A viagem foi tranquila apesar do
cansaço que se intensifica com o avançar da idade. Chegando, no meio de um dia
nublado e quente, encontrei papai feliz pela visita deste filho. Mamãe, como
sempre, fica alegre com a presença de seus inúmeros filhos, mas parece um pouco
atrapalhada com a movimentação de tantas chegadas e despedidas.
Desde que mamãe se acidentou e
ficou internada por uma semana, muita coisa mudou em sua vida. Seu pequeno “latifúndio”
– antes composto de algumas cômodas além da cama e de uma varandinha onde
tomava sol todas as manhãs – foi reduzido a um leito hospitalar. Nele mamãe
espera pelas refeições, recebe visitas e os cuidados de sua filha mais velha, a
quem ouso nominar carinhosamente de “Mana Véia”.
Durante dois dias pude presenciar
o labor dessa irmã, que, de vez em quando, é auxiliada por uma filha ou por nossa
irmã caçula. Mas é a ‘Mana Véia’ quem fica “vinte e quatro horas” à disposição de
nossos pais. Observando a maneira tão singular com que essa irmã lida com nossa
mãe, veio-me à memória uns fragmentos muito antigos. Num passado distante,
devido à enfermidade de nossa mãe, ela cuidou dos irmãozinhos; depois, com a
mesma dedicação e competência, criou seus filhos; agora, esmera-se nos cuidados
de nossos velhinhos: papai fez 89, e mamãe, enferma, tem 80.
Na primeira noite de minha
visita, fomos dormir cedo: eu, por cansaço da viagem; meu pai, por costume e
sabedoria. Tanto que um de seus lemas é: “A noite foi feita para a gente dormir!” E
por isso, quero abrir um parêntese.
Certa vez, estando eu na
companhia de dois irmãos, engatamos um bate-papo que se estendeu noite adentro.
Lá pelas tantas, meu pai acendeu a luz e veio ao nosso quarto, dizendo: “Vocês
não dormem?... Quem não dorme morre cedo. Meu tio (...) morreu com 56 anos
porque vivia nos bailes. Eu já tenho quase noventa e estou aqui!” Desabafou e voltou
para cama, talvez com o propósito de esticar ainda mais os seus dias. Meu
irmão, zombeteiramente, me disse: “Cinquenta e seis?! O tio de meu pai morreu
com a sua idade... toma cuidado!”
Voltando. Então, nessa primeira
noite em que dormi cedo, acordei antes das quatro da manhã e já sem sono.
Papai, que também estava acordado mandando e recebendo mensagens pelo celular,
resolveu telefonar para a Mana, chamando-a com urgência. A Mana mora no
terreiro de casa, mas a modernidade exige que tudo seja resolvido por telefone.
E meu pai ficou moderno. Perguntei ao pai o que aconteceu. “A sua mãe está
atravessada na cama e é preciso ajeitá-la”. “Não precisa chamar a Mana, pai. Eu
mesmo arrumo”. Ele decidiu que deveria ser a Mana e foi enfático. Eu quis
insistir, mas recuei e esperei pela irmã, que chegou um minuto depois. A Mana, toda sonolenta, viu minha mãe
tentando sair do “berço”, mas não se assustou com isso. O que a assustou de
verdade, e que me fez correr ao quarto, foi outra coisa. Um escorpião embaixo
da cama de meu pai. Eu, que tenho pavor de aracnídeos, tive que agir e não
poderia errar. Se o bicho escapasse, como encontrá-lo depois?... Vi meu pai
assustado e a irmã terrificada. A minha mãe, sem saber dos riscos, queria
apenas descer do “berço” e dar uma voltinha. Dei uma chinelada... e papai deu um pulo. Pensei: “Errei”. Mas não.
Por fim, entendi por que minha
irmã teria que estar ali àquelas horas. Papai tinha razão.
FILIPE