A imagem que ilustra esta crônica
pareceu-me intrigante. Antes que o leitor escorregue distraidamente pela página, sugiro que volte os olhos para a foto e tente decifrá-la. O que está
ali?... Após examiná-la, continue a leitura. Ao final deste “tobogã”, outra
imagem o aguarda para fechamento do texto.
Confesso ao ‘ausente leitor’
minha dificuldade para acreditar em milagres, que acontecem, mas sem
estardalhaços. A tecnologia, por exemplo, é um milagre do engenho humano –
apesar da horrorosa ‘tomada de três pinos’! A tríade (vida, morte e
ressurreição) é o mais sublime dos milagres – obra-prima do Criador. Mas há
outros ‘sinais’ que nos inquietam cotidianamente.
A história é a seguinte. Uma
amiga, freira por mais de trinta anos e a quem chamo carinhosamente de ‘Irmãzinha’,
deixou o convento. Houve desentendimentos com a “chefia”, dos quais não tenho
ciência, mas dou “carradas de razão” à amiga, que não se ocupa de outra coisa senão
rezar e fazer o bem. Eis uma autêntica ‘irmã de caridade’, conforme nomeavam-se
as freiras nos tempos antigos.
Essa amiga, ao sair do mosteiro e
sob o risco de virar uma sem-teto, foi acolhida pela Diocese. Ajeitaram para
ela uma casinha ao lado de uma capela abandonada, da qual tornou-se zeladora. Mas,
quando da entronização do Santíssimo e não havendo aquela ‘vigilante’ lâmpada conforme
manda a tradição, a religiosa acendeu uma ‘vela de sete dias’, que se tornou a
‘sentinela’ do Altíssimo por um tempo. A vela derreteu, transbordou e formou no mármore a imagem que encima este texto. Por ceticismo, insensibilidade, ignorância
ou até mesmo sabedoria, alguém poderá descartar qualquer interpretação que
transcenda a materialidade daquela cera. Com ou sem ‘delírios místicos’, o
leitor tire suas conclusões ao final da leitura.
Comigo já aconteceu algo bastante
curioso, que escrevi aqui há tempos. Quando criança, um boi invadia o nosso
roçado para comer as espigas de milho. Eu o expulsava, mas ele voltava. Então peguei
a espingarda, caprichei no carregamento e mirei o bicho. Era Sexta-feira Santa
e, por sorte nossa, mais minha do que do boi, a espingarda quebrou e o tiro não
saiu. Mas há outra história ainda mais interessante do que essa.
Era uma também uma Sexta-feira
Santa – de jejum e abstinência. Embora meu pai sempre cumprisse e nos
recomendasse a observância das normas doutrinais, sempre vacilei nesses
preceitos. Mas naquele dia eu estava jejuando. Na hora do almoço, foi-me
oferecida uma bacalhoada, que recusei sem muita convicção. Houve insistência.
Resisti. “Não é pecado! Coma, vai...” “Hoje não!”, repliquei quase cedendo. De
repente, misteriosamente, o prato espatifou-se no chão, ficando na mão apenas a
parte em que os dedos seguravam. Uma massa de cacos, molho, batatas e bacalhau
confundiu-me mente e espírito, e eu nunca me esquecerei daquilo.
Mas os grandes sinais são sutis,
e sua beleza não se vê com os olhos carnais. Para enxergá-los, é preciso ter a
fé dos simples, a fé da Irmãzinha.
Abaixo está a foto do sacrário
onde repousam as Espécies Sagradas. A vigilante vela se desfez e esculpiu a
imagem que, sem esforço de imaginação, remete à asa de um dos guardiães que
adornam o tabernáculo.
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