Bom, não sei se isso é um título
que se preze, mas a crônica que se segue também não deverá ser prezada por alguém.
E nem por isso o título deixa de ter razão para estar lá em cima.
Visito com relativa frequência
uma casa de idosos. Ao me aproximar de cada um, começava sempre com platitudes
do tipo: “tá frio”, “tá calor”, “será que vai chover?” “cadê a chuva?” etc. Então
decidi inovar, sobretudo com os homens, cuja maioria tem aspecto de gente da
roça. Mudei a forma de abordagem para “Cadê a enxada?...”
Até que estava dando certo. O seu
Antônio respondeu: “Ih, rapaz, eu não trabalhei na roça, mas meu serviço era
ainda mais pesado. Trabalhei numa olaria por mais de trinta anos”.
Trabalhar em olaria, fazer
tijolos... Isso não é pra qualquer um. Quando jovem, trabalhei por um ou dois
dias na olaria de um tio, e até hoje estou cansado. Aquele tio consumiu a vida nesse
árduo trabalho, e se cozinhou juntos às inúmeras caieiras de tijolos por ele
queimadas. O fogo era aceso à noite e ele varava madrugadas pondo lenha e
calafetando com barro as paredes para que o calor ficasse retido. De muito
longe, na mais espessa escuridão, podia-se ver aquele brasido, que era um
colosso de tijolos incandescentes. E o hálito ardente daquela fornalha impedia
que curiosos se aproximassem impunemente.
Mas, naquele asilo, há quem de
fato tenha trabalhado na roça. Um diz: “Vixe, quero saber mais de enxada não,
moço!” Outro: “Até que se eles deixassem, eu queria uma enxada para capinar um
pouco. Sabe, eu gosto e aqui tem bastante espaço. Eu queria plantar milho, mas acho
que não pode, né?...” Ainda outro: “Ih, moço, já trabalhei muito nessa vida.
Capinei, sim, mas não só. Até caminhão já dirigi. Mas essa danada da enxada
judia da gente!” Um deles não disse que capinou, mas vem com esta: “Não quero,
não. A enxada matou meu pai!” Peço a ele que explique, mas não explica nada e
repete como um mantra: “A enxada matou meu pai.”
Em outros tempos, o seu Zé, que
já partiu, era assim provocado por um funcionário: “Seu Zé, eu comprei uma
enxada novinha. Então amanhã você já pode começar a capinar”. Mas o seu Zé
ficava uma fera. Dentre impublicáveis impropérios, resmungava: “Eu não vou
capinar. Nunca capinei, não sei capinar e ninguém vai me obrigar a capinar.”
Da última vez em que estive no
asilo, vi um novato. Era um caboclo já meio roído, mas não tão velho e estava bem
vestido. Pensei: “Com este nunca falei, mas vou provocá-lo”. Aproximei-me devagar
e disparei: “Olá, tudo bem?” Ele me olhou meio desconfiado e não disse palavra.
Mas eu precisava completar o serviço e emendei: “Cadê a enxada?” Dessa vez a
coisa não funcionou. “Tá achando que eu sou algum filha da puta?!” “Mas por quê?...”, repliquei. “Eu sou escrivão,
sei escrever e nunca tive que usar enxada!” Eu, muito sem graça, respondi: “Ah,
então eu sou esse ‘filha da puta’? Porque
sempre usei enxada, sou um capinador.”
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