sexta-feira, 11 de outubro de 2019

FINITUDE


Ultimamente, tenho pensado bastante na tal da “indesejada das gentes”. Manuel Bandeira tem um belo poema sob o título de “Consoada”, no qual ele assim se refere à morte, que também recebe o epíteto de “iniludível”.  Tenho lembrado de pessoas que partiram há muitos anos, especialmente do meu avô Sebastião.

Vovô era um homem trabalhador. Embora analfabeto, tinha orgulho de saber escrever as iniciais de seu nome: ‘SLL’ (Sebastião Lopes de Lima), que costumava gravar com formão no cocho das porteiras que ajudava meu pai a fazer. Certa vez, ele levantou a barra da calça e me mostrou umas varizes – as veias formavam a letra ‘S’ – e me disse orgulhoso: “Aqui está a letra do meu nome!”

Vovô Sebastião cuidava de uma boa porção de terras, uma verdadeira fazendinha. Levantava bem cedo, pegava uma guiada e começava a chamar suas vaquinhas para a ordenha. Com sua inconfundível voz metalizada, ele nomeava uma a uma. Tinha várias, mas lembro do nome de apenas duas:  Açucena e Cocada. Lembro também de alguns bois carreiros: Roxinho e Ouro Fino eram “bois de coice”, aqueles que sustentam o cabeçalho do carro;  as juntas Senado e Escovado, e Tesouro e Sete Ouro eram de “bois de guia”, aqueles que ficam à frente, obedecendo o candeeiro ou tentando passar-lhe os chifres. Da “junta torneira”, que fica no meio, entre os “coiceiros” e a “guia”, eu não lembro os nomes, porque eram os ‘novatos’, que estavam em treinamento. Mais tarde, dando certo, seriam “promovidos” para o “coice” ou para a “guia”. Na sua última aquisição, vovô comprou uma junta bastante desigual: o bonachão Mascote, um boi holandês que curtia a solidão dos brejos, e o endiabrado Coração, um boi preto com um coração branco tatuado na testa, que quase matou meu pai com um coice, quebrando-lhe umas três costelas. Esse danado tentou me acertar diversas vezes. Atravessando um rio, quase passou por cima de mim com o carro e tudo. Consegui me safar a nado, jogando-me na correnteza.

A fazendinha de meu avô era muito bem organizada. Tinha um terreiro cheio de galinhas, vários porcos de engorda, canavial e cafezal. Tinha também um simpático pomarzinho que me oferecia furtivamente deliciosas laranjas e bananas-maçãs. Ah, tinha o Queimado, um cavalo de sela e charrete, que era meu objeto de aventura. Quando ia ao pasto pegá-lo para meu avô, eu aproveitava para dar uns bons galopes. Mas o bicho era manhoso...  Às vezes, estava lá paradinho, pensando na vida, mas quando me via chegando, já dava uma abanada de cabeça e começava a sair de fininho. E não adiantava eu apressar o passo, porque ele sabia que eu não o alcançaria. Eu teria que negociar com ele, conversar mesmo, até que cedesse e resolvesse aceitar o cabresto. Depois disso, era só bamboleio! Encostava o   ‘corcel’ num barranco e, nem bem me ajeitava no seu lombo, ele já saia em disparada.

O sonho de meu avô era instalar confortavelmente a minha avó em sua casa na “rua”, conforme se diz na nossa terra sobre aqueles que moram na cidade. Ele tinha uma casa velha onde passavam fins de semana, mas comprou outra casa. Esta, uma das mais antigas da cidade, foi reformada mantendo-se quase intacta sua arrojada arquitetura. Certo dia, já na casa nova, vovô disse à minha avó: “Luzia, se eu morrer amanhã, não deixarei nenhuma dívida para você. Hoje paguei o resto que estava devendo.” Na manhã seguinte, dia em que eu completava doze anos, vovô partiu. Aos setenta.

FILIPE

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