Estava
disposto a postar um texto menos sóbrio, debochado até, mas não me pareceu conveniente
num dia como este. A Sexta-Feira Santa já foi, na devoção popular, o mais santo
dos dias santificados. As mulheres não varriam casa, crianças não podiam gritar,
os homens faziam jejum e não se falavam palavrões. Bem diferente de hoje, pois
até os botecos, que naquele tempo ficavam fechados, estão cheios de gente
tomando cachaça e comendo torresmo. Também há, por estas bandas, um estranho
evento denominado “Fecha-corpo”. Multidões se dirigem a um alambique para tomar
a tradicional pinguinha com poderes de dar proteção ao “devoto” ao longo do
ano, desde que tomada nesta sexta-feira da Paixão. Não se sabe se, além do
corpo, a tal pinga protege a alma, mas a fila é longa. Quase tão longa quanto a
famosa procissão que, na tarde deste dia, soleniza a Paixão.
Particularmente,
não costumo acompanhar procissões. Incomoda-me tanto a multidão como a lentidão
de seus passos. Prefiro ficar ensimesmado noutro lugar, mas não no boteco e
muito menos no alambique do “Fecha-corpo”. Contudo, devo confessar ao raro
leitor, já aprontei das minhas em tão sagrado dia, e meu crime permanece sem
expiação.
Na idade de
uns treze anos, adquiri uma espingarda com a qual eu costumava disparar contra
uma tábua, praticando aquilo que se denomina “tiro ao alvo”. Mas o alvo estava
sempre fora do lugar, e isso fazia com que pessoas maldosas dissessem que eu
era fraco na pontaria. Certo dia, pedi a meu pai autorização para dar um susto
num touro do vizinho que invadia nosso roçado. Seria apenas uma
“brincadeirinha”, e eu municiaria a arma com grãos de arroz ou feijão, em vez
de chumbo. O velho sorriu zombeteiro duvidando do poder de fogo de meu “AR-15”.
“Essa espingardinha não presta!”, foi a senha que eu esperava. Papai não
autorizara expressamente, mas eu me vi livre para exercer o cívico dever de
defender nossa lavoura de tão nefasto inimigo, o touro. Para tanto, usaria
munição real, chumbo.
Antes de partir para a “cruzada”, testei a “cuspideira”
mandando várias cargas naquela tábua. Aprovado seu desempenho, marchei reto e
firme para o “campo de batalha” confiando, como nunca, no poder de fogo de
minha bazuca. Chegando, vi o danado em franca atividade comendo sofregamente
nossas espigas. Olhou-me frio, sacudiu desdenhosamente a cabeça e continuou sua
refeição. Mirei seu peito e puxei o gatilho. Nada! Puxei mais uma, duas, três
vezes e nada! Observei que o dispositivo onde se encaixa a espoleta quebrara,
impedindo a detonação. Humilhado, recolhi a arma e me retirei. O touro, por
alguma razão, deixou-se conduzir pacificamente para o sítio em que morava.
Tento, à minha
maneira, nunca julgar os “hereges” do “Fecha-corpo”, nem os pinguços dos
botecos. Nunca bebi cachaça na Paixão e nem gosto de pinga por achá-la
insuportável, embora na minha incipiente juventude eu tenha tomado um ou dois
porres dessa malvada. Caso me anime, descreverei esses arroubos noutra
oportunidade.
Sei que errei
e aqui me penitencio desta nefanda culpa. Vendi a espingarda tempos depois e
nunca mais atentei contra a vida de animais, nem de ninguém. Mas aquele touro
tinha o corpo fechado. Ah, se tinha...
FILIPE