quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

SEXAGENÁRIO

 


Hoje completo sessenta anos e de mim já se pode dizer em linguagem bíblica: “aquele senhor de muitos dias”.

Se aos trinta anos alcança-se a ‘idade da razão’, aos sessenta, com ou sem razão, chega-se à ‘idade da libertação’. Livre, agora, da obrigação de ser polido com a aspereza e sensato com a malvadez, quero sorver com sofreguidão esses poucos dias que ainda me restam. 

Se a vida para o jovem requer coragem, para nós, os provectos, ela exige destemor e suavidade. Nesta crônica, tentarei a suavidade. 

É manhã e estou na varanda de uma simpática pousada na Serra da Mantiqueira e meus olhos alcançam as montanhas verdes e molhadas, todas cobertas de névoa. Não muito distante daqui, está a igreja matriz de Maria da Fé cujo pináculo perfura uma parte do nevoeiro. No posto, um pequeno trator estaciona para abastecer. Sobre ele há seis caboclos de chapéu  e mochila, prontos para o trabalho rural – roçar, plantar, talvez colher. 

Sento-me com o notebook, deixo a cuia de chimarrão na soleira da balaustrada e ponho a garrafa de água quente no chão (vai que cai...). De vez em quando, deixo o teclado e pego a cuia para um trago de mate. 

O trator tomou rumo com seus cablocos para roçar ou plantar ou colher. Agora encosta uma caminhonete e dela desce o  motorista, que parece mal-humorado. Olha para os lados, não achando os frentistas, ele mesmo calibra os pneus.  

Lá na frente, um homem atravessa a rua com dois cães: um preto e outro encardido, que talvez fosse branco algum dia. Por aqui, bicicletas e motos passam frenéticas. Um ônibus da Venetur desacelera, dando passagem a um assustado cãozinho amarelo. 

No posto, o frentista reaparece e atende a um senhor de chapéu e botinas trazendo consigo um pequeno galão. Este certamente não tem carro, mas tem uma roçadeira e vai abastecê-la.  

O céu ainda está nublado com muitos tons de cinza-chumbo. À noite choveu e durante esta manhã deverá permanecer “embruscado” (essa é uma expressão de minha mãe). 

No outro lado da rua passa veloz um cãozinho preto, que teria sido enxotado por alguém.  E a padaria do Tiaguinho, que fica a poucos metros daqui, acaba de tirar uma fornada de pão francês. O cheiro é convidativo para o desjejum. 

Desde bem cedo, antes de raiar o dia, ouço os canários-da-terra, que aqui são abundantes. Mas a sinfonia agora é de pardais, ainda mais numerosos. 

Subi a Mantiqueira à procura de um frio que não encontrei. Todavia, com os nossos verões cada vez mais quentes, a temperatura aqui está amena.  

Volto à rua e vejo um homem com um porrete passeando com seu cão. O cão para e começa a beber de uma poça. O homem puxa, o cão resiste; o homem insiste e o cão não desiste. Por fim o cão se rende ao homem ou ao seu porrete.

Lá na frente vem vindo alguém com uma carriola, que deve estar vendendo mandioca, mas não vou saber, porque ele virou numa esquina. Na pracinha há uma feira e aquele homem foi lá para comprar ou vender. 

A padaria do Tiaguinho acaba de desenfornar alguma coisa diferente de pão francês, que eu não sei o quê. Enquanto isso, um caminhão passa gemendo sob o peso de centenas de toras de eucalipto. Logo atrás dele, sem gemer, segue o caminhão de lixo e seus  socialmente invisíveis operadores. 

No horizonte, o nevoeiro que cobria as montes com suas matas e pastagens se desfez, mas o céu continua nublê (na expressão de minha ‘patroa’), agora num tom mais aclarado. Na rua, ao trote de um cavalinho castanho-escuro, bamboleiam carroça e carroceiro. E da igreja matriz vem um anúncio fúnebre: “Comunicamos o falecimento de (...)”. 

Deixo a rua e suas muitas surpresas e desço para o café da manhã, que nem é café, mas chocolate quente com o pão do Tiaguinho. 

É, a vida aos sessenta requer suavidade e apaziguamento. A pressa é para os jovens. 

FILIPE


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

MINHA ÚLTIMA AVALIAÇÃO

Como faço desde o início da carreira, em dezembro dou um pedaço de papel a cada aluno para que avaliem meu trabalho. Recomendo que essa avaliação deva ser anônima a fim de que possam expressar mais livremente seus pontos de vista sobre meus inúmeros erros e possíveis acertos também.  O resultado, embora doloroso para mim, tem sido frutuoso, pois a partir dele, eu me esforço bastante para melhorar a atividade docente. De início, essa “enquete” era feita no último dia de aula, mas devido à debandada prematura dos alunos, tive que antecipá-la.

No entanto, engana-se quem pensa ser isso vaidade. De posse dos papeizinhos preenchidos, costumo abri-los apenas quando estamos encerrando a burocracia. No silêncio de uma sala de aula deserta é que eu costumava desdobrar os pequenos “bilhetes”. Ali eu me pegava ora maravilhado com demonstrações de afeto de uns, ora terrificado com a violência verbal de outros. Agora, se me faço vidraça, é por que deveria confiar numa blindagem – mas ela não existe. As sibilantes pedradas que recebo costumam me estilhaçar. Contudo, continuo acreditando que esse trabalho faz parte de meu ofício. De todas as críticas recebidas, as que mais me incomodam são aquelas que desnudam meu comportamento discriminatório. “O professor dá atenção para uns, os inteligentes, e despreza outros”, muitos já disseram essa “mentira”, e parecia ser vã minha tentativa de mudar essa conduta tão ferina. No entanto, devo admitir, esse traço de minha personalidade extrapola o ambiente da sala de aula. Nas relações sociais sou bastante seletivo e confesso (não muito envergonhado) que essa seletividade me traz conforto.

Volto à “minha última avaliação” que dá título a esta crônica. Assim que peguei todos os papeizinhos, separei-os por classe e os pus em uma sacolinha para cumprir aquele ritual: ler quando estiver só. “Leu, professor?”, perguntavam-me curiosos alguns alunos no dia seguinte. Eles queriam que eu me manifestasse, que debatesse o assunto. No outro dia, cheguei e disse: “Hoje vou fazer uma coisa que nunca fiz em trinta anos de sala de aula”. Houve um silêncio, uma expectativa, parecia que eu anunciaria o dia do apocalipse. Chamei uma aluna à mesa e a apresentei à classe, dizendo: “Eu não li os bilhetes, mas a colega de vocês vai ler para nós. Vai ler tudo o que estiver escrito, até xingamentos, a menos que o pudor a impeça. Mas ela não vai ler o nome de alguém que resolveu assinar. Fiquem tranquilos”. 

A classe ainda estava silente, apreensiva, paralisada, quando uma aluna irrompeu, protestando: “Por que tem que ler pra todo mundo?!” “Porque quero! Não é anônimo? Qual o problema?...”, rebati. Ouvi dela ainda um pálido resmungo, mas a leitura se iniciou.

Por sorte minha, pura sorte mesmo, os bilhetes eram só elogios. Todos, sem exceção, me exaltavam e eu fiquei até embasbacado. No entanto, um aluno visivelmente incomodado mudou de carteira, indo mais à frente. Por fim, ganhou coragem e disse: “Posso pegar meu bilhete de volta? Eu queria mexer nele”. Respondi que até poderia, mas como os bilhetes são anônimos, não teria como. “Eu assinei, professor”, disse ele. A mocinha pegou o papel, que ainda não tinha sido lido, e o entregou ao rapaz. Este o trocou por outro e eu fiquei sem saber por quê.  

E assim em todas as salas: um aluno lia e todos ouvíamos atentos aquela que foi a ‘minha última avaliação’. Alvíssaras! Desta vez até fui tachado de chato, mas não xingado nem acusado de discriminação intelectual.

FILIPE