sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

UMA FOTOGRAFIA



Este é José Lopes, meu pai, e essa foto foi tirada por mim neste Carnaval. Postei-a aqui porque a achei magnífica, fidedigna, uma das melhores das inúmeras que já tirei dele.

Papai tem oitenta e nove anos, mas não só. Tem também muita disposição. Saiu de sua Guiricema às vésperas deste carnaval para visitar um filho distante, que sou eu. Quase setecentos quilômetros é a distância que nos separa. Chegou à tardezinha com seu filho caçula. Embora bem-disposto e bem-humorado, papai estava cansado e tinha uma ferida provocada por um furúnculo, ou algo semelhante. Ele suspeita de erisipela, mas talvez não seja. Houve vermelhidão e inchaço, preocupando-nos bastante, mas ele mesmo não dava muito bola para isso. Apenas pediu chá de “mercurim” e de “cinco-folhas” – plantas medicinais que ele conhece tão bem e que trouxera consigo para esse fim. Improvisei um curativo com gaze e fita crepe e ele não reclamou de dores nem desconforto. Na volta, meu irmão o levou a um hospital, onde foi feita uma pequena cirurgia para drenagem. “Eles enfiaram uma agulha dentro do machucado para anestesiar!”, disse-me aflito o caçula, o que me provocou arrepios só de imaginar a dor aguda que papai certamente sentiu. Ele, no entanto, ficou impassível diante daquela tormenta.

É uma alegria muito grande receber o “velhinho” na minha casa, e fico imensamente agradecido a Deus por isso. Não sei se pude atendê-lo bem, mas tentei. Ou não tentei o suficiente?... Ih, acho que não. No almoço, durante um churrasco, eu lhe fiz um sanduíche. Ele, muito educado, não pediu mais nada, ficando apenas com aquele lanche frugal. À noite, quando lhe foi oferecido janta, é que ele disse: “Estou desde cedo com aquele lanche que meu filho me deu como almoço.” Ah, paizinho... Eu nem me dei conta disso. Pensei que o senhor fosse atrás da “caça”.

Mas papai me trouxe serviço, e bastante. Manuscritos e uns arquivos de computador deverão ser editados para a publicação de um livrinho em novembro, na ocasião em que completará seus ‘noventinha’. Com essa obra, papai concluirá uma pequena trilogia autobiográfica.

Conversar com o papai é um passeio nos tempos antigos por ele vividos. É impressionante sua narrativa tão rica, tão meticulosa, permeada de datas, nomes e lugares. Seus escritos são uma pequena mostra do que nos conta. De minha parte, vou compilar seus textos e tentar fazer um serviço bem-feito, mas dificilmente poderei corresponder às expectativas do narrador e do leitor.

Obrigado, meu pai, pela visita. Obrigado também pela confiança depositada em mim. Farei o possível para não decepcioná-lo, ainda que eu tenha de suspender as publicações neste blog por algum tempo. 

A sua bênção, papai!

FILIPE

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

DONA LAURA


Conheci a dona Laura já beirando seus ‘noventa’ no longínquo passado quando me mudei para esta cidade. Ela estava sempre bem ornada com um vestido ramado, de cores fortes. E seus cabelos, muito brancos, acomodavam-se sob uma presilha dourada. Dona Laura me parecia uma mulher feliz, porque piedosa e elevada, embora tivesse lá seus perrengues de saúde e de finanças.

Laurinha, como eu ousava chamá-la, morava numa modesta casa ajardinada com seu filho Laercio, um rapaz já de “muitos dias” com quem pouco conversei, porque estava sempre meio “escondido”.  Meus encontros com ela se davam regularmente aos sábados, à noitinha, quando voltávamos da igreja que frequentávamos num bairro vizinho. Conosco também vinha uma falante dona Mariinha, que era meio ‘reclamona’. Dona Laura tinha paciência com a amiga, mas não lhe poupava umas reprimendas de vez em quando. “A Maria é boba, devia parar de reclamar, porque ela é a dona da casa e não tem que viver humilhada”. Quase sempre, dona Mariinha vinha falando que não tinha almoçado direito e que nem ia jantar. Dona Laura, que sempre fazia uma sopa antes de sair, dizia-lhe: “Vamos lá em casa. Fiz uma sopa e você pode tomar à vontade”.  E a dona Maria ia mesmo. Mas depois desconfiei que seus queixumes fossem por conta da senilidade, que avançava. Não passou muito tempo, dona Maria partiu.

Por algumas vezes fui à casa da amiga Laura. Seu quintal era pequeno, cimentado e ainda assim bucólico. Havia nele vários pés de frutas dentro de latas de tinta, que o Laercio plantava para presentear amigos. Um pequeno abacateiro chegou a frutificar dentro da lata. Havia também um cercado com alguns bichinhos e um deles era uma pata de nome ‘Chico’. “Mas por que Chico, dona Laura?” “Eu pensei que fosse macho, mas ‘ele’ começou a botar e eu continuei chamando de Chico”. Na frente da casa, um canto do jardim era sombreado por um frondoso pé de jabuticaba, cujas frutas dona Laura fazia questão de colher e levar à minha casa.

No Natal de 2007, fui convidado para o almoço. Cheguei ao meio-dia e a dona Laura estava toda animada. De avental branco, cozinhava, lavava e servia aos filhos, netos etc. Depois desta visita, fiquei um tempo sem vê-la, até que um dia reapareci. Seu filho Laercio abriu a porta e perguntei pela mãe. “Está na cozinha. Entre”. Entrei e a encontrei sentada numa cadeira. Estava bem debilitada, magrinha. Mas me reconheceu, abraçou-me e me beijou, como sempre fazia. No fogão, estava um Laercio meio atrapalhado com as panelas. Lembro que fritava peixes e os punha num prato. Eram uns peixinhos pequenos, tipo sardinha, que ficavam meio morenos de tão torrados. Pensei: “Dona Laura não vai conseguir comer isso, porque já reclama de não ter fome”. Conversamos um pouco, ela elogiou o filho, dizendo estar muito bem cuidada por ele etc., e fizemos uma prece. Após esse encontro, nunca mais pude vê-la.  Dona Laura partiu logo depois.

Nesta semana, o obituário trouxe o nome de Laercio Favaro. Bateu-me uma interrogação seguida de uma exclamação. Dona Laura já tem a companhia de seu filho na eternidade!

FILIPE