Ultimamente, tenho pensado
bastante na tal da “indesejada das gentes”. Manuel Bandeira tem um belo poema
sob o título de “Consoada”, no qual ele assim se refere à morte, que também
recebe o epíteto de “iniludível”. Tenho lembrado
de pessoas que partiram há muitos anos, especialmente do meu avô Sebastião.
Vovô era um homem trabalhador. Embora
analfabeto, tinha orgulho de saber escrever as iniciais de seu nome: ‘SLL’ (Sebastião
Lopes de Lima), que costumava gravar com formão no cocho das porteiras que
ajudava meu pai a fazer. Certa vez, ele levantou a barra da calça e me mostrou
umas varizes – as veias formavam a letra ‘S’ – e me disse orgulhoso: “Aqui está
a letra do meu nome!”
Vovô Sebastião cuidava de uma boa
porção de terras, uma verdadeira fazendinha. Levantava bem cedo, pegava uma
guiada e começava a chamar suas vaquinhas para a ordenha. Com sua inconfundível
voz metalizada, ele nomeava uma a uma. Tinha várias, mas lembro do nome de
apenas duas: Açucena e Cocada. Lembro
também de alguns bois carreiros: Roxinho e Ouro Fino eram “bois de coice”,
aqueles que sustentam o cabeçalho do carro; as juntas Senado e Escovado, e Tesouro e Sete Ouro eram de “bois de
guia”, aqueles que ficam à frente, obedecendo o candeeiro ou tentando passar-lhe os chifres. Da “junta torneira”, que fica no meio, entre os “coiceiros”
e a “guia”, eu não lembro os nomes, porque eram os ‘novatos’, que estavam em
treinamento. Mais tarde, dando certo, seriam “promovidos” para o “coice” ou
para a “guia”. Na sua última aquisição, vovô comprou uma junta bastante
desigual: o bonachão Mascote, um boi holandês que curtia a solidão dos brejos,
e o endiabrado Coração, um boi preto com um coração branco tatuado na testa, que
quase matou meu pai com um coice, quebrando-lhe umas três costelas. Esse danado
tentou me acertar diversas vezes. Atravessando um rio, quase passou por cima de
mim com o carro e tudo. Consegui me safar a nado, jogando-me na correnteza.
A fazendinha de meu avô era muito
bem organizada. Tinha um terreiro cheio de galinhas, vários porcos de engorda, canavial
e cafezal. Tinha também um simpático pomarzinho que me oferecia furtivamente
deliciosas laranjas e bananas-maçãs. Ah, tinha o Queimado, um cavalo de sela e
charrete, que era meu objeto de aventura. Quando ia ao pasto pegá-lo para meu
avô, eu aproveitava para dar uns bons galopes. Mas o bicho era manhoso... Às vezes, estava lá paradinho, pensando na
vida, mas quando me via chegando, já dava uma abanada de cabeça e começava a
sair de fininho. E não adiantava eu apressar o passo, porque ele sabia que eu
não o alcançaria. Eu teria que negociar com ele, conversar mesmo, até que cedesse
e resolvesse aceitar o cabresto. Depois disso, era só bamboleio! Encostava o ‘corcel’ num barranco e, nem bem me ajeitava no
seu lombo, ele já saia em disparada.
O sonho de meu avô era instalar
confortavelmente a minha avó em sua casa na “rua”, conforme se diz na nossa
terra sobre aqueles que moram na cidade. Ele tinha uma casa velha onde passavam
fins de semana, mas comprou outra casa. Esta, uma das mais antigas da cidade,
foi reformada mantendo-se quase intacta sua arrojada arquitetura. Certo dia, já
na casa nova, vovô disse à minha avó: “Luzia, se eu morrer amanhã, não deixarei
nenhuma dívida para você. Hoje paguei o resto que estava devendo.” Na manhã
seguinte, dia em que eu completava doze anos, vovô partiu. Aos setenta.
FILIPE
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