sexta-feira, 18 de abril de 2014

CORPO FECHADO



Estava disposto a postar um texto menos sóbrio, debochado até, mas não me pareceu conveniente num dia como este. A Sexta-Feira Santa já foi, na devoção popular, o mais santo dos dias santificados. As mulheres não varriam casa, crianças não podiam gritar, os homens faziam jejum e não se falavam palavrões. Bem diferente de hoje, pois até os botecos, que naquele tempo ficavam fechados, estão cheios de gente tomando cachaça e comendo torresmo. Também há, por estas bandas, um estranho evento denominado “Fecha-corpo”. Multidões se dirigem a um alambique para tomar a tradicional pinguinha com poderes de dar proteção ao “devoto” ao longo do ano, desde que tomada nesta sexta-feira da Paixão. Não se sabe se, além do corpo, a tal pinga protege a alma, mas a fila é longa. Quase tão longa quanto a famosa procissão que, na tarde deste dia, soleniza a Paixão.
Particularmente, não costumo acompanhar procissões. Incomoda-me tanto a multidão como a lentidão de seus passos. Prefiro ficar ensimesmado noutro lugar, mas não no boteco e muito menos no alambique do “Fecha-corpo”. Contudo, devo confessar ao raro leitor, já aprontei das minhas em tão sagrado dia, e meu crime permanece sem expiação.
Na idade de uns treze anos, adquiri uma espingarda com a qual eu costumava disparar contra uma tábua, praticando aquilo que se denomina “tiro ao alvo”. Mas o alvo estava sempre fora do lugar, e isso fazia com que pessoas maldosas dissessem que eu era fraco na pontaria. Certo dia, pedi a meu pai autorização para dar um susto num touro do vizinho que invadia nosso roçado. Seria apenas uma “brincadeirinha”, e eu municiaria a arma com grãos de arroz ou feijão, em vez de chumbo. O velho sorriu zombeteiro duvidando do poder de fogo de meu “AR-15”. “Essa espingardinha não presta!”, foi a senha que eu esperava. Papai não autorizara expressamente, mas eu me vi livre para exercer o cívico dever de defender nossa lavoura de tão nefasto inimigo, o touro. Para tanto, usaria munição real, chumbo.
 Antes de partir para a “cruzada”, testei a “cuspideira” mandando várias cargas naquela tábua. Aprovado seu desempenho, marchei reto e firme para o “campo de batalha” confiando, como nunca, no poder de fogo de minha bazuca. Chegando, vi o danado em franca atividade comendo sofregamente nossas espigas. Olhou-me frio, sacudiu desdenhosamente a cabeça e continuou sua refeição. Mirei seu peito e puxei o gatilho. Nada! Puxei mais uma, duas, três vezes e nada! Observei que o dispositivo onde se encaixa a espoleta quebrara, impedindo a detonação. Humilhado, recolhi a arma e me retirei. O touro, por alguma razão, deixou-se conduzir pacificamente para o sítio em que morava.
Tento, à minha maneira, nunca julgar os “hereges” do “Fecha-corpo”, nem os pinguços dos botecos. Nunca bebi cachaça na Paixão e nem gosto de pinga por achá-la insuportável, embora na minha incipiente juventude eu tenha tomado um ou dois porres dessa malvada. Caso me anime, descreverei esses arroubos noutra oportunidade.
Sei que errei e aqui me penitencio desta nefanda culpa. Vendi a espingarda tempos depois e nunca mais atentei contra a vida de animais, nem de ninguém. Mas aquele touro tinha o corpo fechado. Ah, se tinha...
FILIPE           

Nenhum comentário:

Postar um comentário