Hoje completo sessenta anos e de mim já se pode dizer em linguagem
bíblica: “aquele senhor de muitos dias”.
Se aos trinta anos alcança-se a ‘idade da razão’, aos sessenta,
com ou sem razão, chega-se à ‘idade da libertação’. Livre, agora, da obrigação
de ser polido com a aspereza e sensato com a malvadez, quero sorver com
sofreguidão esses poucos dias que ainda me restam.
Se a vida para o jovem requer coragem, para nós, os provectos, ela
exige destemor e suavidade. Nesta crônica, tentarei a suavidade.
É manhã e estou na varanda de uma simpática pousada na Serra da
Mantiqueira e meus olhos alcançam as montanhas verdes e molhadas, todas
cobertas de névoa. Não muito distante daqui, está a igreja matriz de Maria da
Fé cujo pináculo perfura uma parte do nevoeiro. No posto, um pequeno trator
estaciona para abastecer. Sobre ele há seis caboclos de chapéu e mochila,
prontos para o trabalho rural – roçar, plantar, talvez colher.
Sento-me com o notebook, deixo a cuia de chimarrão na soleira da
balaustrada e ponho a garrafa de água quente no chão (vai que cai...). De vez
em quando, deixo o teclado e pego a cuia para um trago de mate.
O trator tomou rumo com seus cablocos para roçar ou plantar ou
colher. Agora encosta uma caminhonete e dela desce o motorista, que
parece mal-humorado. Olha para os lados, não achando os frentistas, ele mesmo
calibra os pneus.
Lá na frente, um homem atravessa a rua com dois cães: um preto e
outro encardido, que talvez fosse branco algum dia. Por aqui, bicicletas e
motos passam frenéticas. Um ônibus da Venetur desacelera, dando passagem a um
assustado cãozinho amarelo.
No posto, o frentista reaparece e atende a um senhor de chapéu e
botinas trazendo consigo um pequeno galão. Este certamente não tem carro, mas tem uma roçadeira e vai abastecê-la.
O céu ainda está nublado com muitos tons de cinza-chumbo. À noite
choveu e durante esta manhã deverá permanecer “embruscado” (essa é uma
expressão de minha mãe).
No outro lado da rua passa veloz um cãozinho preto, que teria sido
enxotado por alguém. E a padaria do Tiaguinho, que fica a poucos metros
daqui, acaba de tirar uma fornada de pão francês. O cheiro é convidativo para o
desjejum.
Desde bem cedo, antes de raiar o dia, ouço os canários-da-terra,
que aqui são abundantes. Mas a sinfonia agora é de pardais, ainda mais
numerosos.
Subi a Mantiqueira à procura de um frio que não encontrei. Todavia,
com os nossos verões cada vez mais quentes, a temperatura aqui está amena.
Volto à rua e vejo um homem com um porrete passeando com seu cão.
O cão para e começa a beber de uma poça. O homem puxa, o cão resiste; o homem
insiste e o cão não desiste. Por fim o cão se rende ao homem ou ao seu porrete.
Lá na frente vem vindo alguém com uma carriola, que deve estar
vendendo mandioca, mas não vou saber, porque ele virou numa esquina. Na
pracinha há uma feira e aquele homem foi lá para comprar ou vender.
A padaria do Tiaguinho acaba de desenfornar alguma coisa diferente
de pão francês, que eu não sei o quê. Enquanto isso, um caminhão passa gemendo sob
o peso de centenas de toras de eucalipto. Logo atrás dele, sem gemer, segue o
caminhão de lixo e seus socialmente invisíveis operadores.
No horizonte, o nevoeiro que cobria as montes com suas matas e
pastagens se desfez, mas o céu continua nublê (na expressão de minha ‘patroa’), agora num tom
mais aclarado. Na rua, ao trote de um cavalinho castanho-escuro, bamboleiam
carroça e carroceiro. E da igreja matriz vem um anúncio fúnebre: “Comunicamos o
falecimento de (...)”.
Deixo a rua e suas muitas surpresas e desço para o café da manhã,
que nem é café, mas chocolate quente com o pão do Tiaguinho.
É, a vida aos sessenta requer suavidade e apaziguamento. A pressa
é para os jovens.
FILIPE