sábado, 29 de julho de 2023

IMPACIÊNCIA

 


Dia desses, decidi sair mais cedo para a caminhada com os cães. Na verdade, são eles que saem comigo, arrastando-me pelo bairro numa latição de tirar a paz até dos anjos.

Assim que alcançamos a rua, ajustei o fone de ouvido para ouvir mais um episódio da Rádio Novelo naquele começo de tarde ensolarada. Tudo ia bem até que alguém perturbou meu sossego. Um homem de bermuda, boné, porrete e celular ligado em som alto, que vinha em sentido contrário, parou e quis conversar. Eu não conseguia ouvi-lo por causa dos meus fones; já ele não me ouvia por que o som dele estava muito alto. Como reza a boa educação, desliguei meu aparelho; ele, no entanto, continuava barulhento, embora insistisse em conversar. Eu conheço aquela figura há anos, mas nunca soube seu nome.  

Eu tinha pressa. Queria continuar ouvindo meu podcast, precisava voltar pra terminar o almoço e tentei me despedir. Em vão foram meus planos, porque ele desligou o som, deu meia-volta e me acompanhou. Sem ter afinidade comigo e por uma brutal falta de assunto, começou a me fazer perguntas. Primeiro sobre a ex-namorada, que conheço de longa data, e depois entrou numa seara que sempre evito.

Quem me conhece, sabe: falo sobre política com raríssimas pessoas. Evito porque tenho opiniões bastante consolidas e esse assunto costuma foguear-me os ânimos. Mas como aquele homem queria conversar, ele falaria sobre qualquer coisa e arriscou a política. Desanimado com o país, resmungou suas frustrações e quis saber minha opinião. Já adiantei que, pelo jeito, ele é de direita e eu sou de esquerda. Dessa forma, seria melhor a gente mudar de assunto. Mas ele não queria mudar a pauta. Falando mal do atual governo, acrescentou que Haddad não sabe economia e não deveria ser ministro da Fazenda. Respondi que Haddad é jurista, tem doutorado em filosofia e é bom gestor. Ele se apressou a dizer que fez economia na PUC, tendo sido aluno de Fernando Henrique, Aloízio Mercadante e Paul Singer. Perguntei o que FHC foi fazer no curso de economia da PUC, sendo ele sociólogo da USP. Fernando Henrique, quando chegou do exílio, deu aulas de sociologia política na PUC – explicou.

Chegando a uma esquina, eu desceria à direita, como sempre faço, mas segui adiante. Pensei: ele vai desanimar e vai voltar. Que nada. Continuou me seguindo, me obrigando a percorrer o bairro inteiro. Os cães, alheios à minha aflição, bem que gostaram do prolongamento, embora um palmo de língua sinalizasse outra coisa. Nesse momento, ele me perguntou se eu não temia que o Brasil virasse uma Venezuela. De saco cheio, perdi as estribeiras e descarreguei:  “Você, um economista, acredita nessas coisas? Ah, tenha paciência!...Tem gente ignorante que acredita em terra plana... Mas você tem informação!” Ele se assustou com minha reação: “Calma! Estamos apenas conversando...” Quase pedi desculpas pelo meu destempero, mas fiquei quieto.

Passou o assunto Venezuela, ele trouxe a guerra da Ucrânia e disse que gosta mesmo é do Putin. Aquele, sim, é um homem de respeito, que defende os valores da família etc. Rebati, dizendo que Putin é horroroso e Zelensky irresponsável. Ele concordou com a segunda parte e mudou mais uma vez de assunto, agora elogiando os militares. Não deu certo de novo. Falei que alguns deles não conseguem sequer defender a própria honra, muito menos a pátria – e citei alguns nomes. Então ele tentou acertar as palavras, dizendo que ultimamente não temos militares como Castello Branco, Costa e Silva, Médici... Aí, tive de interrompê-lo antes que uma síncope cardíaca me apagasse. “Escuta aqui: você não conhece a história do Brasil?! Não sabe que essa ditadura militar foi das mais horríveis e covardes do continente?” Eu ia continuar, mas ele interveio: “Bom... Você é professor e eu não.” “Nada a ver. Sou formado em matemática, mas procuro conhecer a história do meu país. É preciso ler pra poder falar dessas coisas, senão fica sem referências. E você já disse lá atrás que parou de ler.”

O assunto não acabava nunca, mas a caminhada, sim. Apontei minha casa e ele me acompanhou até o portão. Eu já me despedia, sem convidá-lo pra entrar (coisa feia... acho que é a primeira vez que faço isso) quando ele quis saber a minha idade, não sei por quê. Então ele disse que pareço ser bem mais novo – embora não me convencesse disso. E sem que eu perguntasse, ele me falou que tem ‘sessenta e seis’. Retribuí a gentileza, dizendo que aparenta bem menos. “Está um garotão ainda!”, eu disse sem convicção.

Antes de ir embora, ele me pediu um ‘favor’. Perguntou se poderia dar um beijo nos cachorros. “Claro!”, respondi incrédulo.  Ele beijou a cabeça de cada cão, perguntou o nome deles e se foi.

Ao escrever estas linhas, já passados muitos dias daquele episódio, senti necessidade de reencontrar aquele senhor e lhe dar um abraço. E também pedir perdão pela minha impaciência.

FILIPE

sábado, 15 de julho de 2023

VEXAME VERDE-OLIVA

 


No começo desta semana, um militar teve de comparecer à CPI que investiga atos antidemocráticos. Até aí, normal, porque outros militares já deram depoimentos a diversas CPIs sem que algo de assombroso acontecesse.

Mas este depoimento chamou a atenção por um motivo inusitado, quase pitoresco. Um tenente-coronel do Exército compareceu à comissão inquiridora imponentemente fardado, com o peito estufado repleto de medalhas, insígnias e outras quinquilharias – não se sabe, mas talvez com intenções intimidativas. Chegando, tomou assento à mesa, impostou a voz e começou a ler numa folha de papel os seus “grandes feitos” pela pátria e por todos nós.  Depois, alegando direito ao silêncio conseguido via habeas corpus junto ao STF, permaneceu calado. Durantes aquelas muitas horas em que ficou sentado no “banquinho da disciplina”, ninguém conseguiu arrancar do sujeito, antes tão falastrão, ao menos uma interjeição. Uma situação no mínimo vexatória para ele e seus pares, gente que esbanja altivez e valentia perante os subordinados.

Não trago na alma ressentimentos aos fardados. Servi na ‘força terrestre’ durante dois anos e, embora ainda vivêssemos sob a tirania da malfadada ditadura militar, tenho boas lembranças da caserna. Recordo-me de que muitos de meus superiores nos tratavam com respeito e, não querendo forçar muito, eu diria que recebíamos um tratamento até carinhoso de alguns sargentos e oficiais. Prova disso é que o major, comandante da unidade, quando visitava os departamentos, cumprimentava cada soldado, chamando-o pelo nome. Esse tratamento eu já não tive em certas empresas cujos chefes eram, obviamente, civis. Alguns destes eram arrogantes, prepotentes e, na falta de melhor qualificativo, canalhas. Um gerente de uma grande loja onde trabalhei jamais falava com funcionários rasos e sequer lhes dava um bom-dia. Ele dizia às suas auxiliares, que eram as chefes de departamento, não suportar repositores. Eu era repositor.

Sobre os militares, há uma discussão quanto à necessidade ou não de uma força armada para garantir o ‘estado de direito’. Não tenho dúvidas sobre a necessidade de ao menos uma ‘guarda nacional’ armada e bem treinada para cuidar de nossas fronteiras e garantir a paz social. Todavia, essa instituição jamais poderia extrapolar suas funções, avançando sobre assuntos estranhos às suas atribuições constitucionais. Da mesma forma que um civil não pode entrar num quartel para comandar soldados, um militar não tem por que se meter em repartições públicas civis.  A famigerada escola cívico-militar é uma dessas gangrenas autoritárias que faz lembrar o histriônico Plínio Salgado com suas “galinhas verdes” (caso o raro leitor desconheça o assunto, sugiro pesquisar ‘integralismo’ no Google).

Voltando ao o episódio da semana, este foi para mim uma celebração. Ver um alto oficial das forças armadas que, suspeito de atentar contra a democracia, é repreendido por civis e obrigado a engolir calado sua bílis – tão verde quanto sua farda – torna-se um marco civilizatório para nós e um brinde às futuras gerações.

FILIPE

sábado, 1 de julho de 2023

NATUREZA SUBJUGADA


 

Não me canso de contemplar essa foto que traz as entranhas de uma árvore cujas raízes, humilhantemente expostas de ponta-cabeça, evocam um ‘cadáver insepulto’.

Fico imaginando quem foi a dona desse “corpo” e o que pressentiu quando dela se aproximou a motosserra. Claro que a desventurada árvore gostaria de sair em disparada “pelos vales e campinas” até que a tenham perdido de vista. Mas a natureza não lhe permite movimentos e ela teve de encarar a morte ali mesmo, heroicamente estática.

Que mal teria feito aquela árvore? Ela só faz o bem. Diariamente, quando adulta, uma única árvore pode transferir para a atmosfera mais de cem litros de água, que formam as nuvens. As matas são responsáveis pelo controle da temperatura e pelo ciclo das chuvas; sem elas, nosso planeta seria um deserto inóspito.

Tento fazer a minha parte. A nossa casa é literalmente abraçada por árvores, com mangueira, abacateiro e até amoreira acariciando o telhado. Se as calhas entopem ou se uma telha desliza, subo lá e tento consertar; se eu não conseguir, o Cido, que é mais corajoso (ou sem juízo...), resolve pra mim.

Um galho da mangueira já virou dormitório de um barulhento bem-te-vi, que sempre me dá bom-dia ao alvorecer. Tenho observado que esse “menino” traz para seus aposentos um pequeno lanche, que é uma frutinha verde e redonda. Ele a rói toda ou em parte, desprezando o caroço. No chão, bem embaixo da cama dele, fica sujeira. Por capricho ou preguiça de procurar um banheiro, o bem-te-vi suja pra eu limpar. Contudo, ainda fico orgulhoso desse amigo madrugador e porcalhão que me chama para contemplar o amanhecer.

Um pouco acima do bem-te-vi, numa parte mais alta do beiral, está uma grande caixa de marimbondos. Faz mais de ano que eles se mudaram para aquele lugar e de lá não sairão. Jamais vou incomodá-los, até porque são pacíficos e a prudência me aconselha a não provocá-los também, é claro.

No quintal as coisas estão um pouco complicadas. Pus no pé de manga-espada uma pequena caixa de madeira para os passarinhos. Mas o passarinho deu bobeira e quem a aproveitou foram as abelhas. A colmeia começou pequena, dentro da caixa, e depois cresceu e já tiveram de fazer um puxadinho para abrigar todo o clã. Mas preciso me entender melhor com essas aí, porque elas não são da paz. Anteontem, recebi uma bela fisgada na nuca, que não me foi nada agradável. Mas as abelhas podem ficar tranquilas, porque não as molestarei.  Todavia, um acordo teremos que fazer – talvez uma demarcação de território para que possamos viver em harmonia. Enquanto isso, vamos conversando.

Já com as pombinhas silvestres não teve acordo. Durante muito tempo, deixei que elas chocassem na minha varanda. Tudo ia muito bem, lindo e maravilhoso até que... uma multidão de piolhos invadiu minha casa! Foi uma coceira de tirar o sono, literalmente. Não destruí o ninho delas, mas terminada a última ninhada, não “renovei contrato” e fui além: obstruí o acesso às vigas sobre as quais nidificavam. Ainda ontem uma delas esteve me fazendo uma visitinha, como quem não quer nada, mas quer tudo. Fingi que a prosa não era comigo e ela se foi.

Não moro na floresta, mas bem que eu gostaria. Tenho minhas árvores e as prezo com prazer. No entanto, na redondeza há cada vez menos árvores. Se eu pudesse, deportaria para o deserto todos os predadores do meio ambiente, que seriam condenados a se abrigar sob rochas, caminhar sobre areia quente e conviver com animais peçonhentos, bem típicos daquelas regiões áridas. Isso porque o paraíso não é para todos, mas apenas para quem o preserva.

FILIPE