece bastante simpática, mas de pouco assunto. Chego, dou-lhe o bom-dia e também fico em silêncio até o “cata-louco” chegar. 

De uns tempos para cá, no entanto, passamos a trocar algumas frases banais do tipo: “que frio!”, “que calor!”, “que seca!”, “que chuva!”, e nada mais do que isso. 

Hoje, porém, fomos um pouco além do prosaico. Eu sentia frio, mesmo com um casaco, e ela em trajes de verão.  Perguntei se fazia frio mesmo ou estava febril, e expliquei o motivo. Extraí um dente, estou com vários pontos, tomei anestésico e aquilo tudo me afetou bastante, só conseguindo dormir à noite depois de tomar dipirona.  Ela disse que não fazia muito frio, mas que não estava quente também. E disse mais. Hoje teria um dia bastante agitado. Disse que deveria sair do serviço para fazer compras etc., e que resolveria alguma coisa da família de um primo que falecera anteontem. “Seu primo faleceu? Com que idade?”, perguntei a idade, mas não o porquê (não gosto de saber a causa mortis, porque não tenho vocação para legista). Ela disse ‘sessenta e cinco’, e eu respondi que não era velho. Em seguida, ela me disse que perdeu uma sobrinha, e esta tinha 35 anos – o que me deixou bastante assustado. Dessa vez não foi preciso perguntar a idade, mas eu quis saber se o nome dela era Juliana; quase perguntei se foi covid, mas essa palavra tem causado alguns atritos e eu não queria aborrecer alguém e muito menos ser aborrecido. “Não, a Juliana é outra pessoa, e já faz dois meses que partiu; minha sobrinha era a Aline, que faleceu semana passada”. 

O ônibus apontou na curva, mas a tempo de ela ainda acrescentar algo. Disse que, há tempos, teria perdido uma irmã e a mãe, e com diferença de apenas seis meses entre uma e outra. 

Nesses ínfimos quatro minutos de prosa, foram quatro longas perdas relatadas pela minha colega passageira. Ao subir os degraus da embarcação, apenas tive tempo de dizer uma ‘platitude acaciana’ -  algo típico do ‘Conselheiro Acácio’, um personagem célebre de Eça de Queiroz: “A vida são perdas”. Ela concordou e entrou; eu entrei também. Paguei a passagem e me acomodei num banco alto perto da roleta, e ela foi para o fundo, sentando-se no banco de sempre. Nesse momento, pensei: “Ela perdeu o pai, a mãe, irmã, sobrinha, primo... E eu aqui, triste por ter perdido um dente!” 

FILIPE

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

QUEIMADAS

Quando menino, fiz uma tremenda besteira da qual nunca me esqueço. Na época em que cometi esse “crime”, eu tinha a idade de dez ou onze anos. A história foi assim. Meu pai havia roçado nosso quintal e feito umas coivaras [um amontoado de galhos] para serem queimadas a fim de preparar o solo para o plantio. Ele é quem deveria pôr fogo nas coivaras, e não um menino, que ‘não tem juízo’. 

Antes desse malfeito, eu assistia encantado às queimadas que todos faziam naquele tempo e queria protagonizar uma cena daquelas também. Lembro de um tio, irmão caçula de minha mãe, que botou fogo num roçado no sítio da vizinha tia Badica. Ele pegou uma vara de bambu com um chumaço de pano embebido de querosene, pôs fogo nesse chumaço e semeou as chamas pelo matagal. Eu olhava com orgulho (e inveja) o meu tio: pequeno, um garoto ainda, mas tão poderoso! 

Voltando ao meu caso. Meu pai não estava em casa e eu, querendo adiantar o serviço, peguei uma caixa de fósforo, risquei um palito e tentei pôr fogo nas coivaras. O fogo começou trêmulo, desanimado, chegando a apagar. Eu tive que gastar vários palitos de fósforos para convencer o fogo que aquele era um trabalho sério. Por fim, uma pequena chama se formou. Depois outra e outra e outra, que se uniram e se animaram. Em pouco tempo as labaredas devoraram as minhas coivaras e queriam mais. Então elas começaram a lamber as beiradas do mato que cercava o roçado e, de repente, uma língua de fogo mais comprida e indisciplinada alcançou uma pequena moita de capim, já fora do meu roçado. Foi o suficiente para eu perder o controle da situação e ser dominado pelo danado do fogo. 

Desesperado, usando um pequeno balde com água para apagar o fogo, comecei a gritar, pedindo socorro. Meus irmãos eram muito pequenos e nada poderiam fazer, mas o Zé Alfredo, nosso vizinho, chegou para ajudar. A essa altura, o fogo já estava no terreno da tia Badica, transformando tudo em cinzas. Sem pressa, com muita calma, o Zé Alfredo foi controlando as chamas, até apagar completamente o fogo. Ele usava um galho de folhas verdes, com o qual abafava os focos até dar cabo de todos eles. 

Aprendi a lição e nunca mais eu quis saber de pôr fogo em mato. Envergonhado, tive que ouvir por muito tempo a mofa de minhas vizinhas, as filhas do Antônio Moisés. “Então o fogo pulou?!”, perguntavam. “Pulou, uai!”, eu respondia, tentando mudar de assunto. 

Conto essa história aqui, que é verdadeira, para mostrar que havia uma “cultura do fogo” no meio rural. Aquelas queimadas eram feitas todos os anos no preparo do solo para a plantação, mas eram muito bem controladas. O que acontece atualmente não tem paralelo com o passado. Há um crime ambiental no campo e nas cidades. Nada justifica que desocupados ponham fogo nas margens das estradas, em terrenos urbanos e, muito menos, que incendeiem nossas matas.

FILIPE


sexta-feira, 10 de setembro de 2021

APANHANDO DE BOLSONARISTA

Quem tem a “fortuna” de conviver comigo já teve o infortúnio de perceber que sou uma pessoa pouco suportável. Talvez por isso meu círculo de amigos seja muito pequeno e sem que eu tenha pretensões de ampliá-lo. Meu cotidiano é bastante monótono e muitas vezes procuro um refúgio para, em voluntária solidão, fazer acertos e reparos em minha maculada alma. Todavia, estando com pessoas com quem tenho afinidade, costumo ficar à vontade para expor pontos de vista. Foi mais ou menos isso que me aconteceu dois dias atrás. 

De manhãzinha, assim que cheguei à escola, um pequeno grupo de colegas começou a falar sobre os malefícios causados por aquela figura abjeta alçada à presidência da República. Havia manifestações de caminhoneiros com obstrução de rodovias etc., e uma amiga estava indignada porque um familiar dela, que também é caminhoneiro, e mesmo sofrendo as agruras socioeconômicas desse desgoverno, defende o ogro. Até esse momento todos falávamos serenamente. No entanto, uma professora chega subitamente, entra na roda e dardeja: “Agora tudo é culpa do Bolsonaro! É só ele?!” Todos a olhamos assombrados, quase sem ter o que dizer, mas lancei um torpedo: “Sim, ele é um capeta!” Eu disse “capeta”, mas não deveria escrever isso  porque meu pai, que costuma ler este blog, deverá me passar um corretivo – não em defesa do ’capeta’ ops!, mas por que não devemos xingar ninguém, nem mesmo aquele ‘coisa-ruim’. 

Mas a mulher “chegou chegando”, como dizem os ‘modernos’, e dominou a banca. Dos que participavam da roda, três se calaram, restando apenas uma amiga e este infortunado, que sou eu. Dedo em riste na nossa direção, ela vociferava: “Vocês são comunistas, petistas e só querem bagunça. Nós não. Somos gente de bem, somos família. Bolsonaro é pela família.” “Sim, Bolsonaro gosta tanto, que já está na quarta família!”, ironizei. Mas a intrépida senhora estava disposta a continuar o entrevero, e tinha energia para isso. Disse (gritando) sobre o progresso que Bolsonaro teria levado ao Nordeste, agora com estradas e muitas outras coisas boas que só ele, mais ninguém, foi capaz de fazer. 

Eu estava apanhando bastante da bolsonarista e tentei me defender, agora atacando: “Você é professora e não conhece a história do Brasil?!” “Conheço, sim. Eu fiz direito, sabia?” “Ah, fez?... Mas não parece. Não sabe o que foi a ditadura militar, endeusada pelo genocida, nem o que foi a tortura, que ele defende...” “Então... você, que sabe muito, venha dar aula pra nós!” Nisso entrava o professor de história, a quem ela abordou para lhe dizer: “Olha, o sabe-tudo ali vai dar aula de história pra nós!!!” O professor não estava entendendo nada do que acontecia (sorte dele), mas ficou um tempinho ali, tentando dar pé do ocorrido. E eu, já agastado com tudo, encerrei com esta: “É um absurdo professor não conhecer a história recente do país. Que futuro terão nossos jovens?...” 

Não sei o que mais aborrece: se esse fla-flu entre “gente de bem” e “gente do bem” ou a indigência intelectual de nossos mestres. 

FILIPE

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

JEFTÉ NO WHATSAPP

Dia desses houve uma discussão bastante acalorada no grupo de whatsapp de minha família. Ah, é preciso destacar uma coisa: o “Irmãos Moura Lima” tem onze membros, o que faz desse grupo um gigante do gênero “irmãos”. Como em qualquer grupo, no nosso há aqueles que publicam industrialmente, há quem pouco aparece e há quem tenta falar e nunca é ouvido. Acho que estou nesta última categoria, porque ninguém dá bola para as minhas mensagens.

Dessa vez, a fervura se deu devido a uma provocação que fiz. O texto bíblico do dia era sobre um personagem emblemático do Antigo Testamento: Jefté.  Lendo aquela passagem bíblica, fiquei confuso: “Como pode um sujeito fazer um pacto com Deus para destruir uma comunidade inteira, no caso a dos amonitas...”

Segundo a Bíblia, Jefté teria sido abençoado por Deus para vencer os amonitas, mas sob a promessa de oferecer em sacrifício a primeira pessoa da qual se acercasse na volta para casa após seu triunfo. Aconteceu que, vitorioso, ele volta para casa todo pimpão, cheio de novidades para contar à sua esposa, servos, sobrinhos, cunhados... (ah, ele devia ter ao menos um cunhado, senão essa história não ficaria boa). O problema é que, chegando à casa, nem sobrinho, servo ou cunhado quis saber de Jefté. Quem partiu a seu encontro, assim que ele foi visto ainda lá no morro, antes de abrir a porteira, foi sua filha. O homem estremeceu, porque teria que cumprir a promessa, e, nesse caso, sacrificaria sua única filha. A história é mais ou menos essa e se alguém quiser detalhes, veja lá na Bíblia; está no ‘Livro dos Juízes’.

Aqui, no entanto, quero escrever sobre meu “perrengue” com a família, porque eu quis dar uma de esperto no grupo ‘Irmãos Moura Lima’, fazendo uma postagem, e me dei mal. “Quero que alguém me explique a passagem bíblica de hoje, pois está escrito que Jetfé [sic] devastou 20 aldeias em nome de Deus”, provoquei e ajuntei: “E vou cobrar isso!”

Já acostumado ao conforto do abandono – ninguém se importa com o que digo nem com meu silêncio –, dessa vez foi diferente. Um irmão me deu um pequeno chacoalhão; depois outro entrou um pouco mais firme: “Você está interpretando com a cabeça de hoje algo que foi escrito há mais de dois mil e quinhentos anos!”. Eu ainda tentava me equilibrar após essa “canelada”, quando veio um disparo mais forte de outro irmão: “Você parece ter preguicite de ler: pega o trecho de um texto e já quer tirar conclusões. Vá à fonte e leia o texto inteiro!”

É... apanhei e, em vão, tentei argumentar. Mas aprendi alguma coisa. Aprendi que Jefté não era um “miliciano tosco e covarde” como alguns por aí. Aprendi também que os amonitas não eram uns “anjinhos azuis” como eu supunha, e sim um povo cruel, fruto de uma relação incestuosa de Ló com suas filhas.

Finalmente, aprendi que o Antigo Testamento deve ser lido de forma muito cuidadosa, porque ele não é um livro de fábulas.

FILIPE

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

"ONDE VOU USAR ISSO?"

 

A pergunta que dá título a esta crônica é recorrente em sala de aula. Os “especialistas em educação” amam-na e costumam usá-la para afrontar professores em palestras para lá de enfadonhas.

De volta às aulas presenciais, com a temível ‘variante delta’ no nosso encalço, temos que driblar a situação para evitar a contaminação. Num ambiente bastante precário, muitos alunos não parecem se preocupar com os riscos e se aglomeram. É preciso, a todo momento, pedir que se distanciem, que coloquem a máscara, que ponham a máscara corretamente, e que o nariz, ainda que belo, deve estar coberto...  Um saco!

No meu caso, não bastasse a extrema preocupação com os “bons modos sanitários”, ainda preciso lidar com a fatídica pergunta: “Professor, onde vou usar isso que você está ensinando?” Pela enésima vez, tive que ouvir isso anteontem. Respirei fundo e não respondi de imediato. Naquele momento, lembrei de meu tempo na graduação e de uma aula de álgebra. Sem entender o conteúdo, eu me dirigi ao professor e perguntei muito discretamente onde usaríamos aquilo que era ensinado.  “Primeiro você aprende isso, depois pergunte para que serve”, respondeu secamente o mestre. Aprendi o suficiente para ser aprovado e nunca mais quis perguntar para que serve aquilo, mas imagino (sem ironia) que este teclado que estou usando agora não funcionaria sem recursos de álgebra avançada.

De volta ao aluno, que aguardava uma resposta, perguntei: “O que você pretende fazer na vida, qual profissão quer ter?” O rapazinho gaguejou: “Ah, acho que vou fazer mecatrônica.” “Então, para entrar num curso de mecatrônica, você precisa saber isso.” Mas o rapaz foi além: “Não, eu falo na profissão mesmo. Onde um arquiteto, por exemplo, vai usar o que você está ensinando?” Fiquei enrolado, mas não fugi da arena, e provoquei: “Você já conversou com um arquiteto? Ele faz projetos e provavelmente terá que dominar vários conteúdos. Converse com um arquiteto...”.

Como diria meu pai, eu já estava ‘entojado’ com o aluno e acabei perdendo o equilíbrio. “Quer saber? A escola tem o compromisso de transmitir conhecimentos às gerações, muitos deles milenares. E tem mais. Penso que o conhecimento, a reflexão e o questionamento são indispensáveis para que o ser humano se complete. Doutra forma, seríamos como um boizinho, que apenas precisa comer, fazer cocô e dormir.

Passados uns minutos, fui à carteira do aluno e ele me disse quase em segredo: “Não consigo entender nada disso aqui. Minha cabeça é dura, sou burro!” Fiquei compadecido. Peguei o caderno dele e passei uns probleminhas mais práticos, envolvendo compra, pagamento e troco. Fiquei impressionado com o moleque. No texto, onde eu escrevi ‘400 gramas de mortadela’, ele interpretou como ‘40 por cento de um quilo’; onde estava ‘650 gramas de queijo’ ele dizia ser ‘65 por cento de um quilo’. E assim, interpretou o problema e fez as contas corretamente. Hoje ele me disse que pesquisou sobre a tal ‘mecatrônica’ e descobriu que teria de aprender muita coisa parecida com o que estava sendo ensinado e..., pasme!, ele me pediu aulas extras!

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sexta-feira, 30 de julho de 2021

UM MESTRE RIGOROSO

Meu pai já foi professor, mas isso há quase setenta anos. Dentre seus muitos alunos, havia uma menina, que mais tarde veio a se casar com ele. Essa mocinha, hoje minha octogenária mãezinha, deve ter se encantado com o mestre pela sua cultura, honestidade, talvez beleza ou outros bons atributos, mas não pela paciência, que nunca foi o forte de meu pai. É meu pai mesmo quem diz isso, mas em outras palavras. O rigor para com os alunos costumava ser convertido em varadas. Certa vez, após um breve recreio dado aos alunos, muitos tardaram a retornar à sala de aula. Então, uma vara de “vassourão-branco” (eu conheço essa planta) deu o recado. E, não muito tempo depois, uma das premiadas com as lambadas tornaria sua esposa. Hoje, papai e mamãe festejam as Bodas de Ébano (são 66 anos de casados).

Ao se casar, meu pai parou de lecionar, mas acompanhava as lições dos filhos. De vez em quando, ele chamava um por um e vistoriava os cadernos. A minha irmã mais velha recebia sempre merecidos elogios; meu irmão mais velho, não muito. Enquanto ele checava as lições de alguém, eu ia acertando as lições em atraso, mas não dava tempo e ele não deixava barato.

Muitas vezes, antes de eu entrar na escola, via meu pai ensinando o irmão mais velho a fazer contas. Papai ensinava e depois cobrava. “Bom, eu fiz essa para você, e agora você vai fazer esta para mim. Vamos lá!” Meu irmão, todo encolhidinho, tentava, tentava e nada! Papai ficava nervoso, fazia um “zuerão” danado, mas acabava deixando o menino em paz. Eu ficava de longe, observando o irmão com aquele lápis de ponta rombuda e a outra parte mastigada.

Antes de completar dez anos, terminei o curso primário, mas sem saber fazer “conta de dividir”. Certo dia, peguei um caderno e pedi ao meu pai para me ensinar as tais “contas de dividir”. “Pois não, meu filho. Vamos lá.” Na sala da nossa casa havia uma mesa com duas cadeiras, que seriam quatro, mas o tempo deu cabo de duas e as que restavam já não gozavam de boa saúde. Papai sentou numa cadeira e me apresentou a outra. Pegou o lápis e foi calmo. “Aqui você tem tanto, que dividido por isso vai dar aquilo; depois esse tanto para aquele outro tanto vai dar isso; depois você faz isso aqui mais aquilo ali, que vai dar aquele número lá. Entendeu?” Sem entender bulhufas, murmurei: “Ah, pai, acho que entendi...”. “Bom, só se aprende, fazendo. Agora é você quem vai fazer.” Quando fui tentar fazer a conta, veio à minha mente a imagem do meu irmão com o lápis de ponta rombuda e a outra parte mastigada. Eu pensava no meu irmão e tremia e a conta não saía. Meu pai já se impacientava e aí é que eu não conseguia, mesmo. Meu pai intervinha repetidas vezes: “Esse número dividido por aquele... Quanto dá?” Eu apenas dizia: “Bom... Deixa eu ver...” Meu pai desistiu e eu também.

Queria muito que meu pai desse umas aulas para uma figura notória da República. O dito-cujo afirmou recentemente, sem ficar vermelho, que ‘menos quatro mais cinco dá nove’. Mas meu pai teria que usar a “vara de vassourão-branco” também.

FILIPE


sexta-feira, 16 de julho de 2021

O SAMBA DO MILICO DOIDO

Ninguém me pediu opinião sobre o que se passa no Brasil, como ninguém quer saber o que penso dessa vida nem da outra.  A minha opinião vale tanto quanto um flato do Bozo.

Começando pelo meu vizinho, que tinha um galo que cantava e me encantava nas madrugadas. “Socorro! Socorro! Socorro!”, ele sempre gritava lá de cima de sua árvore. Se não pude socorrer nem o meu amiguinho penado, quem pode contar comigo?... Se o galinho foi depenado e está no além, eu não sei, mas torço para que ele esteja feliz em outro terreiro, cercado de outro harém.

Sobre o presidente, que nunca me encantou, não sei se está mesmo mal das tripas. Caso esteja, não lhe desejo mais sofrimento e muito menos a morte. Quero-o, sim, são e lúcido, mas no banco dos réus, respondendo pelos seus crimes.

Esse parece ser o governo mais militarizado de toda a história da República, e os militares que o compõem revelaram-se incapazes de servir a nação em trajes civis: uns incompetentes e corruptos. Ainda assim, de forma bastante diversa das pessoas mais pensantes, não acho que poderíamos descartar as forças armadas, como alguns países já fizeram. Nosso país tem dimensões continentais e o Estado não se mantém de pé sem uma força armada que lhe dê sustentação. Contudo, não espero nada desses oficiais que emergiram na pandemia, negociando propinas na compra de vacinas. Eles deveriam ser defenestrados das forças armadas e encaminhados a uma prisão. Mas estamos no Brasil, né?...

Se fosse no Uruguai, Argentina e Chile... Esses países, cada qual a seu modo e a seu tempo, acertaram e continuam acertando as contas com militares criminosos. Lá, volta e meia, um alto oficial vai para a prisão pelos mais variados motivos. No Brasil, não. Todos os que se imiscuíram nas instituições civis, ao invés de sofrerem punição, foram promovidos ou premiados com cargos em ministérios.

As coisas não iam bem para os fardados desde que o ex-ministro da Saúde foi convocado para depor numa CPI. Nunca na história deste país um general da ativa fora intimado a se apresentar a uma comissão de civis para interrogatório. Mas aconteceu e, temeroso de ser preso, o covardão mendigou habeas corpus junto à corte suprema – também de civis. A nota do ministro da Defesa, em tom de ameaça, não tem outra função que não seja um desagravo diante desses acontecimentos. Se a CPI for valente de fato, irá  convocar muitos oficiais, da ativa ou da reserva, porque há muita coisa fétida na banda podre das forças armadas.

De forma trágica, cômica ou ridícula, a República escorrega para um abismo de sandices. Em Brasília, um cabo de polícia teve prerrogativa de comandar uma rodada de negociação com várias pessoas, dentre os quais um coronel; um sargento da reseva ocupava uma chefia no Ministério da Saúde, tendo como auxiliar (subordinado a ele) um coronel. Há tanto rolo nesse governo, que ele parece ser uma nova versão de “O samba do crioulo doido”.

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sexta-feira, 2 de julho de 2021

UMA GENGIVITE

Hoje foi um dia de profunda reflexão para mim. Pus-me a pensar no sofrimento que atinge grande parte da população totalmente desassistida. Uma simples gengivite me deixou inoperante por todo o dia e, pelo jeito, terei um final de semana bastante dorido. Essa inflamação começou lenta, mas foi crescendo, crescendo até me dominar por completo. Não consegui dormir nem trabalhar nem ler nem rezar. Dei uma enrolada na patroa, na chefia e nos alunos, mas preciso fazer amanhã tudo que ficou no atraso hoje. O problema é que não consigo ficar em pé por meros cinco minutos sem que mire o horizonte à procura de uma cadeira ou, quem sabe, uma cama para repousar.

Isso, no entanto, me deu uma boa oportunidade para refletir sobre o sofrimento das pessoas. Quanta gente está passando por perrengues muito maiores do que uma ‘’simples gengiva inflamada’’, e sem perspectiva de tratamento... Tem muita gente sofrendo, meu Deus! O que sinto não é nada.

Voltei a um passado não muito distante e me lembrei de quando fui a um asilo e vi uma senhora que chorava feito criança. O que tinha? Dor de dente. A dona do asilo (aquele asilo tinha uma dona) esbravejava com a velhinha. Fiquei indignado com aquilo e defendi a interna, mas a megera disse: “Liga não. Isso é manha dela. Ih, conheço de longa data!...” Saí de lá embasbacado, sem saber o que fazer. Noutro momento, soube que a ‘megera’, de posse de uma mangueira com esguicho, mirou um velhinho e deu-lhe um indesejado banho de água fria. As coisas, porém, mudaram e talvez tenham melhorado, porque aquele “asilo” foi fechado pela Justiça.

Nessa volta ao passado, avancei mais um pouco e cheguei à minha infância, lá na roça de Guiricema. Uma vizinha, a dona Angelina Tibúrcio, uma senhora negra, alta, esguia, e que trabalhava na cozinha e na enxada, sofria com lancinante dor de dente. Então ela pedia minha irmã mais velha, que tinha a idade de uns dez anos, para acompanhá-la até a cidade para arrancar dentes. Era uma longa caminhada, de uns sete quilômetros, em estrada de terra e sob sol quente. Na volta, dona Angelina trazia junto à boca um pano para limpar o sangue que escorria sob o calor do meio-dia.

O dentista da dona Angelina era um senhor branco, alto e muito temido pelo seu boticão. Muita gente saía de lá chorando de dor, dizendo que o homem era muito bruto. Foi da boca ferida da dona Angelina que chegou aos meus ouvidos pela primeira vez a palavra ‘boticão’. “O ‘boticão’ machuca a boca da gente!”, dizia.

Naquele tempo, parece que o ofício do dentista era apenas a ‘extração’. Pelo menos os pobres de minha terra iam ao dentista para arrancar seus mastigantes, e nunca para restaurá-los ou prevenir cáries.  

De minha parte, não posso reclamar porque já tenho agendada uma visita à dentista para a próxima segunda-feira – que me parece uma eternidade. Mas... e os sofredores sem recursos, sem assistência, sem esperança?...

 

FILIPE


sexta-feira, 18 de junho de 2021

TÉDIO!

Tédio!, é o que sinto nesses tempos tenebrosos e de escassas esperanças. Já chegamos a meio milhão de mortes por covid, grande parte delas evitável, mas o Asmodeu continua negando a ciência e combatendo os protocolos sanitários. Mas não só. Ele ainda dissemina ódio, dividindo a nação, as comunidades, as famílias. O genocida nos trouxe a cizânia e não suporto mais ouvir aquela sua voz cavernosa. Todos os meios de comunicação que não lhe são afetos deveriam “cancelá-lo” de vez, mas não o fazem. Sempre, e em todos os jornais, está aquele vomitório. Da última vez que vi o ’coisa-ruim’, o ‘inominável’ fazia apologia da morte, dizendo que todos devem ter uma arma em casa para se defender. “Eu não durmo sem uma arma”, disse orgulhoso, e completou: “Você não se garante?...”. Bom, quem não se garante é ele que precisa de uma arma para dormir. Imagine o que mais deve passar naquela mente insana numa noite de insônia... 

Mas a besta-fera quer mais, quer a vendeta. Pretende armar seus asseclas e, pior, com apoio da polícia e, pasmem, das Forças Armadas também. Não sei se um policial médio entende isso, mas quanto mais armas nas mãos de civis, mais difícil e arriscada fica uma diligência. Agora eu me pergunto: esse pessoal, que quer fazer a “revolução bolsonarista”, vai usar o arsenal contra quem? Resposta: contra os militares, os mesmos que apoiam o armamento da população! Mas por quê? Porque numa tentativa de golpe de Estado, os milicianos hão de ser combatidos por pelo menos parte das forças de segurança. Numa triste ironia, esses agentes serão vítimas de uma política fratricida antes apoiada por eles próprios. 

Então... O imbecil planaltino, que tanto fala em Deus, mas que tem medo de dormir sem sua garrucha, deveria ler mais a Bíblia. Se lesse, ia encontrar lá no Livro de Samuel a seguinte passagem: Então Saul tomou três mil de seus melhores soldados de todo o Israel e partiu à procura de Davi e seus homens. (...) havia ali uma caverna, e Saul entrou nela para fazer suas necessidades. (...) Então Davi foi com muito cuidado e cortou uma ponta do manto de Saul, sem que este percebesse.” 

Lendo o livro sagrado, talvez o “valentão das milícias” aprenderia que nem o poderoso rei Saul pôde “amarrar o gato” em paz. Em outras palavras, ninguém pode se sentir protegido por ter uma arma ou se acercar de agentes. A literatura é prodiga em histórias de pessoas que foram vítimas de suas próprias armas ou de seus seguranças. Uma arma é muito eficaz para atacar, e não para se defender com ela. Simples: quem ataca surpreende; e quem é surpreendido nem sempre consegue se defender. 

Enfim, fico triste, entediado e desesperançado ao perceber que o Asmodeu não é uma única pessoa, mas uma legião.  São muitos os “asmodeus” que pensam e agem como aquela triste figura, e alguns deles estão no meu entorno. E no seu entorno também, raríssimo leitor. Só espero que você não seja um deles. 

FILIPE 

sexta-feira, 4 de junho de 2021

MELQUÍADES, O DESERTOR

No começo dos anos oitenta eu prestava serviço militar numa unidade de cavalaria em Juiz de Fora. O presidente da República era João Figueiredo, um general cavalariano de maus modos, tosco, mas nada que se compare ao “Cavalão” que hoje está no posto. Embora vivêssemos os estertores do regime militar, a atmosfera política era bastante tóxica. Gilberto Gil, Caetano Veloso entre outros eram vistos com desconfiança, e Chico Buarque foi tachado de subversivo por um tenente numa palestra.

Havia naquela unidade militar uma sala em cuja porta estava afixada uma plaquinha em que se lia “xadrêz” – assim mesmo: com o desnecessário acento circunflexo. Eu tinha curiosidade de entrar naquela sala, queria ver como era a famosa ‘’cadeia’’. Um dia, na companhia de um colega, entrei lá para fazer alguns reparos como reboco e pintura. Passamos pela porta com a tal plaquinha e à esquerda havia outra porta, de aço e pesadíssima, que dava acesso ao ambiente. Dentro da cela havia outra salinha, muito estreita e escura, denominada solitária, e onde ficava preso político. Como eu não sabia o que era ‘preso político’, não me importei com a tal ‘solitária’ e segui fazendo meu serviço com o soldado Luís Carlos. Rebocamos e começamos a pintar a cela: eu passava cal e ele tinta. Não sei por quê, mas nos desentendemos e começamos uma guerra de tintas, fazendo uma enorme lambança. Quando vi que eu estava perdendo a parada, porque ele me jogava tinta enquanto eu atacava de cal, tentei pegar aquela tinta e jogar na cabeça dele. Com os olhos empapados, abaixei e tateei o balde. Depois vi que não era balde, mas o coturno de alguém. “O que é que vocês estão fazendo?!” Era o major, comandante da unidade, que nos abordou. Não sei de meu colega, mas eu fiquei gelado e sem ter como disfarçar, pensei: “Pintei essa cadeia pra eu ficar nela!...” O major, porém, não me puniu. Disse alguma coisa em desaprovação, sorriu e saiu. Um caso raro de militar sensível, que declinou de seu poder quase imperial, poupando dois soldados bagunceiros, mas trabalhadores. Caso fosse o subcomandante, a “solitária” teria sido nosso destino.

A cadeia, depois de reformada, foi abrigo do protagonista desta crônica: o soldado Melquíades. Esse caboclinho, que veio lá dos cafundós, deveria prestar serviço militar na minha unidade, mas ele não se apresentou. Então uma ‘patrulha’ foi encarregada de encontrá-lo, onde quer que estivesse, e trazê-lo ao quartel, observando a máxima: “ordem dada, missão cumprida”. Essa missão, no entanto, estava difícil de ser cumprida porque o Melquíades embrenhara-se no mato e ninguém o achava. Foram várias tentativas para, enfim, escoltarem-no e o conduzirem àquele xadrez.  Em geral, presos devem ficar isolados, mas eu visitei o Melquíades mais de uma vez. Quando o vi, fiquei pasmo. Mal vestido, talvez sujo – ele estava de pé, com os olhos parados, parecendo um espectro. Chamei-o pelo nome e, embora tentasse evitar contato visual comigo, ele atendeu. Conversamos um pouco. Ele falou de seus dramas, de sua família etc. Eu perguntei se ele sabia rezar. Não, ele não sabia rezar. Então eu escrevi o ‘pai-nosso’ num papel e ele aceitou, mas acho que ele não sabia ler também. Passados uns dias, Melquíades foi expulso do Exército e nunca mais o vi.

FILIPE


sexta-feira, 21 de maio de 2021

QUE TEMPOS!

O celular me acordaria às 4h45min, mas bem antes já estou desperto e desarmo aquela “granada” cujos estilhaços despertariam minha companheira.  

Levanto-me. A fria madrugada vai se despedindo e esquecendo para trás uns restos de escuridão. Gela lá fora, então eu me aqueço com um pouco de chimarrão antes de ir para o trabalho.

Saio exatamente às 6h15min, caminho durante oito minutos e às 6h30min chega meu ônibus. Entro nele e dou uma cédula de cinco reais ao motorista, que me dá sessenta centavos de troco em duas moedas. Passo pela roleta enquanto o ônibus ronca e se arranca e quase me derruba. Cambaleio até um banco e sento nele, mas uma das moedas me escapa e, disfarçadamente, me ponho a procurá-la, em vão. Mesmo enxergando mal com os óculos embaciados devido à máscara, vejo com alívio que perdi a moeda miudinha; a mais gordinha está a salvo.

Ajeito-me no banco e tento pensar noutras coisas para esquecer a moeda. Como não tenho conseguido ler, aproveito para divagar, meditar ou refletir nesses dez minutos de viagem. Em geral há silêncio, o que muito me apraz porque detesto ouvir falatório logo cedo.

Mas dessa vez não há silêncio. No banco de trás um casal deita falação sobre política, e fala alto, tonitruante. Um diz algo e outro concorda, de forma que vou reproduzir trechos daquela fala sem destacar os personagens, e farei daquilo uma gororoba. Ao serviço.

“Ficam falando mal de nosso presidente, mas ele não tem culpa de nada, meu Deus.” “Isso mesmo. Os chineses criaram o vírus e depois a vacina. Vê se pode?...” “Aí, nós pegamos o vírus e pagamos pela vacina...” “Nosso presidente é muito bom. Eu gosto muito dele e, se dependesse de mim, ele nunca sairia de lá.”  “É, mas vai ter eleição e não sei se vai dar pra ele ganhar, não.” “O Lula tá na frente, mas não vai ganhar.” “Sei não... O povo é burro, não lê nada!” “Ah, mas se o Lula ganhar ele não vai levar, e sabe por quê?” “Por quê?...” “Porque o Boçonaro tem uma ‘peque’. Sabe o que é ‘peque’?” “Não...” “Então... ele tem essa ’peque’ e com ela, ele vai convocar o Exército pra tomar conta do Brasil!” “Ah, que bom. Com o Exército, não tem pra ninguém. Os soldados vão tomar conta da rua e vão acabar com a bandidagem toda.” “Vai mesmo, porque a polícia... coitada da polícia, não consegue fazer nada! Um policial ganha muito pouco e não vai se arriscar pra pegar bandido. Mas o exército, sim, vai pôr tudo no lugar certo. Ah, se vai...” “E o Supremo, será que vai deixar nosso presidente agir?” “Ah, o Supremo é petista, mas o Boçonaro vai dar um jeito naqueles comunistas também. Minha fia, com o Exército não tem pra ninguém! E tem a Marinha também e a outra lá, aquela que tem avião.” “Ah, sei, a Aeronáutica. Ela pode jogar umas bombas nessa gente besta que quiser reagir, né mesmo?...” “É, mas é perigoso eles acertarem a gente aqui, que não tem nada com isso.”

Enfim, minha viagem chega ao fim. Não a deles, que continuam animados com suas lucubrações.  

FILIPE

sexta-feira, 7 de maio de 2021

SAUDADE DA CHUVA

 

Meu Deus, que tempos ingloriamente secos e empoeirados são esses?! Não chove mais como antigamente... Tenho saudade da chuva, do barro no quintal ou na estrada, do cheiro de terra molhada.  Tenho vontade de voltar a sujar os sapatos e depois tirar os sapatos; de pisar descalço na lama e depois limpar os pés no capim molhado. 

Saudade dos tempos de menino quando voltava da escola e pulava nas poças d’água da estrada, que nos molhava e nos sujava. E tinha medo da bronca em casa, e a bronca não faltava e era severa. Saudade da roupa suja e da bronca também. 

Saudade dos tempos de adolescente quando – nós que morávamos na “roça” –  íamos sábado à noite para a “rua”. Saíamos de casa à tardinha sob a ameaça de um temporal, que nunca falhava. Por vezes a chuva nos obrigava a voltar para casa já na metade do caminho. Noutras vezes não chovia enquanto íamos, mas a volta era molhada. Naquele tempo, famílias inteiras desciam pela lamacenta ‘estrada velha’: os “grã-finos” a cavalo ou de charrete; nós, a ralé, a pé. Dentre nós, os pobres, as moçoilas eram bem mais previdentes. Elas iam descalças e levavam os sapatos numa sacolinha plástica. Bem próximo à cidade, paravam na “biquinha”, que era uma fonte à beira da estrada, lavavam os pés para, enfim, se calçarem. 

Nos tempos em que eu frequentava o “ginásio”, também sofria com as chuvas. Se o tempo estava seco, dava para ir de bicicleta, chegando à escola todo empoeirado, mas sem atraso; com chuva, no entanto, era um pouco diferente. A bicicleta ia acumulando barro nos para-lamas até que não conseguia rodar mais. Tudo começava com um barulhinho, que ia aumentando aos poucos até que a coisa encrencava. A roda travava e a bicicleta que me levava teria que ser levada por mim. Às vezes eu tinha paciência, pegava um pedaço de pau e desobstruía a roda, parecendo que ia dar certo. Poucos metros adiante, porém, a ‘magrelona’ pegava pirraça novamente, empacando de vez. 

Certa feita, quando eu voltava da escola depois de uma chuva, a bicicleta negou-se a enfrentar a lama. Acho que nunca falei para ninguém, porque tenho vergonha disso, mas xinguei minha bicicleta de uns nomes feios (longe do papai, é claro, eu xingava e bastante) e a joguei fora. Furioso, dei-lhe um empurrão ribanceira abaixo, e ela obedeceu humilhada. Segui meu caminho, mas quando já estava bem longe, resolvi voltar e pegar minha “companheira” de volta. Pensei: “Coitadinha, ela sempre me foi fiel e não é por um pequeno desentendimento que vou abandoná-la agora”. Voltei e fizemos as pazes. Limpei suas rodas, os para-lamas e voltamos serenos para casa – agora sem exigir nada dela nem ela de mim. 

Hoje não vou mais para os encontros de sábado na praça de minha cidade, não ando a pé na ‘estrada velha’, não vou às aulas no ginásio, não paquero as moçoilas com seus pés descalços e nem sequer tenho bicicleta. Mas tenho muita saudade da chuva. 

FILIPE

sexta-feira, 23 de abril de 2021

AUSÊNCIAS

Eu estava passeando com o Tokinho, meu cãozinho, quando vi aquele homem em sua casa. As mãos impacientes no gradil da varanda pareciam denunciar o atraso de alguém que deveria chegar, e um olhar displicente caía sobre a rua ensolarada, numa seca manhã de outono. Nunca o havia visto, embora há muito o conhecesse de nome e de histórias. Quando ele me avistou e notou que eu o olhava, virou-se disfarçadamente para dentro, como se alguém o chamasse. Mas em casa não havia ninguém além dele. Naquele momento, ele estava só.

Continuei caminhando devagar e parei em frente ao portão, que estava semiaberto. Assim que ele me viu de perto, nós nos cumprimentamos. Então ele deu alguns passos em minha direção e parou.  Nesse momento, eu quis me certificar de que ele fosse o tal senhor que eu conhecia pelo nome de Fiori. “Sou eu mesmo”, ele me respondeu acrescentando os pedaços que faltavam para completar o nome.  “E aquela senhora que sempre fica aí, na varanda?”, perguntei meio temeroso da resposta. “Ah, ela é a minha ‘patroa’, mas agora está na casa da filha. Aqui ela era bem cuidada, mas essa minha filha resolveu levá-la pra passar um tempo lá. Então eu fico aqui, sozinho, mas à noite vou pra lá também”. Após esse início de conversa, o seu Fiori, parecendo ter se afeiçoado a mim, resolveu contar um pouco de sua vida.

“Rapaz, eu moro aqui há mais de 20 anos, mas a vida inteira eu trabalhei no sítio, com um mesmo patrão. Depois eu peguei a danada da ‘maculosa’, que me deixou como morto. Fiquei muitos dias prostrado. Alguém poderia me puxar pela orelha, arrastar e me jogar no rio, que eu não dava conta disso. Eu não prestava para nada, então saí do sítio e vim morar aqui. Depois eu melhorei, graças Deus, e não quis mais saber de trabalhar em sítio. Aqui eu trabalhei muito mais do que lá: fiz essa casa, trabalhei em dois empregos, mas ultimamente eu parei com tudo. Tenho que cuidar da Maria, sabe... Eu gosto daqui, mas fico triste sem ela. Eu choro, sabia?... Tenho que arrumar sempre alguma coisa para fazer, senão fico muito aborrecido. Ela ficava ali, na cadeira dela, quietinha, sem reconhecer as pessoas. O alimento tem que ser na seringa, e precisa de gente com paciência para cuidar dela.  Eu sei que ela sente a minha presença, então gosto de ficar perto dela para que ela não se sinta sozinha.”

Eu ouvi o seu Fiori e ainda quero ouvir mais histórias dele. Após esse breve relato, ele me disse que estava esperando um pedreiro para uns reparos na casa. Então eu me despedi e continuei minha caminhada. A alguns metros acima, eu queria ver outro amigo. Dessa vez, contudo, a casa do seu Benedito, que fica sempre aberta e com várias pessoas na varanda, estava fechada. Então eu não pude ver o seu Benedito e nem o verei mais. Ele não quis esperar a sua festinha de 94 anos, que seria em agosto.

FILIPE

 


sexta-feira, 9 de abril de 2021

O DIÁRIO DE CAROLINA

 


13 de junho de 1958

“...Vesti as crianças e eles foram para a escola. Eu fui catar papel. No frigorífico vi uma mocinha comendo salsichas do lixo.
Você pode arranjar um emprego e levar uma vida reajustada.
Ela perguntou-me se catar papel ganha dinheiro. Afirmei que sim. Ela disse-me que quer um serviço para andar bem bonita. Ela está com 15 anos. Época que achamos o mundo maravilhoso. Época em que a rosa desabrocha. Depois vai caindo pétala por pétala e surgem os espinhos. Uns cançam da vida, suicidam. Outros passam a roubar. (...) Olhei o rosto da mocinha. Está com boqueira.
...Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão é mais feroz que o racional. É o terrestre. É o atacadista.
A lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um fato que alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci o rei dos juízes que é Deus. Foi em janeiro quando as águas invadiu os armazens e estragou os alimentos. Bem feito. Em vez de vender barato, guarda esperando alta dos preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem.
Hoje estou lendo. E li o crime do Deputado do Recife, Nei Maranhão. (...) li o jornal para as mulheres da favela ouvir. Elas ficaram revoltadas e começaram a chingar o assassino. E lhe rogar praga. Eu já observei que as pragas dos favelados pegam.
... Os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria.”


Acima está um fragmento de “QUARTO de DESPEJO – Diário de uma favelada”, obra icônica da mineira de Sacramento, Carolina Maria de Jesus, publicada por Audálio Dantas em 1960. O editor teve a sensibilidade de manter a grafia original da autora, que estudou apenas até o segundo ano primário.

Li “Quarto de Despejo” nesses dias e me veio uma forte lembrança dos tempos em que eu trabalhava nas Lojas Americanas de Juiz de Fora, lá no começo dos anos oitenta. Todos os dias, caminhões carregados encostavam no calçadão e sua mercadoria subia para o depósito por um elevador. À noite, as caixas de papelão desciam para a calçada e uma senhora com suas crianças pegavam aquele material para vender. Na calçada havia também uma caixa plástica onde se depositavam restos de alimentos do restaurante da loja. Bom, não vou descrever essa cena.

Carolina Maria de Jesus voltou a ser notícia nesta semana. Desta vez, um jornal publicou matéria em que três de suas netas vivem num “Quarto de Despejo – 2”, assim denominado por elas próprias, tal a penúria em que se encontram.  

Termino com Chico Buarque:
“Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo

FILIPE



sexta-feira, 26 de março de 2021

TURBULÊNCIAS NO PARAÍSO

Dia 20 de março fez um ano que tivemos de mudar às pressas para fora dos “muros da cidade”. A voraz pandemia, que apenas começava, obrigou-nos a essa aventura, que depois se revelou prazerosa. Morar em região montanhosa, cercado de vegetação, ar limpo e brisa noturna não é algo trivial. Aqui há dessas coisas, e há mais: tenho mangueiras que me dão frutos a seu tempo e sombra a todo tempo, e onde quero amarrar uma rede para as tardes preguiçosas.

E tenho bons vizinhos também, cada qual vivendo na quietude de seu canto. Uns criam galinhas, outros cães, outros nada. Não crio galinhas, mas tenho cães que ladram sem parar. Mas a ‘turbulência’ do título não é por conta das matilhas. 

Tempos atrás tive que comparecer a uma DP como testemunha de acusação contra um sujeito que soltava rojões de madrugada por causa de um galo. O simpático garnisé não entendia que o vizinho protestava e continuava sua cantoria apesar dos estrondos. O “fogueteiro” não se deu por vencido e apelou: antes das seis da manhã, uma bomba fez-se ouvir. Como consequência disso, houve boletim de ocorrência, intimação etc. Contudo, voltou a paz para aqueles lados.

Da última vez, embora sem rojões nem boletins, houve um pequeno entrevero entre dois vizinhos, de quem sou amigo. “Meu parente mais próximo é o meu vizinho”, diz a sabedoria popular, e eu costumo levar isso em conta.  Dessa forma, prefiro ficar “de boa” com a vizinhança, sempre evitando qualquer mal-estar.   

Meu vizinho, o protagonista desta crônica, tem muitas galinhas, cuida muito bem delas e não as mata, o que me deixa contente. A vizinha também tem lá as suas galinhas e delas aproveita apenas os ovos. Mas houve entre eles um desacerto, que não sei bem os detalhes. Ela nervosa, ele também; ela dizendo que ele tem muito bicho e que tem vizinho reclamando; ele dizendo que se alguém reclama, que fale com ele etc. Como há “vizinhos reclamando”, eu me vendo nesse torvelinho, quis passar a limpo a minha parte e procurei o rapaz na manhã seguinte. Ele estava lidando com as ‘penosas’ e parecia não querer papo comigo, mas insisti para que viesse conversar.

Ele chegou bastante desconfiado, pôs o balde com o milho no chão, coçou a cabeça e me retribuiu meio a contragosto o bom-dia. “O que está acontecendo?”, perguntei. “Nada”, respondeu. “Nada?!”, insisti. “Me falaram que um vizinho está reclamando de minhas galinhas e eu falei que é pra falar comigo. Foi isso”, respondeu agora de forma satisfatória. “Pois bem, se o vizinho sou eu, não há reclamação alguma. Gosto do senhor e tenho enorme carinho pela vizinha também. E quero deixar claro que sou inocente nessa questão”. Ele desanuviou o semblante e até ensaiou sorrir, mas fechou-se novamente e disse:  “Olha, eu fiquei bravo mesmo, porque não sei quem reclamou e disse que era pra falar comigo. E sabe de uma coisa?... Eu mandei todo mundo tomar no ‘copo’!” “Ah, disso aí não sabia, mas eu não vou tomar no ‘copo’, porque não tenho a ver com isso, né?...”  E assim parece que ficou resolvida a questão. 

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sexta-feira, 12 de março de 2021

TIZIU


Vou falar do Tiziu, mas só no final da crônica. Se eu fosse você, pulava logo para o último parágrafo, porque no miolo desta só tem pedreira. 

Eu estava feliz com o retorno à sala de aula. Havia poucos alunos, mas valia a pena devido ao interesse deles. No entanto, outra onda maligna da covid nos fez retornar ao trabalho remoto e, para que eu não ficasse tão improdutivo, quis seguir o exemplo de uma amiga que comprou uma lousa branca e dá aulas em casa, usando as mídias. 

Fui à cidade, que estava quase deserta em razão do lockdown, e me dirigi a uma papelaria onde o atendimento se dava por uma janela. Havia umas três ou quatro pessoas à minha frente, mas eu não tinha pressa. Peguei meu jornal e comecei a ler, como sempre faço em ambientes com estranhos. Eu tenho dessas. Se não conheço ou não tenho afinidade, prefiro ler a forçar uma prosa. 

Chegou, então, um sujeito falante, puxador de assunto, a quem cumprimentei sem muita vontade. Animado, ele começou com esta: “A que ponto chegamos, hein?” “É... a que ponto chegamos!”, concordei, mesmo sem saber que ‘ponto’ era esse. Pensei na pandemia, que batera mais um recorde de óbitos. Pensei na carestia, no desemprego. Mas não. Ele se referia ao comércio fechado – que nem estava fechado. Bravo, ele queria que tudo ficasse aberto. E começou a falar mais alto enquanto ganhava apoio dos que estavam na fila. “E o supremo, o que você achou daquilo?”, provocou. “Eu jogaria uma bomba lá”, um respondeu.  “É brincadeira...”, disse outro. “Vou te contar... eu não aguento mais essa palhaçada. Queria que um sniper acertasse a cabeça do Lula!”, interveio um terceiro. 

Uma carga elétrica percorreu-me a espinha e senti o curto-circuito na garganta. Quando me dei conta da situação, eu já estava no fogo. “Tem que acertar é a cabeça do Bozo, aquele fdp”, esbravejei com todas as letras e sem medir riscos. Pela primeira vez na vida usei essa expressão e ela saiu tonitruante. Na hora, até gostei, mas depois me senti mal com aquilo. Não xingo, não gosto de ouvir xingamentos, e muito menos na quaresma. Mas saiu... fazer o quê?... Os meus companheiros de fila, talvez ofendidos, calaram-se ou mudaram de assunto. 

Não dá para defender um genocida responsável pelos muitos milhares de mortes evitáveis nessa pandemia. Mas o Belzebu tem algo mais importante a fazer. Ele quer assegurar ao “cidadão de bem” acesso a até 60 armas de fogo, mas não garante vacina para o povo. Resumindo: quem preconiza a morte jamais promoverá a vida. Agora vamos ao cãozinho, que está me esperando. 

O Tiziu aprontou das suas anteontem. Pulou uma cerca e se atracou com um ouriço, que lá em Minas nós conhecemos como “luís-cacheiro”. Mas ele perdeu a briga. Foram tantas as agulhas enfiadas na boca, no peito e nas patas, que não sei como sobreviveu. Sobrou para mim tirar aqueles espinhos, que me deu um baita trabalho. Só espero que o moleque tenha aprendido a lição e nunca mais se meta à besta com “luís-cacheiro”. 

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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

ONANISMO PEDAGÓGICO

 

O título pode chocar os leitores mais pudicos, se é que os tenho, mas não achei palavra melhor para traduzir meus ânimos nesses tempos pandêmicos.

Começo falando sobre algo ocorrido nesta semana e que me deixou desconcertado, isto é, a meio caminho entre a vergonha e a ira. Fiquei envergonhado porque ao longo de trinta anos como professor, nunca fui repreendido por um superior sem que este não recebesse a devida réplica; desconcertado porque fui admoestado e sem condições de me defender; irado porque há um plano malévolo de doutrinação de professores orquestrado por uma elite que desconhece a escola pública. 

Ano passado, durante todo o período de teletrabalho, fomos obrigados a assistir a inúmeras videoconferências, teleconferências, palestras, monólogos e quejandos. Neste ano, apesar do risco de contaminação, fiquei mais tranquilo porque me senti livre daquelas amarras. Mas descobri que não estou liberto. Explico. 

De volta à sala de aula, sem alunos, e com vontade de exercer a docência, encontrei uma colega em início de carreira com quem comecei a desenvolver um trabalho conjunto.  Pegamos o material pedagógico e começamos a planejar, já que dividiremos algumas séries do ensino médio. Foram vários dias revendo conteúdos, resolvendo exercícios, discutindo a melhor forma de abordagem etc. No embalo, esqueci de que havia uma videoconferência da qual eu deveria participar como ouvinte. A “chefe” chegou e perguntou: “Não está assistindo à videoconferência?” Eu disse que não, que havia esquecido... (menti). Mas ela foi incisiva: “Não pode deixar de assistir!” Sem defesa, resolvi atacar: “Essas VC nada me acrescentam, é tudo enrolação! Já aqui, estudamos, planejamos, produzimos”. A “chefe”, no entanto, não se deu por vencida e rebateu: “Tem que assistir, porque todos assistem e sou cobrada!” Finalmente cedi, mas atirando: “Por você, e apenas por você, vou assistir à reprise. Mas essas ATPCs são um lixo!” A professora se foi e eu fiquei perturbado com o episódio: primeiro, porque tenho muito carinho por ela; segundo, porque ela estava apenas fazendo o seu trabalho. 

Terminado o expediente, voltei para casa cansado, chateado, bastante maltratado pela situação. Então abri o computador e me dei ao sacrifício de assistir à malfadada teleconferência, desta vez com expressões floridas como “trilhas de aprendizagem” e “transbordamento”. Pernósticos, esses atores não se cansam de inovar com a melosidade de “um beijo no coração de todos e todas”, ou com as palavras da moda: “protagonismo”, “galera”, “ressignificação”, “engajamento”, “inovação” e a indefectível “resiliência”. Ah, e tem as expressões inglesas, que não sei falar nem escrever. Eles querem ser chiques, mas são bregas, e talvez não saibam que antigamente, quando se aprendia português de verdade, a professora citava o ‘anglicismo’ e o ‘galicismo’ como os principais vícios de linguagem denominado ‘estrangeirismo’. 

Após assistir ao vídeo, com duração superior ao de um longa-metragem, encaminhei relatório com um comentário bastante cáustico, mas verdadeiro: “Não conheço professor com alguma argúcia e pensamento elaborado que aprecie as atividades da EFAPE”. 

Neste momento em que a pandemia de covid atinge o pico de internações e mortes, o governo decide pela volta às aulas presenciais. Os onanistas da EFAPE, aqueles das palestras enfadonhas, estão a salvo da contaminação; já os professores não terão melhor sorte. 

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O GRANDE ENCONTRO

 


Sim, este foi para mim um grande encontro. Maria Eugênia veio conhecer seu avô após sete meses de longa espera. Ela chegou numa ensolarada tarde de sábado, bastante cansada de uma viagem que deve lhe ter sido interminável. Assim que o carro estacionou na garagem, fui ao seu encontro, não sem uma pequena preocupação: bebês são sinceros demais e costumam afastar estranhos. Eu era um estranho ali e ela deveria me dar uma bicuda logo de cara.

Chegando, cumprimentei os pais e me dirigi àquela por quem tanto ansiava. Apertei a maçaneta e abri a porta do carro. Ela me olhou enigmática, mas não se esquivou. Apresentei-me solene, beijando-lhe a ponta de um dedinho e a abençoei. Em seguida, tentei destravar o cinto para tirá-la, mas o cinto não destravava. Então a ergui por sobre o cinto e, com grande contorcionismo, consegui içá-la sem que se tocasse o teto. Entre assustada e curiosa – mais curiosa do que assustada – ela me olhou fixamente mais uma vez e avaliou a situação. Cansada que estava, cedeu e se aninhou no meu colo – para júbilo meu e espanto de alguns.

Com esse pequeno triunfo, subi apressadamente a escada e a levei até a varanda. Eu quis mostrar o arvoredo, as montanhas, o horizonte dourado daquela tarde irrepetível, mas ela preferiu olhar para meus óculos, quis agarrá-los, torcê-los.

Nesse dia Maria Eugênia me trouxe de presente um passado não muito distante. Ela me levou ao tempo em que eu cuidava de uma bebê igualmente fofa e que hoje é sua mãe. Mas não só. Ela me levou para mais longe ainda. Fui transportado para a casa de meus pais quando meus irmãos mais novos – cada qual a seu tempo, é claro – eram bebês como esta que eu trazia nos braços agora. Lembrei-me vividamente daqueles meus irmãozinhos – talvez uns sete – dos quais ajudei a cuidar. Os bracinhos roliços e torneados; os pezinhos redondos, quase esféricos; os dedinhos rotundos como batatinhas; os gestos erráticos; as mãos inquietas; os olhos curiosos; a impaciência com a mamadeira que nunca fica pronta (...). 

Ah, a experiência de ser avô é indescritível, e quem define bem esse estado de graça é um irmão, dono de um rico patrimônio de quatro rebentos: “Ih, é muito bom ter netos!” 

A minha cronológica traz algo bastante curioso. Três decênios me separam do nascimento de meu pai, e com três decênios tive minha filha. Explicando: papai tinha 31 anos quando nasci e eu tinha 30 anos quando minha filha nasceu. O mais curioso, contudo, é que meu avô paterno tinha 58 anos quando eu nasci; e com essa idade eu tive minha neta. Um “breve” período de 116 anos separa os nascimentos de Sebastião Lopes e Maria Eugênia, e na metade exata desse intervalo eu vim ao mundo. Então posso antever o que serei para a Maria Eugênia: um velho! Porque o meu avô Sebastião, de cabelos brancos, botinas de couro cru, chapéu de lebre e dente de ouro, foi o primeiro “homem velho” a cruzar minhas veredas.
 

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