sexta-feira, 22 de julho de 2016

TROCANDO OS ÓCULOS


“Escuta aqui, a armação destes óculos é de titânio, então por que quebrou tão facilmente? Olha que tenho muito cuidado...” “Deixa eu ver...”, disse o rapaz, deixando o celular e pegando meus óculos. “Ah, mas tá meio velha, não?! Tá oxidada, desgastada..., quando é que você fez?” “Há uns cinco anos.” “Vixe! Tem que trocar mesmo. Já tá velha pra caramba!” “Imagina... Por que velha, se deveria durar muito mais?...” “É o seguinte...”, ele disse pegando meus óculos, soprando as lentes e passando um papel higiênico (argh!). “Óculos não são eternos e se não quebrassem, as óticas fechariam!” “Mas, não assim tão depressa..., com sete anos de uso!” “O quê!? Sete anos?! É pra durar só dois anos!” “Nada disso. Meus primeiros óculos duraram dezessete anos, e esta armação é de titânio, de titânio!” Agora a besta fingiu que não ouviu e ficou ciscando na vitrine, com a parte amputada de meus óculos na mão. Ele não sabe o que é uma ‘liga de titânio’. Ignora ser material top, utilizado em naves espaciais, resistente a altas temperaturas, à irradiação, a bombardeio de meteoros, a bafo de balconista. “O que faço?”, perguntei. “Faz outros óculos!” “Mas essas lentes são novas, tem só uns dois meses e foram feitas aqui...” Ah, não tem jeito não. Não tem armação para elas e o negócio é fazer tudo novo.” “Vou pensar um pouco. Até mais (ou até nunca, pensei)!” O rapaz voltou para seu celular, deslizando freneticamente os dedos na tela. Agastado, saí dali sem solução para o problema.

“Bom dia! Em que posso ajudar?”, disse a moça da outra ótica onde fui pedir socorro. “Eu trouxe meus óculos, que quebraram e eu não sei por quê. Olha, eu tenho muito cuidado com eles e ...” “Deixa eu ver”, interrompeu-me com um sorriso. “Sim, aqui estão. Esta armação é de titânio, material resistente usado em naves...” Interrompeu-me novamente, descartando essas informações inúteis: “Foi feito aqui, não?” “Sim, tenho cadastro.” “Diga seu nome completo e eu já vejo.” A moça voltou com uma ficha e alguma intimidade: ”Então , você sumiu, não?! Faz tempos que não nos procura... Olha, eu vou ver o que posso fazer.” E saiu com uma lente, deixando o resto da sucata no balcão. Enquanto ela experimentava a lente numa e noutra armação, eu tentava ler o jornal cujas letras mais pareciam formiguinhas ziguezagueando. “Acho que consegui. Veja se pode ser esta.” Peguei a armação e fiquei maravilhado. “Olha, que ótima!” “Então eu posso pôr as lentes, ?” “Sim, pode pôr, que vou levar.” Ela trouxe os óculos, limpou as lentes num guardanapinho e me pediu para experimentar. Olhou bem e disse: “Ficaram melhores do que os outros. E esses ‘restos mortais’, vai levar?...”, perguntou, apontando para os "destroços de nave espacial" a que se tornaram a armação antiga. “Vocês põem na reciclagem?” “Sim.” “Então vou deixar com vocês. Obrigado e já vou indo.” “Obrigada, . Precisando, volte!”

De Carlos Drummond de Andrade, tenho apenas a mineiridade e a miopia. Como ele, também costumo perder os óculos e a paciência. Por isso, quis pô-lo no topo desta.

FILIPE

sexta-feira, 15 de julho de 2016

O HOMENZINHO IMPERTINENTE

Postado originalmente em 26/08/2011 no “blogdofilipemoura”
Quase sempre chega atrasado. Apressado, com o boné numa das mãos, olhando para os lados e com um meio sorriso naturalmente esculpido, aquele homenzinho toma assento num dos bancos da capela. Busca sempre o mesmo lugar e caso já tenha alguém ali – não importa quem, nem quantos –, o problema é de quem chegou antes. Ele vai se enfiando entre um e outro: empurra o primeiro, o segundo, e o terceiro escapa furioso. Já sentado, seu boné ainda está na mão e será preciso acomodá-lo ao lado. Portanto, alguém mais terá que se espirrar dali.
Ninguém se move. Enquanto isso, o sacerdote continua a celebração, a assembleia entoa cantos e faz as preces. Mas o intrépido senhor não desiste. Está decidido que seu boné terá que ficar ‘sentado’ ao seu lado e dará um jeito nisso. Impaciente, gesticula-se batendo levemente os pés no genuflexório. Não sendo isso suficiente, começa a fazer uns ruídos. A ausência de dentes lhe possibilita produzir algo muito semelhante àqueles sons que emitimos – não pela boca, é claro –, mas que fazemos somente na ‘solidão do trono’. E percebendo a eficácia deste método, anima-se. Capricha nos vocais e, pouco a pouco, começa a debandada. Primeiramente uma ruborizada mocinha; depois, aquela sobranceira senhora; agora, um esguio senhor com fumos de barão também se rende.
Finalmente, o homenzinho vê-se livre daquela ‘gente incômoda’. Sozinho, estica bem os braços espalmando as mãos sobre o ‘império’, agora sob seu domínio, a que se tornara o banco. Contempla orgulhoso aquela vastidão de madeira e então decide participar, triunfante, da missa que já termina.
P.S.: “Tuto”, este era seu nome, faleceu dias atrás, aos 79. Que Deus o acolha e o acomode confortavelmente num dos ‘bancos’ do Reino!

FILIPE

sexta-feira, 8 de julho de 2016

FRUTA MADURA

Cá estou outra vez na varanda de meu pai. A lamparina continua com sua chama trêmula, desconfiada.  Num papel de pizza, acompanhado do chimarrão – como na outra crônica –, rabisco minhas impressões nesta fria madrugada (doze graus, aponta o termômetro), mais tarde, transcritas para a tela. Enquanto isso, papai e mamãe continuam “embalados por Morfeu”.

Cheguei há poucos dias, encontrando mamãe alegrosa e com saúde; e papai também saudável e proseiro. É muita graça ver os pais octogenários, gozando saúde, felizes. Aqui em casa, isso é segredo, as idades dos onze filhos, se enfileiradas, ultrapassariam quinhentos anos de história e encontrariam Cabral com as naus do Descobrimento! É, estamos ficando todos velhinhos e continuamos agasalhados pelos pais... Ah, a mamãe tá uma gracinha, de tão fofa. Dia desses, pela manhã, liguei o aparelhinho de som de meu pai para que ela ouvisse. Pus Tonico e Tinoco cantando “Cabelo de Trança” e, sabendo que ela gosta dessa música, observei seus olhos flamejando de embevecimento.

Outro dia, fizemos um breve passeio na cidade e que me fez recuar quase meio século. Encontrei parentes próximos de uma das pessoas mais admiráveis que conheci e com quem convivi: Tatão Tibúrcio. Vi sua sobrinha Nina, com o sorriso do Natalino Tibúrcio, e vi a Terezinha, mãe da Nina. De toda a família Tibúrcio, o Natalino foi o único que deixou descendência. Angelina e Tatão morreram solteiros; Zé Tibúrcio, que se casara com Evangelina, não teve prole. Mas o Natalino foi um autêntico “Abraão”: teve mais de uma dezena de pivetes. Foi muito penoso para ele, com ofício de sapateiro, sustentar aquele povaréu. Lembro que papai costumava visitá-lo e aproveitava para lhe cortar o cabelo. Certa vez, papai chegou em casa e disse: “Fui no Natalino e cortei seu cabelo. Mas seu cabelo tava parecendo um guarda-chuva, de tão grande, coitado...”

Estava com saudade do sorriso, da gargalhada da Terezinha do Natalino. Uma mulher que experimentou todo infortúnio que a vida ousa oferecer: doença do marido, miséria, a morte de filhos recém-nascidos, e a morte do Zé. Este, seu primogênito, morreu jovem e era quem sustentava a família como metalúrgico em Volta Redonda. Mas a Terezinha sempre deu risada de tudo isso e continua a gargalhar – agora, impossibilitada de andar.
 
O “Zé do Natalino”, como era conhecido, me fez um grande favor quando comecei a frequentar o grupo escolar. Eu era novinho, pequeno, e os moleques gostavam de me surrar. Então, ele me disse: “Olha, ninguém mais vai de bater, pois não vou deixar”. Na primeira investida, enxotou uns três, porque o Zé era valente mesmo. A partir daí, nunca mais apanhei. Obrigado, Zé, que Deus o recompense com o Paraíso!

Esta visita à minha terra tem sabor de fruta madura apanhada no pé, molhada pelo orvalho da manhã. Eu diria que tem gosto da pouco conhecida e saborosa frutinha de grande-galho, que devorávamos numa infância igualmente doce.


FILIPE