sábado, 21 de outubro de 2023

A GUERRA E OS BOÇAIS

 


Nos anos oitenta, quando eu terminava o segundo grau (hoje ensino médio), havia um colega de sala que costumava usar um apetrecho com a suástica. Como eu já não tinha proximidade com aquele rapaz, o seu gesto acabou piorando as coisas, gerando certa antipatia em nós. Fato é que eu não entendia por que aquele moço, moreno e de traços nordestinos, pudesse ostentar um símbolo nazista – algo no mínimo contraditório. Bocudo que sempre fui, talvez eu tenha mofado dele sobre essa bestagem, embora eu não me lembre de ter feito isso. Certo dia, porém, um professor perguntou a ele o porquê daquela insígnia e teve como resposta que seria um gesto em prol da causa palestina. Como eu não sabia nada sobre o movimento palestino, aquela informação, que me chegou de forma enviesada, foi de pouca serventia e não melhorou a imagem que eu tinha do jovem rebelde.

Aqui, abro parênteses para a causa judaica. Parte de meus estudos foi realizada durante a ditadura militar e, não se sabe por quê, naquele tempo os professores de história não citavam o nazismo. Todavia, foi de um professor de artes, que dava aula nas noites de sábado, de quem ouvi pela primeira vez relatos sobre os campos de concentração nazistas. Aquela aula de história dada por um professor de educação artística deve ter sido a mais proveitosa de todas as que tive naquele ano de 1981. A partir de então, meu interesse sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto foi despertado, mas a questão palestina ficou à margem de minhas leituras.

Embora eu não seja ativo nas redes sociais, fiquei sabendo que há nelas uma batalha insana entre defensores do Hamas e partidários das forças israelenses. Pelos ânimos tão acirrados, tem-se a impressão de que todos conhecem a história do povo hebreu e a saga de seus “primos” palestinos, tornando-se também especialistas em Oriente Médio e, mais particularmente, na Faixa de Gaza. Contudo, desconfio que pouquíssimos consigam sequer localizar no globo terrestre o mapa da região conflagrada.

De minha parte, penso ser impossível, assim de afogadilho, tomar partido de um ou outro grupo, porque as coisas são muito complexas. Os judeus, um povo que foi milenarmente perseguido, obteve a demarcação de um território para si logo após o fim da Segunda Guerra – e isso me parece justo. O problema é que esse território estava sendo ocupado há séculos pelos palestinos, que foram expulsos em benefício dos “novos inquilinos” – e isso me parece injusto.

Não podemos aceitar passivamente o terrorismo, seja de guerrilheiros muçulmanos ou de forças regulares israelenses, porque, se no Oriente Médio impera o terror, nas redes sociais e nas rodas botequeiras tem-se o horror. E dessa forma, as relações humanas vão sendo vorazmente destruídas pelas labaredas ideológicas de lá e pelas boçalidades de cá.  

FILIPE

sábado, 7 de outubro de 2023

A BIGORNA

 


Eu poderia dizer que sou um homem de sorte, só por que tenho uma bigorna. Mas se você não tem uma bigorna, então você não sabe o que é ser uma pessoa completa, realizada mesmo, como eu.

Há tempos, venho montando uma pequena oficina de carapina. Não, não sou carpinteiro e muito menos marceneiro. Eu me dou por carapina, esse protótipo de carpinteiro, que é o pioneiro, o desbravador dessa arte de cortar e pregar tábuas – um pouco como fazia o ‘Carpinteiro de Nazaré’, de nome José, que talvez você conheça. E é isso que faço ultimamente.

E por que abri o texto, falando de bigorna? Vou explicar.

Tenho feito bastante coisa utilizando sucatas de madeira. Fiz mesas, banco, prateleiras e até um baú. Não digo que meus móveis sejam rústicos, mas toscos. Além do martelo, sempre usei serrote e facão, que não deu muito certo. Meu baú, embora elegante, ficou meio desengonçado, e os pregos, velhos e tortos, avacalharam bastante. Ah, a bigorna não deixaria isso assim. Ela é ‘gente boa’ pra caramba. É fato que sua relação com o martelo nunca foi das melhores. Sua paciência chega a irritar o ‘companheiro’, que cisma de ‘espancá-la’ sempre que está ‘nervoso’ e, no entanto, ela nem se mexe. Ontem mesmo, xinguei o martelo porque ele me acertou o dedo. Já de uma bigorna, nunca se ouviu dizer que alguém fosse ferido por ela. Pode ver que ela está sempre quietinha no canto dela, só observando.

De uns tempos pra cá, adquiri furadeira, esmeril, plaina de mão... mas faltava essa amiga.  A cada aquisição eu lembrava de meu saudoso pai, que sempre dizia: “Como eu queria ter uma ‘caixa de ferramentas’ para poder trabalhar como carpinteiro!...”  Ah, meu pai... Se eu pudesse voltar ao passado, compraria todas as ferramentas para o senhor... Papai tinha ferramentas bem interessantes como: arco de pua, enxó, serrote, formão, martelo, torquês... Mas havia outras das quais ele precisava muito e não podia comprar, dentre elas, quem sabe uma bigorna...

Felizmente, embora já idoso, meu velho conseguiu realizar parte do sonho. Ele chegou a possuir ferramentas bem modernas e delas fez uso. Quando partiu, deixou esmeril, furadeira, maquita e outras, todas funcionais e de boa procedência. Mas não a bigorna!

Por que insisto na bigorna? Explico mais uma vez.

Você nunca viu alguém saindo de casa para comprar uma bigorna. Eu também não. Mas num exercício de imaginação, vejo o Firmino dizendo para a esposa: “Serafina, estou indo a Guiricema pra comprar uma bigorna”. Chegando, ele entra numa loja, pergunta ao balconista se tem bigorna e ouve como resposta: “Ih, seu Firmino, tem não. Eu mesmo nem sei quiqueísso...” O Firmino não desanima e vai mais longe, vai a Visconde do Rio Branco. “Lá tem muitas lojas e vou achar”, ele diz de si para si, mas dá com os ‘burros n’água’. Ninguém tem bigorna e apenas os mais velhos conhecem tal ferramenta. “Alguém ainda usa esse trem?...”, pergunta, sem disfarçar o riso de canto de boca, um homem careca e de bigode (talvez o dono da “birosca”).  

Não sei se o Firmino achou a bigorna ou dela desistiu. Mas eu comprei uma pela internet, que chegou soberbamente embalada, deixando um rastro de curiosidade. Houve até alguém que veio à minha casa só para conhecer a novidade, que apresentei com indisfarçável orgulho.

Dois irmãos meus têm oficina e fazem prodígios; um tio faz móveis incríveis com madeira descartada; um concunhado poderia ser mestre em qualquer liceu de ofícios. Contudo, há uma diferença entre nós e que me deixa bastante abobado: apenas eu tenho uma bigorna!

FILIPE