sexta-feira, 26 de julho de 2013

NO RANCHO DAS MARTINS




A experiência de se estar ali é singular e de nada adianta eu tentar descrevê-la, pois jamais se conseguirá transmitir tão grande contentamento. A ideia de se construir num local inacessível, ermo e sem vizinhos pode ter sido um delírio, conforme muitos avaliam; mas, para este que vos escreve, foi uma divina inspiração.  Então, um modesto ranchinho foi erguido num sítio no local exato onde vivera o elo que une dois majestosos troncos familiares. E permanecer ali por algum tempo é respirar um pouco de sua história; é contemplar os montes, o céu estrelado e a melodia da fonte conforme fizeram, naquele passado distante, as Martins – minhas ancestrais musas. Agora, pernoitar ali é mágico. É uma “experiência cósmica”, com licença da expressão típica dos esotéricos, esses “poetas da fumacinha”.

Deixemos aqueles “poetas” com seus mantras em suas tendas e voltemos para o rancho, que é o lugar mais adequado para refletir sobre a vida presente, passada e futura. Para tanto, num prazeroso exercício mental, transponho-me para seu interior e já me encontro sentado num toquinho de madeira defronte a um rústico fogareiro a álcool, formado pela junção de alguns tijolos e uma latinha de alumínio recortada. Uma panelinha com água para o chimarrão já arde sobre a chama. Coisa simples, pra gente simples como nós: você e eu, se é que ainda está aí. Enquanto isso a buliçosa fonte cochicha com sapos, grilos e toda aquela “gente” notívaga lá em baixo. Murmúrio esse que embala nosso sono: meu e de uns bovídeos que costumeiramente me acompanham nestas bucólicas visitas.

Agora, já estou tomando o chimarrão e tento ler um livro de Saramago segurando uma lamparina a querosene, que me tem sido muito útil na escuridão das horas em noites que por aqui me aporto. Presente de um irmão, grande companheiro, erudito, mas um verdadeiro espadachim com as palavras.

O dia não tarda e parece vir apressado, rolando pelas montanhas, a fim de assumir seu posto nessa incessante troca de turno com sua velha companheira. A noite finda cansada e quer repousar. Também sinto certo cansaço e volto ao quarto. Recosto-me na carcomida cama, que tenho como um troféu e que meu pai diz ser de ipê preto, não de cabiúna conforme insistem alguns entendidos. Ela, que pertencera a meu avô, tem outros simbolismos para este nostálgico escriba. Sobre ela, vim ao mundo. E não adianta alguém me desdizer, pois concluí que foi nela e disso não arredo pé. Explico: Mamãe me trouxe à luz no quarto da sala de meus avós. O quarto era para visitas e nele ficava esse móvel. Mamãe visitava seus pais quando resolveu aprontar com a vovó Jacira dando-lhe a alegria de mais um neto. Assim surgiu, para gáudio de todos, este que aqui está e vos fala. E foi naquela caminha – provado está – sobre a qual houve concepções, nascimentos e falecimentos.        

Naquele rancho, feito eremitério, refaço-me das fadigas terrenas e espirituais. Na solidão daquelas horas, posso falar sozinho e em voz alta sem que alguém me censure, pois o espaço me é propício. Falo de mim, de Deus, de alguém... Também posso gritar ou chorar. Posso rever minha trajetória, minha história e as circunstâncias que a permearam. Lá posso fazer aflorar, sem peias, as minhas loucuras. Naquele rancho eu consigo me ver só.

FILIPE

sexta-feira, 12 de julho de 2013

VOVÔ AURÉLIO

          As lembranças mais antigas que tenho de meu avô Aurélio evocam um homem portando um terço e uma lamparina. Vovô gostava muito de rezar e de andar à noite, mas parecia não apreciar a escuridão. Em sua casa havia várias dessas lamparinas a querosene. Umas eram de vidro, outras de lata, todas artesanais. No seu quarto havia uma que ficava bem no alto da parede e queimava à noite toda. Sua luz tênue, que mal iluminava em derredor, era suficiente para que não se tropeçasse em algo ao entrar, ou que se acertasse o rumo da porta, caso se desejasse sair no meio da noite.
          Quando nossos pais permitiam que pernoitássemos naquela casa, era no quarto do avô que dormíamos. Vovô nos cedia a cama – enorme, para nós tão pequenos – e nela deitávamos, três ou quatro meninos. Ele, minimalista como sempre, aconchegava-se num canto do quarto, numa esteira qualquer. Vovô era de pouca conversa. Suas frases eram curtas e quase sempre interrogativas. Perguntava amiúde pelo “compadre”, no caso o meu pai, mas quase sempre não passava disso. Na sua casa, era ele quem fazia as compras na venda. Também abastecia os dois grandes potes de barro com água da mina. Para tanto, sempre observava o nível da água. Quando achava necessário, pegava dois baldes e rumava para a fonte, uma mina distante, a centenas de metros da casa.
          Certa vez, isto se deu em meados de 1968, fiquei gravemente enfermo. Papai lutava para sustentar a família e encontrou dificuldade para dar cabo de minha doença. Vovô Aurélio esteve em nossa casa naqueles dias para fazer algum serviço para minha mãe. Talvez socasse arroz no pilão, ou coisa assim. Lembro-me de que ele constantemente cantarolava uma música. Essa música, eu soube bem depois, é de Roberto Carlos. Quem é jovem, talvez não saiba, mas esse artista já foi bom. A música tem uma letra assim: “Olha, dentro dos meus olhos, como estou chorando, eu chorei por ti, por ti, por ti. Olha, que saudade imensa (...)”. Eu não sabia, mas vovô talvez estivesse vivendo o começo de um drama que o acompanharia até o fim. Por isso, cantava aquela música.
          Passados uns dias, baixei hospital. Quem tomou a iniciativa de me internar foi o vovô Sebastião, meu avô paterno. Este, quando me viu naquele estado, chamou papai e acertaram de me levar. Lembro até hoje do rangido das botinas novas do vovô durante a caminhada até a estrada, onde a ambulância me apanharia. Vovô Sebastião ficou e papai me levou até o hospital. Como foi triste aquilo! Papai, depois de conversar com aquela gente vestida de branco, teve que partir e me deixou sozinho numa enfermaria. Eu chorava muito, mas de nada adiantou. Depois tive por companheiro um recém-nascido de nome José Marto. Fiquei contente com a companhia, mas foi por pouco tempo. Na noite seguinte, sem saber, velei seu corpinho.
          Certo dia, estando meio sonolento, ouvi um chamado. Era o vovô Aurélio que viera me visitar. Que alegria para mim, recebê-lo! E vovô não chegou de mãos abanando não. Trouxera-me dois pacotes de biscoitos de polvilho. Que delícia! Nunca havia comido aquilo e vovô me deu com fartura. Então ele ficou por ali calado, olhou-me por algum tempo, abençoou-me e saiu. Tive muita vontade de  acompanhá-lo, mas não podia. Esta foi a única visita que recebi naquele hospital.
          Uma das últimas conversas que tive com vovô Aurélio, foi quando ele já estava bem doente, prestes a falecer. Tentei rezar com ele o Terço, mas, já sem forças, faltou-lhe ânimo para isso. Dele, além dessas e de outras muitas recordações, herdei a cama. De cabiúna, esse pequeno móvel pertenceu ao seu pai, meu bisavô Germano, e deverá ficar comigo. Nessa cama, faleceram pai e filho (este avô). Quiçá o neto.
          Vovô Aurélio foi um homem religioso. Catequizou sua primogênita, minha mãe, e nos deixou um rico legado de devoção e desprendimento. Marcado pela doença, esteve várias vezes internado num hospital psiquiátrico de Barbacena. Nessas longas e sofridas internações, talvez não tenha recebido uma única visita. E muito menos um pacotinho de biscoito. Ah, vovô Aurélio, somente agora entendi por que me visitou.  Muito obrigado, vovô!
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          O texto acima é uma pequena contribuição ao ensaio autobiográfico que papai escreveu. Seu livro será lançado neste dia 15, em Vilas Boas, nosso rincão natal.


FILIPE