Começo escrever este texto numa
manhã fria e nublada deste mês de maio. Lá fora, um bem-te-vi, que mora na
mangueira ao lado de casa, ainda há pouco estava chamando insistentemente a sua
“esposa”. O bem-te-vi mandou-se para os ares e me deixou aqui no rancho com a
Pituka e o Tiziu, que continuam enroscados em seus trapos, não sei se de lã ou
feltro. E enquanto digito este texto, a Rita Lee canta “Saúde”, dizendo: “(...)
enquanto estou viva e cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente
feliz”.
Minha história com esta cantora
começou na década de setenta e foi assim. Numa de suas férias do seminário em
Juiz de Fora, meu irmão mais velho trouxe uma dezena de pôsteres de artistas
que estavam em voga naquela época, e essas fotos foram coladas numa parede da
sala. Eram atrizes de novela e cantoras, que eu desconhecia por completo. Naquele
tempo, pouca gente na minha terra tinha televisão, e na roça, onde morávamos,
não tínhamos sequer rádio de pilha. Para nós, esse irmão era uma minicelebridade, porque era ele quem nos
trazia as “novidades da civilização”.
De todas aquelas artistas cujas
fotografias enfeitavam nossa humilde sala, eu me recordo de apenas duas: Dina
Sfat e Rita Lee. Da Dina eu me lembro só do nome; da Rita, já lembro da imagem
mesmo. No alto da parede, tal qual num olimpo, estava a Rita Lee: linda, de olhos
claros e expressivos, cabelos longos e a franja que a acompanharia até seus
estertores.
A nossa casa era de tijolos
aparentes – não por charme, mas pobreza mesmo –, mas a sala ficou
particularmente charmosa com aquela pequena galeria de celebridades. Todos gostamos
e ficamos encantados – menos papai, que chegou e mandou retirar ‘tudo aquilo
dali’.
Foi um anticlímax. Meu irmão começou
a tirar cuidadosamente uma por uma para que não rasgasse, mas em vão foi seu
esforço. As “meninas” não queriam “descer da parede” e o negócio foi retirá-las
à força.
Ficamos tristes, mas a obediência
aos pais era um imperativo na nossa família. Embora houvesse um choque geracional
entre pais e filhos, papai era sempre compreendido e respeitado por todos nós.
Pois então, semana passada Rita
Lee encantou-se. Dela fica o magnífico repertório e um legado de rebeldia e
liberdade, concordemos ou não com ela.
Para seu epitáfio, Rita escreveu:
“Ela nunca foi bom exemplo, mas era gente
boa”. Sim, Rita Lee era gente boníssima. Em vida, muito discretamente,
sempre doou suas roupas para moradores de rua. E tinha espiritualidade também.
Embora não fosse declaradamente adepta de credo algum, todas as noites, antes
de dormir, ela e seu marido faziam suas preces.
Rita Lee partiu na certeza de que
deixou um ‘monte de gente feliz’. Mas a sua ausência deixa a vida um pouco mais
triste.
FILIPE