Ele não estava na sala quando
cheguei, onde sempre o encontro nas tardes de sexta-feira. O neto me disse com
voz ‘aguada’: “O vô tá no quarto, professor!
Voô! Vooooô!”. Chamava o avô, caminhando a passos bambos e seguido por mim até ele.
No quarto abafado, sobre uma cama-box
sem lençol, estava o velho. Sem camisa, o suor escorria sobre seu dorso, que
brilhava. O quarto pequeno, sem móveis, parecia amplo, enorme até. Na parede, uma
foto de seu casamento, e na soleira do vitrô, um anjo. Não havia guarda-roupa
porque as roupas, sendo-lhe escassas, cabem todas na gaveta da cama. Pedi um
pano para lhe enxugar o rosto, mas o rapaz não sabia onde tinha pano. “Mãe,
onde tem pano?”, gritou. “Pegue um papel mesmo”, pedi. “Aqui, o papel e o
pano... Toma! Se precisar de mais coisa é só falar!” Saiu. Segundos depois,
voltou: “Se precisar, é só chamar... Taaá, professor?”
Deitado no colchão, o homem estava
inquieto, abrindo e fechando os olhos, num sono perturbado. Tinha diarreia e
sua bermuda estava molhada. “Não é xixi, professor...
É suor mesmo”, disse o moço numa de suas entradas súbitas e frequentes. E com a
voz cada vez mais rala, emendou: “Não é negligência, professor. Eu cuido bem
dele, taaaaá?!”, e saiu de cambaleio.
Havia moscas, muitas, que não me
davam sossego, mas o velho parecia não se importar com elas. Penetravam-lhe as
narinas, a boca, sugando-lhe a saliva, o suor, o ânimo. Vez ou outra, num
espasmo trêmulo, reagia. Mas a mão, lenta demais, não as ameaçava.
O ar quente, espesso, tornava-se mais
denso e irrespirável com um forte e estranho cheiro. Lá fora, uns jovens folgavam,
bebendo, fumando, jogando cartas e “queimando um matinho”. Entre eles, uma moça
e o filho de quatro anos, que brincava com uma pequena matilha de cinco cães.
Defronte à rua, sentada na soleira da
porta da sala, a dona da casa era uma mulher triste. Obesa e doente, tem que
cuidar do pai, do filho, dos cães, de tudo.
O velho, agora desperto, chama o neto
com vigor. Pensei que fosse repreender o ‘borracho’, mas não. “O que quer,
vô?...” “Compra um guaraná!” “Cadê o dinheiro?” “Tá aí, na carteira.” “Mãe,
mãaaae, onde tá o dinheiro do vooô?” “Eu sei lá, menino!” “Professor, não liga não. O vô é só meu... Só eu cuido dele e muito
bem! Não é negligência, não. Ele tá molhado, mas não é de xixi. Ele tá com
diarreia, mas não é culpa minha, taaá?” Saiu do quarto e voltou. “Vou fechar a
porta porque os cães vão entrar e atrapalhar, tá? Dá liceeeença!” Foi-se e voltou para a mesa
de jogo. “Cês tão me roubando, né?!
Eu não permito, não gosto de ser roubado. Nem no jogo, nem em nada. Não goooosto!”
“Para de gritar!”, interveio a mãe. “Mãe, eu não tô gritando, sou fino. Não é,
amigos?... Sou finoooo!” “Não vejo ninguém fino aí”, retrucou a matriarca.
Suado, terminei de fazer a barba do amigo
e sai. Passei pela mulher, que continuava na porta da casa, tomando a fresca.
“Desculpa, professor. Meu menino
tomou uma cerveja e tá meio alterado”
“Coisa da juventude”, eu disse já saindo e passando a mão na testa para afastar
o suor. Nisto, uma moto chega e para. Um homem tatuado, “tipo mano”, passa sem
dizer palavra e afunda casa adentro. A mulher apenas observa. “Coisa de
jovens”, ela deve ter pensado.
Saí e lá deixei aquela sofrida figura.
Continuou sentada, olhando a rua, sobrepesada com o lento e amargo arrastar das
horas.
FILIPE
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