Dia desses, decidi sair mais cedo para a caminhada com os
cães. Na verdade, são eles que saem comigo, arrastando-me pelo bairro numa latição de tirar a paz até dos anjos.
Assim que alcançamos a rua, ajustei o fone de ouvido para ouvir
mais um episódio da Rádio Novelo naquele começo de tarde ensolarada. Tudo ia
bem até que alguém perturbou meu sossego. Um homem de bermuda, boné, porrete e
celular ligado em som alto, que vinha em sentido contrário, parou e quis
conversar. Eu não conseguia ouvi-lo por causa dos meus fones; já ele não me
ouvia por que o som dele estava muito alto. Como reza a boa educação, desliguei
meu aparelho; ele, no entanto, continuava barulhento, embora insistisse em
conversar. Eu conheço aquela figura há anos, mas nunca soube seu nome.
Eu tinha pressa. Queria continuar ouvindo meu podcast, precisava
voltar pra terminar o almoço e tentei me despedir. Em vão foram meus planos, porque
ele desligou o som, deu meia-volta e me acompanhou. Sem ter afinidade comigo e por
uma brutal falta de assunto, começou a me fazer perguntas. Primeiro sobre a
ex-namorada, que conheço de longa data, e depois entrou numa seara que sempre
evito.
Quem me conhece, sabe: falo sobre política com raríssimas
pessoas. Evito porque tenho opiniões bastante consolidas e esse assunto costuma
foguear-me os ânimos. Mas como aquele homem queria conversar, ele falaria sobre
qualquer coisa e arriscou a política. Desanimado com o país, resmungou suas frustrações
e quis saber minha opinião. Já adiantei que, pelo jeito, ele é de direita e eu
sou de esquerda. Dessa forma, seria melhor a gente mudar de assunto. Mas ele
não queria mudar a pauta. Falando mal do atual governo, acrescentou que Haddad
não sabe economia e não deveria ser ministro da Fazenda. Respondi que Haddad é
jurista, tem doutorado em filosofia e é bom gestor. Ele se apressou a dizer que
fez economia na PUC, tendo sido aluno de Fernando Henrique, Aloízio Mercadante
e Paul Singer. Perguntei o que FHC foi fazer no curso de economia da PUC, sendo
ele sociólogo da USP. Fernando Henrique, quando chegou do exílio, deu aulas de
sociologia política na PUC – explicou.
Chegando a uma esquina, eu desceria à direita, como sempre
faço, mas segui adiante. Pensei: ele vai desanimar e vai voltar. Que nada.
Continuou me seguindo, me obrigando a percorrer o bairro inteiro. Os cães,
alheios à minha aflição, bem que gostaram do prolongamento, embora um palmo de língua
sinalizasse outra coisa. Nesse momento, ele me perguntou se eu não temia que o
Brasil virasse uma Venezuela. De saco cheio, perdi as estribeiras e
descarreguei: “Você, um economista, acredita
nessas coisas? Ah, tenha paciência!...Tem gente ignorante que acredita em terra
plana... Mas você tem informação!” Ele se assustou com minha reação: “Calma!
Estamos apenas conversando...” Quase pedi desculpas pelo meu destempero, mas
fiquei quieto.
Passou o assunto Venezuela, ele trouxe a guerra da Ucrânia e
disse que gosta mesmo é do Putin. Aquele, sim, é um homem de respeito, que
defende os valores da família etc. Rebati, dizendo que Putin é horroroso e
Zelensky irresponsável. Ele concordou com a segunda parte e mudou mais uma vez
de assunto, agora elogiando os militares. Não deu certo de novo. Falei que
alguns deles não conseguem sequer defender a própria honra, muito menos a pátria
– e citei alguns nomes. Então ele tentou acertar as palavras, dizendo que ultimamente
não temos militares como Castello Branco, Costa e Silva, Médici... Aí, tive de
interrompê-lo antes que uma síncope cardíaca me apagasse. “Escuta aqui: você
não conhece a história do Brasil?! Não sabe que essa ditadura militar foi das
mais horríveis e covardes do continente?” Eu ia continuar, mas ele interveio: “Bom...
Você é professor e eu não.” “Nada a ver. Sou formado em matemática, mas procuro
conhecer a história do meu país. É preciso ler pra poder falar dessas coisas,
senão fica sem referências. E você já disse lá atrás que parou de ler.”
O assunto não acabava nunca, mas a caminhada, sim. Apontei
minha casa e ele me acompanhou até o portão. Eu já me despedia, sem convidá-lo
pra entrar (coisa feia... acho que é a primeira vez que faço isso) quando ele
quis saber a minha idade, não sei por quê. Então ele disse que pareço ser bem
mais novo – embora não me convencesse disso. E sem que eu perguntasse, ele me
falou que tem ‘sessenta e seis’. Retribuí a gentileza, dizendo que aparenta bem
menos. “Está um garotão ainda!”, eu disse sem convicção.
Antes de ir embora, ele me pediu um ‘favor’. Perguntou se
poderia dar um beijo nos cachorros. “Claro!”, respondi incrédulo. Ele beijou a cabeça de cada cão, perguntou o
nome deles e se foi.
Ao escrever estas linhas, já passados muitos dias daquele episódio,
senti necessidade de reencontrar aquele senhor e lhe dar um abraço. E também
pedir perdão pela minha impaciência.
FILIPE