sexta-feira, 2 de março de 2018

COISAS DA JUVENTUDE


Ele não estava na sala quando cheguei, onde sempre o encontro nas tardes de sexta-feira. O neto me disse com voz ‘aguada’: “O vô tá no quarto, professor! Voô! Vooooô!”. Chamava o avô, caminhando a passos bambos e seguido por mim até ele.

No quarto abafado, sobre uma cama-box sem lençol, estava o velho. Sem camisa, o suor escorria sobre seu dorso, que brilhava. O quarto pequeno, sem móveis, parecia amplo, enorme até. Na parede, uma foto de seu casamento, e na soleira do vitrô, um anjo. Não havia guarda-roupa porque as roupas, sendo-lhe escassas, cabem todas na gaveta da cama. Pedi um pano para lhe enxugar o rosto, mas o rapaz não sabia onde tinha pano. “Mãe, onde tem pano?”, gritou. “Pegue um papel mesmo”, pedi. “Aqui, o papel e o pano... Toma! Se precisar de mais coisa é só falar!” Saiu. Segundos depois, voltou: “Se precisar, é só chamar... Taaá, professor?”

Deitado no colchão, o homem estava inquieto, abrindo e fechando os olhos, num sono perturbado. Tinha diarreia e sua bermuda estava molhada. “Não é xixi, professor... É suor mesmo”, disse o moço numa de suas entradas súbitas e frequentes. E com a voz cada vez mais rala, emendou: “Não é negligência, professor. Eu cuido bem dele, taaaaá?!”, e saiu de cambaleio.

Havia moscas, muitas, que não me davam sossego, mas o velho parecia não se importar com elas. Penetravam-lhe as narinas, a boca, sugando-lhe a saliva, o suor, o ânimo. Vez ou outra, num espasmo trêmulo, reagia. Mas a mão, lenta demais, não as ameaçava.

O ar quente, espesso, tornava-se mais denso e irrespirável com um forte e estranho cheiro. Lá fora, uns jovens folgavam, bebendo, fumando, jogando cartas e “queimando um matinho”. Entre eles, uma moça e o filho de quatro anos, que brincava com uma pequena matilha de cinco cães.

Defronte à rua, sentada na soleira da porta da sala, a dona da casa era uma mulher triste. Obesa e doente, tem que cuidar do pai, do filho, dos cães, de tudo.

O velho, agora desperto, chama o neto com vigor. Pensei que fosse repreender o ‘borracho’, mas não. “O que quer, vô?...” “Compra um guaraná!” “Cadê o dinheiro?” “Tá aí, na carteira.” “Mãe, mãaaae, onde tá o dinheiro do vooô?” “Eu sei lá, menino!” “Professor, não liga não. O vô é só meu... Só eu cuido dele e muito bem! Não é negligência, não. Ele tá molhado, mas não é de xixi. Ele tá com diarreia, mas não é culpa minha, taaá?” Saiu do quarto e voltou. “Vou fechar a porta porque os cães vão entrar e atrapalhar, tá?  Dá liceeeença!” Foi-se e voltou para a mesa de jogo. “Cês tão me roubando, né?! Eu não permito, não gosto de ser roubado. Nem no jogo, nem em nada. Não goooosto!” “Para de gritar!”, interveio a mãe. “Mãe, eu não tô gritando, sou fino. Não é, amigos?... Sou finoooo!” “Não vejo ninguém fino aí”, retrucou a matriarca.

Suado, terminei de fazer a barba do amigo e sai. Passei pela mulher, que continuava na porta da casa, tomando a fresca. “Desculpa, professor. Meu menino tomou uma cerveja e meio alterado” “Coisa da juventude”, eu disse já saindo e passando a mão na testa para afastar o suor. Nisto, uma moto chega e para. Um homem tatuado, “tipo mano”, passa sem dizer palavra e afunda casa adentro. A mulher apenas observa. “Coisa de jovens”, ela deve ter pensado.

Saí e lá deixei aquela sofrida figura. Continuou sentada, olhando a rua, sobrepesada com o lento e amargo arrastar das horas.

FILIPE

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