Escrever sobre a “Irmã mais
velha” exige tempo, zelo, memória e o talento de um escritor que não sou. Ouso,
contudo, pôr nesta página pequenos retalhos da vida dessa singular figura, que não
teve uma infância ajardinada e multicolorida como toda criança deveria ter.
Muito cedo, ela teve de assumir
compromissos domésticos – ao suceder à mãe impossibilitada pela enfermidade –,
começando a fazer nossa comida, lavar as roupas, cuidar da casa e dos
irmãozinhos. Por ser ainda tão pequenina, não conseguia alcançar as panelas
sobre o fogão, também pequeno. Então, meu pai teve de improvisar, pondo um
caixote de madeira para que nele subisse e pudesse manusear conchas e
escumadeiras.
A nova cozinheira trouxe-nos conforto,
oferecendo-nos refeições nas horas devidas, mas a menina custou a se organizar,
atrapalhada que ficava com o serviço se avolumando cada vez mais. De manhã,
quando papai se levantava para fazer o café, ainda havia vasilhas no fogão para
serem lavadas. O pai ficava confuso, pois era “louça” para todo lado. Eu disse
louça, mas eram panelas de ferro e pratos esmaltados. Naquele tempo, porcelana se
achava apenas nas cristaleiras dos vizinhos abastados.
Mas papai foi orientando a filha,
ensinando-a aos poucos. Na cozinha, havia uma mesa onde ficavam pratos, panelas
e outros utensílios prontos para serem usados. Então papai sugeriu: “Filha, vou
lhe passar um programa. Assim que uma panela for usada e você não puder lavá-la
naquele momento, ponha-a debaixo da mesa, para que não atrapalhe o serviço. Quando
puder, lave-a e a coloque junto às demais. Este deve ser seu ‘programa’ a
partir de hoje”. O irmão mais velho, rapazinho muito trabalhador, mas sapeca à
beça, provocava a irmã: “Olha o ‘programa’ debaixo da mesa!”, dizia às
gargalhadas, apontado o dedo para as panelas sujas, deixando a coitadinha por
demais furiosa.
Embora frágil na aparência e de
saúde delicada, essa irmã nos surpreendeu. Em pouco tempo, aprendeu o ofício,
tornando-se uma cozinheira de mão-cheia, mas não só. Foi arrumadeira,
costureira, educadora, e uma segunda mãe para todos os irmãos, especialmente
para os mais novos. Lembro-me de que, ao anoitecer, ela punha água morna numa bacia
e banhava cada pequerrucho, enfileirando-os sentadinhos sobre um banco de
madeira. Assim, após enxugar cada um, ela os vestia e os punha na cama para
dormir.
É, a nossa vida naquele tempo não
foi fácil. Certa vez, quando eu tinha oito anos, papai me pediu para que, na
volta da escola, trouxesse dois pãezinhos para minha irmã, que estava adoentada.
Um parêntese: pão lá em casa era artigo de luxo, que raramente podíamos
comprar. Então, após as aulas, fui à padaria comprar os dois pãezinhos. Era bem
de tardinha, quase anoitecendo e eu estava com uma fome danada. O cheiro do pão
fresco aguçava ainda mais meu apetite e não resisti. Comecei a roer o pãozinho
da mana ao percorrer a longa estrada até a casa. Fui pegando de mansinho e
furtivamente um pedacinho do miolo, depois mais um pedacinho e mais um
pedacinho. Ao chegar em casa, sem que eu percebesse, os pães tornaram-se dois
canudos, sobrando deles apenas a casca. A irmã, naturalmente, não gostou e foi
reclamar com o pai. Fiquei preocupado com a bronca, que certamente receberia. Mas
não. O velho calou-se numa sofrida impotência por não conseguir comprar um
simples pão para cada um dos filhos.
Essa irmã, guardiã dos
pais e acervo da memória da família, reverencio genuflexo.
FILIPE
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