sábado, 31 de dezembro de 2022

RÉVEILLON

Estamos na virada do ano de 2022 para 2023. O momento – a que todos dão o “sofisticado” nome de ‘réveillon’ e lhe atribuem tamanha importância – para mim, e os três cães que estão aos meus pés, não faz o menor sentido. Nós quatro – Pituka, Tiziu, Tokinho e eu – achamos que esta é uma noite como todas as demais, com a diferença de que hoje haverá uma rajada de rojões perturbando a nossa paz e a de tantos – incluindo nessa conta os outros cães, gatos, passarinhos e pessoas com deficiência. 

Agora, neste exato momento, os três estão dormindo tranquilamente. Daqui a pouco, lamentavelmente, eles serão atormentados com as explosões pirotécnicas sem nenhuma razão de acontecer. Uma insanidade. 

O ano que termina foi marcante na minha vida. Nesse período, tive duas grandes e sofridas perdas; todavia, não posso negar que tive também algumas importantes conquistas. Aconteceram, contudo, rupturas tristemente necessárias; no entanto, laços importantes foram restaurados ou reforçados. De fato, o ano de 2022 será inesquecível para mim sob muitos aspectos. 

Eu queria escrever mais sobre o ano que finda, pormenorizando cada marca que deixou em mim, mas não consigo. Daqui a pouco meus cãezinhos serão despertados pelos rojões e eu preciso cuidar deles. Neste exato momento os três dormitam como que protegidos por mim, mas eu não consigo lhes dar proteção alguma. 

Na telinha do celular, o Jornal da Cultura está sendo exibido, mas a internet está falhando e a apresentadora gagueja, gagueja e gagueja. Algo no celular roda, roda... tentando conexão, e nada. Enquanto isso, vou digitando, tomando chimarrão e ouvindo um burburinho de festa, que vem de longe e me tira a atenção. 

Neste momento, a poucos minutos para a meia-noite, os cães dormem como se não houvesse réveillon. Dá dó de saber que o ‘foguetório’ vai acontecer daqui a pouco e vai revirá-los do avesso. Um pânico acometerá a todos e eu me sentirei impotente diante de tudo o que vai acontecer. Tentarei agradar com petiscos e não funcionará; darei homéricas broncas, e vai piorar a coisa; por fim, eu também ficarei com eles e como eles: atordoado, andando em círculo. 

Encerro o texto para tentar entreter os cães. Daremos uma volta no bairro? Talvez. Ah, os rojões hão de passar, e há de haver réveillon sem fogos! 

FILIPE


domingo, 18 de dezembro de 2022

FIM DE UM CICLO

Enfim, sem pesar, encerro meus dias como professor. Digo sem ‘pesar’ e sem ‘pesar’ – seja esse ‘pesar’ verbo ou substantivo. Explico.

Dia desses, na sala dos professores –  que não é bem uma sala, mas um palco, e essa parte vai sem explicação –, eu disse aos colegas que ali estavam: “Estou saindo sem pesar com ‘s’ e sem pesar com ‘z’. ‘Pesar’ no sentido de ‘medir’ os prós e os contras, e ‘pezar’ no sentido de lamento ou tristeza”.

Mal acabara de dizer essas palavras, pude perceber que uns pares de olhos me fitavam aflitos. Sem entender o porquê, supus que fosse devido à homofonia das palavras que usei com pretensa criatividade, mas não. Bem depois pude perceber que toda aquela perplexidade foi causada por minha ignorância vocabular. Não existe PEZAR no vocabulário oficial da língua portuguesa. Existe, sim, PESAR, seja verbo ou substantivo e com significados bem distintos.

Essa não foi a única deslizada deste professor perante os pares. Ainda há pouco tempo, fazendo chacota do novo ‘programa de escola em tempo integral’, que tem PEI como sigla, perguntei aos colegas se  “PEI dá certo”, provocando, claro, muitas gargalhadas. Sobre a ‘cacofonia’ na junção dessas palavras, eu lasquei um tonitruante “cacófono”. Nisso, uma professora interveio elegantemente, dizendo: “Não seria cacófato?...” “Ah, é cacófato?! Eu pensava que fosse ‘cacófono’, porque vem de ‘cacofonia’, e olhe que sempre falei assim...”, respondi timidamente, agora sem nenhuma vontade de dar risada.

Deslizes à parte, e eles me são infinitos, quero dizer que meu ciclo de vida na docência se encerra com este ano letivo. Foram 31 anos completos em sala de aula. Nesse período, convivi com milhares de alunos, centenas de professores e dezenas de gestores. Minha relação com eles foi razoável e de (quase) todos tenho excelentes lembranças. E posso assegurar que eu não teria sido tão feliz e realizado em outra profissão. Isso por que, como docente, eu pude expressar em sala de aula e nas inúmeras reuniões com colegas e gestores absolutamente tudo o que penso e acredito. É claro que minhas opiniões não foram as mais acertadas e muito menos as mais aceitas, e com um custo razoavelmente alto, resultando ao longo e ao final dessa trajetória alguns estranhamentos e rupturas. Episódios esses dos quais sequer me orgulho, embora também não os lamente.

Então, é chegada a hora de parar porque envelheci e perdi as condições de fazer um bom trabalho conforme atesta esta crônica. Sala de aula é para quem tem juventude, saúde e sonhos. Tenho saúde, mas perdi a juventude e parei de sonhar. Não acredito no tão propalado “novo ensino médio” que está sendo implementado nem nas novas concepções pedagógicas. Sempre vi o professor como protagonista do trabalho pedagógico e acredito ser ele um operário do pensamento e da palavra. Porque sem essas prerrogativas e sem liberdade, o trabalho docente será um fracasso retumbante.

Finalizo com uma mensagem (ou mantra) a todos que trabalham na educação: “Um professor intimidado e amordaçado jamais poderá formar cidadãos críticos e competentes!”

FILIPE


sábado, 3 de dezembro de 2022

PREDADORES NO WHATSAPP

 

Dias atrás, enquanto eu tentava escrever sobre o natalício de meu pai, uma mensagem no WhatsApp mudou meu foco. No canto inferior direito do computador, minha filha me perguntava se eu tinha um tempinho para atendê-la. Claro que eu tinha e mudei a tela para as mensagens do zap-zap, que brotavam céleres.

Há tempos, talvez um mês, eu soube que o celular de minha filha havia quebrado, embora ele continuasse sendo usado. Contudo, certo dia “ela” me mandou mensagem, dizendo que agora passaria a usar outro aparelho enquanto aquele seria consertado. A partir de então, ela se comunicaria comigo por outro número e achei razoável que isso pudesse acontecer, não me ocorrendo que o chip poderia ter sido transferido para o novo aparelho sem qualquer transtorno.

Bom, naquele dia interrompi a crônica sobre o papai e passei a trocar mensagens com “minha filha”, que precisava urgentemente pagar uma conta, mas com esse celular ela estava sem acesso à sua conta bancária. E disse mais: tão logo o aparelho ficasse pronto, ela me pagaria. Ah, a fatura era urgente e quente: mil quatrocentos e setenta reais!

Como minha filha anda adoentada e tem feito alguns procedimentos médicos, entendi que algo pudesse estar acontecendo com suas finanças. Pedi o pix do favorecido – que me foi passado sem demora – abri o aplicativo do banco, descarnei minha magra poupança e já ia transferindo para o número que me foi passado. De repente, pensei: e se for golpe?! Será que essa é a minha filha mesmo?...

Voltei ao zap e, muito desconcertado, confesso, propus um teste: “Filha, desculpas, vou transferir o dinheiro que você precisa, mas preciso saber se é você mesma. Estou preocupado porque uma amiga caiu num golpe (menti).” Ela respondeu com uma figurinha que denotava algo entre surpresa e decepção. Abro parênteses para confessar minha ignorância em redes sociais. Eu não entendo dessas figurinhas e costumo me atrapalhar com elas, “pagando mico”. Outro dia, um amigo ficou bravo comigo por causa de um emoji que, segundo ele, era inapropriado. Ainda assim, continuo mandando memes, emojis, gifs e todo tipo de figurinha, inclusive para o amigo bravão.

Voltando à “minha filha”, perguntei: “Fale para mim o nome de seus avós, mas quero o nome de todos eles.” Como a “minha filha” ficou em silêncio, desconfiei e mandei uma sequência interrogações. “Calma!”, foi a resposta seguida de mais emojis enigmáticos. Já quase certo de que eu estava sendo vítima de um golpe, fiquei animado e emendei: “Responda logo, porque vou fazer outras perguntas. Quero ter certeza de que você é a minha filha mesmo!”

O resto é história. A “minha filha” que falava comigo não era a ‘minha filha’, mas uma predadora, que desapareceu para todo o sempre.

FILIPE

sábado, 19 de novembro de 2022

AUSÊNCIA

 


Papai faria 92 anos neste 20 de novembro. Descobri cedo que ele gostava muito de seu aniversário. Mas descobri tarde que ele gostava de festejar o aniversário com bolo. Nos últimos anos, quando o irmão mais velho não lhe levava um bolo, papai mesmo dava um jeito. Mais de uma vez aconteceu de haver dois bolos no aniversário do papai: o dele e o do Mano Véio. Uma fartura!

Também tarde descobri que papai gostava muito de doces e de queijo. Antigamente a vida não permitia “luxos”, e na geladeira de meu pai não havia dessas iguarias. Mais antigamente ainda, na casa de meu pai nem geladeira havia. Nos últimos tempos, porém, papai tinha queijos e doces à farta numa espaçosa geladeira. Quando lhe batia vontade de comer um naco de queijo com goiabada, não importava se o almoço estava quase pronto ou se era noite alta. Papai ia à cozinha, abria a geladeira, pegava o que queria, sentava-se e se fartava como um rei.

Certa vez, papai me pediu para fazer um arroz doce. “Tô com muita vontade de comer arroz doce. Você faz pra nós?...” Claro, pai!”, respondi. Pus arroz numa panela pra cozinhar e o leite pra ferver. Papai ficava por perto, observando tudo. E, sempre que achava necessário, dava uma sugestão: “Porque você não faz assim... Deixe cozinhar mais um pouco... Ponha mais leite...” Caramelei um pouco de açúcar para dar cor ao doce e, quando fui acrescentar açúcar cristal, papai se aproximou e disse com severidade: “Não ponha mais açúcar, senão ninguém consegue comer o doce.” Obedeci. Deixei o arroz doce em fogo brando e esperei. Quando meu pai saiu, corri ao açucareiro, peguei rapidamente umas duas canecas de açúcar, despejei na panela e mexi freneticamente. Passados uns cinco minutos, o Velho estava de volta e já com um prato na mão, muito ansioso pra provar do meu arroz doce. Desliguei o fogo, destampei a panela e pus umas duas conchas cheias no prato dele. “Quer mais?”, perguntei. “Basta!”, ele respondeu. Com o prato fumegante, ele se sentou à mesa, entrelaçou as pernas como somente ele conseguia fazer, e foi mineiramente comendo pelas beiradas o doce quente. Com medo de levar pito pelo ‘doce tão doce’, fiquei de olho nele. Mas não houve bronca. Terminada a “tarefa”, ele se levantou e disse aos que estavam por ali: “O doce ficou no ponto. Se eu não estivesse aqui, ninguém ia conseguir comer, porque o Filipe queria pôr mais açúcar!”. Satisfeito, apenas sorri.

Da última vez que visitei o papai, havia uma panela de arroz doce no fogão, que ele mesmo fez. Eu quis provar, mas ele me advertiu: “Esse doce fica melhor com queijo. Provei e senti a alta concentração de açúcar. Gostei e repeti. O que sobrou, pus num pote e guardei na geladeira. Pensei: ele não vai querer mais, porque esse doce está muito doce. Vai sobrar para mim. Que nada! Mais tarde, quando voltei pra procurar o doce, um desconfiado ‘velhinho’ me disse: “Se tá procurando doce, não vai achar. Tinha um resto no pote aí, mas eu já lambi tudo”.

É... Este é o nosso primeiro ‘20 de novembro’ sem abraço nem bolo nem arroz doce nem queijo. E sem telefonemas!

FILIPE


sábado, 5 de novembro de 2022

ELEIÇÕES À ANTIGA

Sempre me vem à memória uma lembrança muito antiga, que é de quando meu pai e minha mãe vestiam suas melhores roupas para votar. Curioso, eu perguntava ao papai o que é ‘votar’. Ele me explicava, dizendo que era um direito e um dever do cidadão etc. Eu, sem saber o significado do substantivo ‘cidadão, desisti também do verbo ‘votar’. 

A eleição acontecia festivamente em Córrego Preto, um bairro rural de minha cidade. O nome oficial do logradouro é ‘Vilas Boas’, mas, por razões bastante particulares, prefiro o nome antigo.  Ou ainda, como os velhos camponeses de antanho, costumo me referir carinhosamente àquele arraial como Corgo Preto

Depois de crescido, comecei a entender mais ou menos como funciona a tal “votação” com a qual papai muito se entusiasmava. Descobri que na nossa região havia dois ‘partidos’: o ‘PR’, tendo como chefe o Zezito Marta, e o ‘PSD’, de Antônio Arruda. Lá em casa, todos éramos “Zezito”; já na casa de meu avô paterno, todos eram “Antônio Arruda”. Havia certa rivalidade entre meu pai e seus familiares, contudo sem qualquer malquerença. Na verdade, essas duas siglas existiam apenas na cabeça do povo. Isso porque o regime militar extinguira todos os partidos políticos, permitindo apenas a Arena (Aliança Renovadora Nacional) – do governo; e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) – um partido de oposição consentida pelo regime. Na nossa cidade havia apenas a ‘Arena’, mas nas sublegendas ‘Arena-1’ e ‘Arena-2’. Quem era do ‘PSD’ votava na Arena-1; já os partidários do ‘PR’, como meu pai, votavam na Arena-2. 

Lembro também que nas caravanas e comícios, o grito de guerra da turma do “PSD” era “Um, dois, três. É cento e dezesseis!” – uma referência à diferença de votos que houve numa eleição vitoriosa do Antônio Arruda. Mas, nas eleições seguintes, o “PR” elegeu Zezito Marta com uma vantagem de nove votos, e a turma do “Arruda” passou a denominar o inocente ‘número nove’ de “traíra”. 

Eu gostava daquela “festança eleitoral” e torcia pelo candidato de meu pai. O irmão mais velho também se empolgava, e certa vez ele pegou um carvão e escreveu “PR” na porta do paiol de casa. Papai chegou, viu aquilo, não gostou e mandou apagar. Embora meu pai fosse daquele “partido”, ele nunca permitiu politicagem na nossa casa, como também nunca acompanhou caravanas nem frequentava comícios. Todavia, eu me lembro de estar com ele numa reunião com muita gente. Um homem de terno subiu numa caminhonete e desandou a falar, até cansar. Não entendi nada, mas, como todos aplaudiram, também bati palmas para o falastrão. 

Noutra ocasião, fui à comemoração da vitória de alguém e havia churrasco, algo que eu conhecia só de figuras em livros.  Chegando -- eu estava com meu pai e algum irmão --, fomos para a área onde se assavam as carnes, mas lá havia muito mais gente do que comida. A custo, papai conseguiu uma vara de bambu com uns pedaços de carne espetados nela. Foi uma decepção para mim o tal ‘churrasco’, que eu pensava ser algo mais apetitoso. A carne usada deve ter sido de segunda ou de terceira. 

Lembro com saudades daqueles tempos no meu velho Corgo Preto. Embora vivêssemos sob uma ditadura, o povo parecia ser mais civilizado. Ainda quero entender o que está acontecendo com a gente. 

FILIPE


sábado, 22 de outubro de 2022

PERDENDO A PACIÊNCIA

 

“Só tem uma utilidade o pobre neste país: votar. É título de eleitor na mão e diploma de burro no bolso.”

A frase acima foi dita pelo então deputado federal Jair Bolsonaro na Tribuna da Câmara em novembro de 2013. E tem mais. No ano de 2000 ele foi ‘o único parlamentar’, dentre os 513 deputados federais, a votar contra o ‘Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza’, projeto do governo de Fernando Henrique Cardoso. Todas essas informações são do jornalista Bernardo Mello Franco em ‘Conversa de Política’, um podcast da CBN. 

Escrevo este texto pensando em alguns professores bem específicos. Sabendo que esses “professores” pouco ou nada leem, e muito menos leriam este humilde blog, reservo-lhes apenas o último parágrafo, que já é uma significativa honraria para alguém tão insignificante.

Desanimado, quase desisti da ideia de atualizar este blog. Aliás, após doze anos publicando regularmente, tenho pensado na hipótese de parar. Não sei mais o que pensar nem escrever sobre o abismo em que nos encontramos. Estamos no fundo do poço e há muita gente cavando para que possamos descer ainda mais. Assunto não me falta, mas escassa é minha inspiração de prosador. Ainda assim, de improviso em improviso, tenho marcado ponto quinzenalmente neste espaço. E o assunto desta vez não poderia ser outro: eleições!

Velho que sou, ansiava por um outono de vida mais sereno, com menos sobressaltos. Não estava no meu horizonte a turbulência pela qual passamos, a de ter no poder um degenerado moral, que poderá ficar por outros ‘infinitos’ quatro anos. Ou mais! No entanto, depois de tudo o que foi revelado sobre os métodos e ações desse ser desprezível – sabemos ser um homem comprovadamente devasso e que fomenta a violência, a destruição do meio ambiente, a corrosão das instituições, a cizânia –, como posso entender que quase metade dos brasileiros ainda possa defendê-lo?...  Não quero, de forma alguma, condenar as pessoas que, por alguma razão ou desinformação, possam apoiá-lo. Mas não consigo entender como gente supostamente esclarecida e religiosa replique o mantra bolsonarista que associa um ‘projeto diabólico de poder’ a Deus.

Todavia, escrevo com certo cuidado para não ofender pessoas simples, que votam sem muita convicção, muitas vezes cooptadas por amigos, padres, pastores, familiares ou, pior, pressionadas por patrões. Mas não quero poupar neste texto as classes média e alta. Fico angustiado ao saber que pessoas com alta escolaridade possam apoiar um apologista da ditadura, e que tem como ídolo Brilhante Ustra, um torturador do regime militar. Não dá. Há muitos “doutores”, padres e pastores além de pequenos, médios e grandes empresários, que entregam a alma a esse capiroto. É muita maldade. Essa gente sabe o que faz e por que faz.

Agora eu me dirijo àqueles professores que ainda apoiam o usurpador. Será que não perceberam que nossas liberdades estão em xeque? Nunca passamos por momentos tão traumáticos, com tanta violência e políticos desafiando publicamente magistrados. Ainda hoje a imprensa trouxe um vídeo em que Roberto Jefferson, presidente do PTB e cabo eleitoral do presidente-candidato, aparece aos gritos xingando Carmen Lúcia, ministra do STF. Para poupar o leitor, não transcrevo as palavras do “excrementíssimo”, mas não consigo poupar de críticas professores bolsonaristas. Que asco!

FILIPE

sábado, 8 de outubro de 2022

DE VOLTA À SALA DE AULA

Eu não queria retornar. Aborrecia-me a ideia de desempregar colegas que estavam me substituindo. E não foi fácil adentrar aquele prédio para lecionar depois de longa ausência. Chegando lá, assinei o livro-ponto e fui para a sala de aula, porque sempre gosto de chegar antes e fazer uma breve meditação. Recebo os alunos, que chegam normalmente em grupinhos de três ou quatro, com celular e fone de ouvido. Quase todos me cumprimentam e cada um vai para sua carteira. Alguns expressam cansaço, uns parecem eufóricos e outros são enigmáticos.

Começo a aula com um pequeno exercício, uma equação ou algo assim. Há alunos que olham para a lousa com curiosidade, e outros com indisfarçável enfado. Observo que em muitas carteiras os cadernos continuam fechados e alguns dedos deslizam freneticamente sobre a película do celular – apesar da mensagem na lousa em letras tremidas: “guarda teu celular!”

A aula flui, mas não rende. Lá atrás, dois ou três rapazes conversam animadamente enquanto uma mocinha mais à frente está debruçada sobre a mochila. Os demais alunos vão fazendo a atividade mesmo que sem muito entusiasmo. 

Ando pela sala e ofereço ajuda. “Não precisa, professor. Aqui suave!”, responde um. “Ih, não entendo nada disso!”, reage outro. E assim a aula vai se arrastando, enquanto eu penso na minha ‘hortinha de almeirão’ e no livro que comecei a ler. Adeus horta, adeus leitura, agora é sala de aula! É tentar ensinar e tentar aprender; é abastecer uma plataforma digital; é fazer chamada e lançar faltas e depois tirar as faltas para não reprovar.

Continuo percorrendo a sala para ver se a coisa melhora. Paro em frente à garota que está “desfalecida” sobre a mochila: “Oi, você não está bem?”, pergunto. Ela levanta a cabeça e me olha com fúria. “Estou bem, mas não a fim de fazer lição”. “Mas você não acha que isso é importante?” “Ah, professor, eu não entendo nada!...” “Eu posso ajudar. Vamos tentar?...” “Não quero!” “Mas você não acha que pode ficar reprovada se não fizer lições?...” “Eu venho pra escola todos os dias. Por que vou ser reprovada?! (...)” Engoli a seco um impropério e insisti: “Vamos lá. Quero te ajudar.” “Ah, professor, me deixa, vai...”

Poupei o leitor de uma frase dita e repetida pela mocinha acima, mas espero que ele possa ao menos imaginar o arco voltaico que percorreu minha espinha e fogueou toda a minha pele. Mas não desisti. Insisti perguntando se havia algo que a aborrecesse etc. Ela pareceu ainda mais indignada e respondeu quase gritando, que tudo estava bem, mas que ela não quer é ouvir perguntas. Então desisti.

Terminada a aula, vou para outra sala e lá encontro conversas ‘animadas’ sobre eleições. Um aluno me pergunta sobre o que achei do resultado do primeiro turno. Eu disse que não me posicionaria e pedi, em vão, que interrompessem aquela conversa. A situação ali era de ‘bocas abertas e cadernos fechados’. Diante disso, pedi que ao menos fingissem fazer as lições, mas nada! Nesse momento, entra a diretora e antes que ela desse algum recado, pedi que retirasse o rapaz que liderava o blablablá. Ao ser interpelado e repreendido, o rapaz disse que o professor se ofendera porque “eu falei mal do candidato dele” (!).

Cansado, vou para última etapa daquela noite. Terminando essa aula, uma aluna me pede para esperar porque tinha algo muito importante a me dizer. Esperei. Ela veio até mim e simplesmente me abraçou.

FILIPE


sábado, 24 de setembro de 2022

MENTE BAGUNÇADA


 

“Aquele que não conhece sua história está condenado a repeti-la”

Deixo para comentar a frase acima no final do texto, porque agora estou muito ocupado com minha mesa tão bagunçada, como confuso também estão meus miolos e seus parcos neurônios entrelaçados e preguiçosos. Tão preguiçosos e irresponsáveis como este computador, que fez desaparecer o texto digitado de manhã. Ele, que sempre salvou automaticamente, dessa vez me traiu.

Faz tempos que estou aguardando minha sofrida aposentadoria no conforto do lar, onde passo o tempo lendo, cuidando de meus vira-latas, fazendo pequenos serviços com madeira. Também resolvi fazer uma horta onde plantei alguns pezinhos de almeirão. Só almeirão, porque nada mais consigo produzir. A couve, o jacu devora; alface não prospera; cebolinha dá pulgão; rúcula tem ferrugem branca. Mas, para quem não tem muito jeito de hortelão, que pelo menos plante e colha almeirão. E é isso que faço com relativo êxito.

E eis que o tempo passou, minha aposentadoria não veio e terei que sair da sombra para voltar ao sol escaldante da sala de aula. E faz dias que estou tentando preparar umas aulas sem saber ao certo o que ensinar e sem ter certeza de que ainda tenho algo a oferecer. Um turbilhão de coisas passa pela minha cabeça. Minhas noites mal dormidas são invadidas pelos fantasmas das lousas, apostilas, planilhas, atividades, relatórios e as intermináveis reuniões. E tem mais. Há as enfadonhas palestras de uns tais especialistas, uma gente pernóstica que nunca deu aulas ou fugiu da sala de aula ou de lá foi expulsa. São seres patéticos, com fumos intelectuais, que usam neologismos à larga, mas tropeçam no próprio vocabulário.

Agora, voltando à frase que abre a crônica, preciso dizer algo sobre ela. Quando eu fazia o antigo segundo grau, hoje ensino médio, um professor nos apresentou a frase e atribuiu a Hegel sua autoria. Mas parece que o autor não é Hegel, mas Burke. Para mim, no entanto, não importa quem a fez nascer, mas sei que ela nos faz crescer. Manuscrevi essa ‘máxima’ numa cartolina e fixei na parede de meu quarto para que eu nunca perdesse de vista tal advertência. E é exatamente sobre isso que pretendo falar.

Se os professores tivessem mais autonomia didática e fossem estimulados, e até mesmo obrigados, a ler os clássicos, estaríamos bem melhor. Um professor precisa ler cotidianamente artigos e livros sobre artes, ciências, literatura, humanidades etc. e não baboseiras pedagógicas. Todos precisamos conhecer ao menos a história recente de nosso país. Precisamos saber o que foram as ditaduras e o que faziam seus agentes. Mas parece que há uma conspiração oficial contra o desenvolvimento do pensamento crítico. O resultado está aí. Gente supostamente esclarecida acreditando que a terra é plana, que o STF é comunista e que os militares serão os nossos redentores.

Bom, sei que sem conhecimento não há salvação, mas o que eu preciso mesmo é organizar a minha mesa, as minhas ideias e preparar as minhas aulas.

FILIPE


segunda-feira, 12 de setembro de 2022

CHATEAÇÕES

 

Começo a escrever este texto na "sala vip" da viação Cometa, no Terminal Rodoviário do Tietê, em São Paulo. Daqui a pouco, por obra do acaso (ou do descaso), embarco para Juiz de Fora. Tenho rodado bastante ultimamente, e essas viagens têm me causado algumas alegrias e variados aborrecimentos. Hoje, quero falar de perrengues, porque dizem que a vida sem um pouco de tédio não tem muita graça. Todavia, se assim for, prefiro uma vida nada engraçada, mas sem tédio. Xô, inhaca!

Não sei por quê, mas quando saí de casa para pegar o primeiro dos três ônibus, que comporiam meu périplo, eu estava sem máscara. E é meu costume sair com aquele trapo charmoso na fuça. Chegando à rodoviária e sabendo da obrigatoriedade, procurei a máscara nas minhas tralhas, revirando a mochila e nada! Eu sabia que tinha posto uma dezena delas junto às minhas roupas. Como não encontrava, pedi ao motorista que me deixasse embarcar e lá dentro eu a acharia com calma. Ele me disse um 'não' com tanta força, que seria preferível um bofetão. Impactado, saí da fila e me sentei para outra vez procurar as tão necessárias e fugidias máscaras. Abri a já tão humilhada mochila e expus suas entranhas. Caiu blusa, rolou para longe uma trouxinha de meias e até uma despudorada cueca foi ao chão. Mas as máscaras... nem sinal delas. Voltei ao motorista, que já estava ao volante e pronto para dar partida, e implorei: "Deixe eu entrar sem máscara. Eu tenho, vou achar e vou pôr..." Ele, do alto de seu imperial poder, indiferente à minha aflição e com indisfarçável deleite, respondeu frio: "Você tem ainda três minutos. Vá ao guichê e compre uma!" Subi a rampa e pedi a máscara, que me custou doídos três reais.

Ornado agora com uma "focinheira" preta, que na pressa pus de ponta-cabeça, entreguei o bilhete de embarque e entrei ainda mais chateado, porque dentro do ônibus havia gente sem máscara. Sentei, abri a mochila para pegar um livro, mas não achei livro. Achei máscaras!!! Tive vontade de socá-las. Aconcheguei-me na poltrona, sosseguei a alma e adormeci.

Três horas depois, eu chegava a Sampa. A passagem estava marcada para as 'cinco e meia da tarde', mas cheguei ao embarque dez minutos antes. Quando entrei na fila, um ônibus aguardava os passageiros, mas não seria aquele. Perguntei a um funcionário pelo meu ônibus e ele disse: "Tá vindo!" Esperei dez, quinze, vinte minutos e voltei lá. Ele de novo: "Tá vindo!"

O tempo foi passando até que apareceu outro funcionário dizendo: "Seu ônibus já foi!" "O queeeê?!", desabei. Segurando o riso, ele disse: "Eu passei aqui e chamei umas três vezes."  Retruquei, dando início a um bate-boca:  "Chamei várias vezes." "Não, isso não aconteceu" "Chamei, sim." "Não chamou." "Sim." "Não."

Os ânimos se exaltaram, perdi a compostura e disparei: "Estou velho, mas não estou doido! Não teve ônibus e vou mandar um e- mail para a empresa!" Nisso, o sujeito afinou: "Por que o senhor não vai lá em cima e pede nova passagem?... Mas fale que chegou atrasado." "Posso ir, mas não quero mentir. Vamos juntos?..." "Não, eu não posso sair daqui."

Fui,  expliquei o acontecido e o funcionário do guichê reconsiderou minha passagem perdida, convertendo-a numa espécie de vale para ser usado noutra oportunidade.

Pois é... Mudei minha rota porque o rapaz disse que perdi o ônibus, mas foi o ônibus que me perdeu. Perdi foi a paciência. Mas não perdi a razão e recuperei a paz numa viagem em que houve encontros, reencontros e nenhum desencontro.

FILIPE 

sábado, 27 de agosto de 2022

DESARMAI-VOS!

De pequeno, eu já sonhava com uma arma. Comecei com arco e flecha feito de bambu, depois evoluí para canivete, faquinha de ponta, espingarda e... Parei na espingarda, interrompendo uma trajetória que teria me levado a uma cobiçadíssima ‘garrucha calibre 22’.

Meu primeiro canivete foi um presente de meu pai quando completei dez anos. Lembro bem do dia em que meu irmão mais velho e eu fomos à cidade com o dinheiro dado pelo Velho, que seria a conta de pagar o presente. Era um domingo de verão com céu nublado e chão molhado. Após caminhar por mais de hora numa estrada barrenta, chegamos à vendinha do Jurandir, em Guiricema, e compramos os canivetes. O meu irmão escolheu um com cabo branco e o meu tinha o cabo em tons escuros.  Aquele foi um dia de grande contentamento para mim, porque com um canivete no bolso eu passei a me sentir um homem feito. Naquele tempo era assim mesmo. O passaporte masculino para a idade adulta era uma pequena arma ou cigarros.  

A história da espingarda foi diferente. Mas antes da espingarda, preciso contar outra história. Depois do canivete, eu queria “evoluir” e desejava uma ‘arma de fogo’, chegando a fazer uma artesanalmente. Peguei um cano de guarda-chuva e um pedaço de madeira. Depois amassei e dobrei uma parte do cano e lavrei a madeira até que ela ficasse com cara de coronha. Enfim, fiz uns encaixes, amarrei o cano na coronha com arame e usei um elástico para fazer com que o gatilho pudesse ser armado e disparado. Pronta a minha “bazuca” eu precisava testá-la. Comprei pólvora, chumbo e espoleta. Soquei a pólvora com uma boa carga de chumbo e saí em busca de um alvo, mas não tive coragem de puxar o gatilho. O cano me pareceu muito frágil e aquela maçaroca explosiva poderia me chamuscar a fuça. Desisti.

Agora a espingarda. Quando eu tinha uns quinze anos, procurei um tal Chico Alfredo, que tinha uma espingarda para vender. Ah, você não sabe quem é o Chico Alfredo? Não se preocupe porque eu também não sei. Mas isso não importa. Antes de me encontrar com aquele armeiro, pedi permissão ao meu pai. Aqui umas observações: não sei como tive coragem de pedir autorização ao papai para comprar uma espingarda, não sei como meu pai pôde me autorizar a possuir uma arma e não sei como o Chico Alfredo teve coragem de armar um moleque. Estava tudo errado, mas como papai sempre confiou em mim, consegui comprar a espingarda e dei alguns tiros com ela. Passado um tempo, dei fim naquele troço e mudei meus planos, que se tornaram pacifistas.

Hoje, já homem velho, exorto a todos que se desarmem. Arma é eficiente para atacar e não para se defender. Até fins dos anos noventa, havia uma propaganda institucional sobre segurança pública dizendo: “Nunca reaja a um assalto”. E as estatísticas apontavam que em 18 reações, o placar dava ’17 a 1’ a favor do bandido. Até aquele tal Jair que se diz Messias já teve sua arma levada por um assaltante.

Infelizmente está de volta a sanha armamentista. Nos últimos três anos, segundo alguns estudos, o número de armas com a população civil foi multiplicado por seis, havendo mais armas com o povo do que com as forças de segurança. Pergunto: quais bandidos estão lucrando com isso?

FILIPE

sábado, 13 de agosto de 2022

DIA DOS PAIS

Dia desses, conversando sobre meu velho pai e as dificuldades por que passamos ao longo da vida, observei que papai plantou abundantemente, cultivou com esmero e nos deixou fartura. Graças a ele, eu disse, temos hoje generosa colheita. “Sim, devemos colher, mas não podemos esquecer de semear também”, ouvi e concordei dizendo que vamos colher as espigas, debulhá-las e semear os grãos!

Metáforas à parte, papai deixou um rico legado de trabalho, honestidade e desprendimento. Em mais remota memória, vejo meu pai lavrador: cultivando roças de milho, arroz e feijão; pedreiro: assentando tijolos, tirando nível e prumo; carapina: lavrando madeira com enxó, plaina e formão; enfermeiro: aplicando injeções, enfaixando braço quebrado (o meu); professor: lecionando, alfabetizando vizinhos e filhos; rezador: rezando terço em velórios e promovendo reuniões para oração na redondeza.

Esse era meu pai: um homem de oração e de ação, mas não só. Papai vivia sempre apertado financeiramente. Adoentado, tinha esposa doente e muito filhos para alimentar, vestir e educar. O que ele plantava e colhia nem sempre era suficiente, fazendo com que se endividasse na vendinha no Tatão Aleixo, onde  comprava fiado. De vez em quando, também pegava um dinheirinho emprestado com seu compadre Tatão Tibúrcio. Contudo, papai cumpria à risca todos esses compromissos. Muitas vezes ajudei levar frangos para vender. Eram umas aves tão magras, que pouco rendiam, e esse pouquinho ficava lá na venda para abater a dívida, que só crescia. E assim, sempre que recebia uns ‘cobres’ por um serviço prestado ou por algo que vendesse, papai ia pagando as contas, evitando o constrangimento de uma cobrança.

Num passado muito distante, a vendinha do Tatão Aleixo fora de meu pai, onde se vendia o básico para as famílias rurais da redondeza. Tinha lá macarrão, querosene, alho, cebola, açúcar, sal etc. E como toda vendinha rural decente, tinha pinga também! Naquele tempo, papai teve dissabores com seu comércio – não com os cachaceiros, mas com os caloteiros. Lembro que em casa havia um rolo amarrado por um barbante contendo muitas dezenas de papéis nos quais eram marcadas as despesas não pagas pelos clientes. Papai nunca foi atrás de seus devedores, talvez porque fossem todos muito pobres e deles se compadecesse.

Um caso mais recente e de grande relevo se deu na venda de um gado. Papai confiava no comprador e lhe vendeu várias reses. Aconteceu que aquele senhor sofreu um golpe de um mercador e então repassou o prejuízo para frente, e um dos “premiados” foi meu pai. Houve quem fosse atrás do homem, confiscando qualquer coisa que ele tivesse a fim de minorar o prejuízo, mas meu pai ficou quieto e não o incomodou. Certa vez, meu pai entrou na agência bancária para receber o benefício, viu o devedor lá. O homem ficou tão desconcertado diante de meu pai, que parecia estar procurando um buraco para se esconder. Então papai se aproximou, pôs a mão no ombro dele e lhe disse: “Olha, fique tranquilo. Eu sempre confiei em você e sei que você vai me pagar. Pode tocar sua vida em paz, porque eu estou bem e posso esperar o tempo que for necessário”. O homem, tomado de espanto, agradeceu emocionado ao meu pai e saiu ruborizado da agência. Papai sempre dizia se sentir muito feliz por ter conseguido aliviar um pouco o fardo que pesava sobre aquele homem, que poucos dias depois teve morte súbita.

Neste Dia dos Pais, papai não está mais aqui para receber meu abraço. No entanto, sua presença é seu legado, que tento abraçar.

FILIPE


sábado, 30 de julho de 2022

FOFOQUEIROS

 

Concordo com o amigo: fofoca é um problema sem solução.

Estava para mais de dois anos que eu não o via. A última vez que nos encontramos foi antes da pandemia. Apavorado com a moléstia que se alastrava, refugiei-me num arrabalde bem afastado do burburinho da cidade e não mais me encontrei com o amigo. Dia desses precisei ir à casa dele e lá cheguei no meio do dia. Apertei a campainha e esperei por largo tempo, talvez uns dois ou três minutos. Ele, um “animal noturno e solitário”, foi despertado em horas inoportunas, e isso deve tê-lo aborrecido bastante. Assomou-se à porta, lançando-me um olhar sonolento e nada amistoso, mal respondendo ao meu bom-dia. Perguntei como ele estava, se seus pais estavam bem etc. –  essas perguntas corriqueiras e desimportantes que são feitas por gente educada ou, no meu caso, sem assunto.

O amigo apenas disse que estão todos bem, e não foi além disso. Depois ficou estacado como uma fera acuada, fixando-me uns olhos cansados e entediados. Permaneceu no umbral da casa com as mãos no bolso enquanto me observava, talvez querendo me mandar embora.  Eu pensava que ele estivesse com saudade de nossas conversas. Não com saudade de mim, claro, porque saudade nem existe. Mas talvez um desejo de falar sobre coisas prosaicas, como fazíamos nos tempos pré-pandêmicos.

Enfim, o rapaz desembuchou e desembestou a falar. Reclamou dos políticos, dos passantes, do comércio, da carestia, de tudo. No entanto, o que mais o incomodava é a tal ‘fofoca’. Dizia ele que a cidade está cheia de gente fofoqueira. Um dia no supermercado, ele contou, havia uns três funcionários que, em vez de trabalhar, ficaram parados que nem jeca, observando o povo que entrava. Entreolhavam-se e diziam algo que, na opinião deste meu amigo, é fofoca. Ele consegue reproduzir o que, na sua imaginação, seria o que os moços teriam dito.  “Aquele ali eu conheço. Mora na minha rua e é um tranqueira. Não trabalha e vive às custas da mãe diarista. Aquela moça de blusa preta gosta mesmo é de namorar. Deve ter uns três namorados e cada dia sai com um.  A mulher de óculos, aquela gordinha que anda mancando, é uma coitada. Foi abandonada pelos filhos e, recentemente, perdeu o marido pela covid. Aquele de bermuda cinza é outro. A namorada não gosta dele, e acho porque ele é muito feio”.  Finalmente, o amigo me disse que não quer mais morar nessa cidade. Quer ir para outro lugar, mas para onde?..., indaga. Nenhum lugar presta, porque fofoqueiro tem em toda parte, completou.

Sem poder resolver o problema do amigo, concordei com tudo que ele disse. Antes de sair, no entanto, aconselhei ser melhor desistir da mudança, porque fofoqueiro e coronavírus tem em todo lugar.  

Despedi-me dele e fui andando devagar, tentando digerir aquelas informações. Já um pouco distante e como bom mineiro que sou, olhei para trás. Lá estava o amigo na mesma posição: parado, pensativo e com as mãos no bolso.

FILIPE

 

sexta-feira, 1 de julho de 2022

ESQUENTANDO O FRIO

 

Faz frio. Meus cães não reclamam, mas tremem. Peguei umas madeiras velhas, podres até, e pus no fogão. Eles ficaram me observando, curiosos, cada um no seu cantinho. Acendi o fogo. Parece que gostaram, embora a Pituka, incomodada com a fumaça, pedisse para sair. Então abri uma fresta na janela e a fumaça se dispersou.

A cozinha ficou quentinha e meus três cãezinhos: Tokinho, Tiziu e Pituka puderam dormir em paz.

Mas o que dizer sobre os milhares de pessoas nas calçadas de pequenas, médias e grandes cidades?...


                                                                                 Este é o Tokinho 


Esta é a Pituka  


Este é o Tiziu 




FILIPE






sexta-feira, 17 de junho de 2022

PESADELO

 

Eu estava num campo de pastagem e mata, numa região montanhosa, acompanhado de um irmão e uma moça, que não consigo lembrar quem. Em certo momento, sem que percebêssemos a tempo, um touro se desgarrou do rebanho e partiu em nossa direção. Sem saber o que fazer nem se haveria algo a ser feito, corri morro acima, deixando para trás o casal. O touro me escolheu, gostou de mim, e quanto mais eu corria, mais ele se aproximava, chegando a bafejar o vento quente de suas ventas nas minhas costas. A custo e extenuado, cheguei a um sítio e percorri sua cerca até uma abertura por onde entrei. O touro me seguiu, entrando logo atrás. Continuei minha carreira à beira da cerca de arame farpado, cujos fios extremamente esticados faziam-na intransponível. O touro continuava no meu encalço e eu já não tinha forças para escapar de suas guampas. De repente, vi num ponto da cerca um pequeno vão por onde passei para o outro lado, rolando no chão. Foi a conta de eu passar para que o marruá chegasse. Ele parou, me fixou bufando e começou a forçar a cerca cujos mourões estalavam. Pensei: se ele der a volta para me pegar, eu passo por baixo da cerca e fico livre novamente. Mas se ele resolver pular ou quebrar a isso aqui, vai me pegar e estarei morto. Mas o touro deve ter se compadecido de mim, porque me deixou de lado para continuar sua maratona morro acima.

Desci e encontrei meus companheiros, que pareciam se divertir com minha desdita. Olhamos para cima e avistamos ao longe o touro, que continuava subindo a montanha, mugindo pavorosamente. Um pouco abaixo havia uma mata fechada com umas incrustações rochosas. Entramos naquela mata, descendo por uma trilha estreita entre rochedos. Eu estava à frente do grupo e minhas pernas bambearam quando me deparei com outra fera. Dessa vez não foi um touro, antes fosse, mas um felino enorme, colossal. Visto de perto, e eu estava perigosamente próximo daquele animal, pensei que fosse um leão. Por óbvio não era leão, mas talvez uma onça-parda. O bicho estava deitado na trilha por onde passaríamos. Parecendo sonolento, ele nos olhou sem curiosidade e sem se mover. Havia perto de mim uma pedra, que fiz menção de jogar naquele monstro, mas fui desaconselhado a fazer isso. Seria temerário agir assim, mas o que nos resta se a morte é iminente?... Ficamos parados, pensando no que fazer, por uma eternidade de alguns segundos. Voltamos pela mesma trilha e tentamos nos esconder numa maloca de pedra para ver como lidaríamos com aquela situação. Mal chegamos ali e a onça já apareceu para um ‘acerto de contas’. Ela se posicionou na entrada da maloca, pronta para nos atacar, e nós não tínhamos por onde escapar. Naquele momento eu só pensava em como deveria ser doído morrer dilacerado pelas mandíbulas de um felino. Meu pensamento era macabro: por onde ela começaria o banquete, que parte de meu corpo ela comeria primeiro?... Mas eu tinha nas mãos um pequeno bastão e decidi lutar com ela. Sem alternativa, armei o porrete para lhe dar um golpe, mas ela se antecipou e minha ‘arma’ caiu.

E foi justamente nesse momento que acordei. Ufa!

FILIPE

sábado, 4 de junho de 2022

FILHOS REVERENTES

 

Eu estava numa rodoviária quando uma conversa me chamou a atenção. Na fileira de bancos atrás da que eu me encontrava, uma senhora falava com o filho numa chamada de vídeo. Soube que é ‘chamada de vídeo’ por que, curioso, espichei os olhos para trás e vi, em tela cheia, um rapaz de cabelo raspado nas laterais e barba por fazer. A conversa era mais ou menos esta: “Filho, não fale assim comigo. Sou sua mãe!” “Tô falando besteira?... Não tô. Tô falando na moral e você vem com esse mi-mi-mi.” A conversa continuava cada vez mais áspera. A mulher falava baixo, tentando ser discreta, mas o rapaz gritava, e ela parecia não saber usar o botão do aparelho para controlar o volume. Por último, quando ela se levantou para pegar o ônibus, que acabava de chegar, ainda pude ouvir: “Vocês, meus filhos, me tratam como se eu fosse sua irmã. Acho que nem irmã, mas uma qualquer. Nunca me ouvem com atenção e sempre me dão bronca. Eu não sou criança e estou cansada de levar zanga de filhos. Nunca falei assim com minha falecida mãe, que Deus a tenha, e nem com meu pai, a quem trato com todo carinho.”

A cena com aquela sofrida senhora me fez pensar no momento que minha família vive. Lembrei de meus irmãos, que sempre trataram os pais com profundo respeito. É claro que o ‘respeito’ é um sentimento que se adquire na maturidade. Inicialmente, a criança obedece por hábito ou por medo. No nosso caso, tínhamos medo da cinta, do chinelo, do cabo de vassoura. Isso porque papai, quando necessário, usava o cinto; a mamãe usava o que tinha à mão. O respeito veio depois, na pós-infância. Finda a mocidade, e já beirando a velhice, aquele medo –  que se transmudara em respeito, depois admiração – tornou-se agora reverência.

Sobre nossa relação com o pai, ocorreu um episódio que se tornou um célebre ‘causo de família’. Antes, preciso dizer que lá em casa não fincávamos um prego na parede sem que meu pai permitisse. Digo ‘fincar prego’ porque na minha infância martelar prego na parede era um sonho de consumo de raro prazer. Com um prego e um martelo nas mãos, eu era um garoto feliz e poderoso, e as paredes tremiam à minha volta.  Contudo, o fato narrado abaixo não tem nada a ver com prego na parede. A ele.

Papai mantinha uma fruteira no canto da cozinha, que impedia abrir uma das portas do armário. Um irmão de ‘mente brilhante’ teve a luminosa ideia de mudar a fruteira de lugar e contou com o apoio de outro irmão. Os dois ‘gênios’ fizeram a arrumação sem que papai tomasse conhecimento. Quando o Velho viu aquilo, ficou uma fera. “Não quero que tire nada do lugar onde eu pus. Se quiser fazer mudança, faça na casa de vocês. Aqui não!” Dito isso, imediatamente a fruteira voltou para o lugar de origem e lá está sem que alguém ouse ‘incomodá-la’.

Bom, em casa nós somos onze irmãos, e embora possa haver alguns “fios desencapados” na relação, vivemos harmoniosamente – o que muito alegrou meu pai, que era o cimento que nos unia. Papai partiu e mamãe, com toda sua fragilidade, passou a ser o centro agregador da família. Mas um detalhe muito importante nessa nossa relação é a ‘devoção’ que temos pela irmã mais velha. Todos, do caçula ao primogênito, nunca fomos deselegantes para com essa irmã a quem consideramos uma segunda mãe.   Essa moça, que carinhosamente chamamos de Mana-Véia, conta com o nosso carinho e a ela todos somos reverentes.

FILIPE

sábado, 21 de maio de 2022

RELEMBRANÇAS

 

Retornei à casa de meus pais, mas dessa vez não encontrei o Velho à porta da sala, na varanda de casa – a recorrente imagem num canto de minha memória, em registro da última vez que estive aqui. Todavia, encontrei mamãe, que, desde a despedida de papai, está falante e interativa, e não se sabe por quê.

Dias depois de minha chegada, numa manhã fria e ensolarada, repeti o último trajeto que fiz com papai numa ida à cidade. Caminhei até a estrada e esperei a van, que chegou dez minutos depois. Entrei e dei uma nota de dez ao motorista. Ele me devolveu três reais de troco, certamente lembrando da última vez quando papai pagou as duas passagens com uma nota de vinte e recebeu, como troco, três notas de dois. Caminhei até o fundo e me sentei sob olhares curiosos e alguns cochichos [esse aí é filho do Zelope...].

Abri o livro que levava comigo, mas não consegui me concentrar na leitura. Passados poucos minutos e depois de muitos solavancos, já estava eu desembarcando na praça da cidade.

Como da outra vez com meu pai, entrei na igreja para uma breve visita aos santos e rumei para o bairro da Taboa. Percorri a longa rua, um pouco íngreme e sinuosa, que faz ligação do centro com o bairro – a rua que papai, num passado distante, tantas vezes palmilhou descalço para visitar sua mãe. Observei aquelas casas – muitas só antigas, enquanto outras antigas e velhas – cujas muitas histórias meu pai, caminhando comigo, ia contando. Terminado o percurso da rua principal, entrei à direita e peguei a denominada ‘rua de baixo’. Findo mais esse percurso, cheguei a uma antiga edificação, agora em ruínas. Paro e me perco nuns devaneios. É uma antiga casa de venda com pé-direito alto, uns quatro metros talvez. Contei nove portas para a rua, todas de duas bandeiras. Quis contar as janelas – uma dezena talvez – mas desisti de conferir, pois me perdi nas portas e não quis recontar as janelas. Uma janela estava destruída e por ela pude contemplar o interior da casa. As paredes intactas de um azul profundo, estonteante. Mas o telhado já quase não havia, e uma trepadeira revezava suas folhas com algumas telhas. Fiquei por um momento ali, parado, imaginando o quanto de vida já pulsou sob aquele teto. Quantas crianças correram e tropeçaram nos corredores, talvez brincando de esconde-esconde. Daquela casa, apenas sei que pertenceu a um primo distante de meu pai e que era fabricante de carros de boi.

Dou mais uns poucos passos e entro na casa de minha tia, uma ‘’senhorita’’ de poucas palavras e muitos gatos, que encontro na varanda da cozinha, tomando sol após o café da manhã. Insisto um pouco e ela aceita fazer uma breve caminhada. Com alguma dificuldade, a tia ainda anda. Subimos a rua e cruzamos com uma senhorinha de bengala. ‘’Ô diacho... Aquela ali tá bem perrengue!...’’, a tia disse e eu concordei. Papai teria dado boas risadas.

FILIPE

sexta-feira, 6 de maio de 2022

CONVERSA COM A PITUKA

 

Estou aqui, sofrendo para atualizar o blog. Na minha companhia está a Pituka, que parece curiosa para saber o que escrevo. Viro para ela e falo que a “coisa tá preta”. Ela me olha desconfiada de que a coisa não esteja tão preta assim. Afinal não lhe falta água, ração nem carinho – e tudo isso ela tem de montão.

Não, Pituka. Você não sabe de nada. As coisas estão muito ruins, sim. Temos um sicário na Presidência, que quer dar o golpe e interromper nossa frágil democracia; muitos de nossos parlamentares são venais; alguns procuradores, não poucos, são tíbios; e os magistrados, uma boa parte deles, são ineptos.

A Pituka levantou-se, deu uma volta em torno de si, deitou novamente e bocejou.

Ah, entendi. Você até concorda que as coisas não estão bem, né Pituka?... Você sabe quem é o presidente, mas não sabe o que é ‘sicário’. Eu explico. O dicionário dá como sinônimo de sicário: assassino contratado, pistoleiro, malfeitor. Agora que a Pituka já sabe o que é sicário, acho que ela quer saber mais.

Você, Pituka, sabe que temos parlamentares, mas por que são ‘venais’? Bom, o dicionário dá como significado de ‘indivíduo venal’ aquele que se deixa subornar, quem é corrupto ou que se vende.

A Pituka, pelo jeito, continua sem entender. Eu disse que nossos procuradores são tíbios. Mas o que é ‘tíbio’? De volta ao dicionário. Ser tíbio é a mesma coisa do que ser fraco, morno, sem entusiasmo ou indolente. Mas a Pituka quer saber ainda mais. Eu disse que há juízes ineptos. Por que inepto? Bom, um indivíduo ‘inepto’ é aquele de quem se diz ser pouco inteligente, ingênuo ou estúpido.

A cadelinha achou o assunto muito chato e saiu antes de eu terminar a explicação.

Continuo, agora sem a Pituka e com um monte de dúvidas. O que será de nosso país?... Neste ano teremos ou não teremos eleições?... Havendo eleições, quem ganhar assume ou não assume?... As forças armadas (com minúsculas aqui) garantirão o funcionamento das instituições democráticas ou elas já foram cooptadas?...

Ultimamente, tenho estudado bastante História do Brasil, mais particularmente a Primeira República, que começa com Deodoro da Fonseca, em 1889, e termina com a chegada de Getúlio Vargas, em 1930. Naquele período, os ataques à democracia começavam sempre com decretação de “Estado de Sítio”, quando as garantias constitucionais são suspensas e a polícia age de forma desenfreada. E é exatamente isso que prevejo para nós em outubro. O “Inominado”, percebendo que o segundo turno lhe será desfavorável, decretará, não ‘Estado de Sítio’, mas ‘Estado de Exceção’, que é ainda mais traumático. Para tanto, ele contará com uma horda de fanáticos além de militares, parlamentares e milicianos.

É, eu estou bastante incomodado com tudo isso, mas a Pituka não está nem um pouquinho preocupada.

FILIPE


sexta-feira, 22 de abril de 2022

A DESPEDIDA DE PAPAI

 


“Meu pai estava muito doente, deitado numa cama, e me chamou para pedir água. Eu trouxe o copo e ele se ajeitou, sentando-se apoiado à cabeceira, e bebeu todo aquele copo d’água.”

A imaginária cena acima, que me era recorrente desde há muitos anos, foi quase uma antevisão da derradeira vez em que estive com meu pai. Nesse nosso último encontro, aquela cena veio real, e com tintas surrealmente fortes. Papai estava no leito de uma UTI com cateter de oxigênio, monitores cardíacos e outros apetrechos. Naquele momento doloroso eu estava amparado pela companhia de um irmão, o Freizinho. Estávamos para viajar naquela noite e passamos no hospital para despedir de nosso bom velho – uma cortesia da equipe gestora da UTI, que nos permitiu entrar fora do horário de visitas.

Entramos e percebemos que o quadro de nosso pai se agravara consideravelmente. Fizemos uma oração acompanhada por ele em silêncio e de mãos postas. Falamos sobre a mamãe, dizendo que ela, já de alta daquele mesmo hospital, encontrava-se muito bem. Papai, emocionado e num gesto de agradecimento a Deus, fechou os olhos e ergueu as mãos em prece.

No pouco tempo que permanecemos ali, uma imensidão de sentimentos me aconteceu. Foram dez minutos apenas, mas de tão ternos que me são eternos. Falávamos sobre assuntos prosaicos numa vã tentativa de amenizar o drama quando, num certo momento, sem conseguir dizer o que desejava, papai apontou para uma mesinha móvel um pouco afastada. Trouxemos a mesinha para perto e ele apontou para o copo sobre ela. Peguei o copo, que tinha um fundo de água e um canudinho, e tentei dar a ele. Permanecendo deitado, papai afastou brevemente a máscara de oxigênio e tentou beber. O canudinho não colaborava, mas, ainda assim, consegui fazer com que ele tomasse uns dois ou três goles. Depois, com um aceno e tentando sussurrar umas palavras de agradecimento, meu pai dispensou a água e reposicionou a máscara. Naquele momento, cumpria-se aquela minha antiga “profecia”. Gelei.

Despedimo-nos e pedimos a bênção, que nos foi dada com um longo aperto de mão. Dissemos que estávamos indo para a rodoviária e que viajaríamos logo em seguida. Com muito esforço, papai conseguiu dizer uma frase – a última que dele pude ouvir: “Ninguém está longe, porque estamos todos nas mãos de Deus!”

O resto é história conhecida. As crises respiratórias atribuídas à suposta ansiedade; a incessante busca por socorro médico; os chás; as muitas preces; o diagnóstico de enfisema. Depois a internação: papai passando por uma capela do hospital e fazendo ali sua última prece diante do Santíssimo; a caminhada por longos corredores; a subida por intermináveis rampas; o último encontro com a esposa (ela também internada ali); as últimas palavras à amada [“Juracy, agora vou ficar aqui também, pertinho de você, viu?...”]; as paradas para descansar e acertar a respiração cada vez mais difícil; a chegada ao seu quarto no terceiro pavimento; o repouso no leito da enfermaria; uma dispneia respiratória; a descida para a UTI; o fim na UTI.

No dia 13 de abril, três dias depois daquele nosso último encontro, papai estava sendo velado. Aquele homem, que eu supunha imortal e com quem sempre pude contar nas horas mais atribuladas, estava agora inerte, com as mãos sobre o peito, entrelaçadas e frias, e os olhos para sempre cerrados. No entanto, a indefinível expressão de serenidade de meu pai atestava seu dever heroicamente cumprido ao término de uma longa jornada.

FILIPE


JAMAIS ESQUECEREI

É manhã de sexta-feira e acabo de falar ao telefone com meu pai. “Estou muito agradecido a você por ter me internado, ele disse”, e continuou: “Desde a hora em que cheguei aqui, não tive nenhuma crise, nem tosse... nada! Estou muito bem.” 

Essa passagem me evoca uma memória bem antiga. Volto-me à longínqua década de 1960, quando, há 54 anos, era papai quem me internava nesse hospital. Eu era um garoto que tinha seis anos, febre alta e um montão de bichos-de-pé. Tinha também mão inchada, pés putrefatos e um corpo vergado de dor. 

Lembro perfeitamente do dia em que meu avô Sebastião veio a minha casa e me viu doente. Vovô decidiu pela minha internação, pegando-me e me levando ‘na cacunda’ até a estrada, onde esperamos a ambulância que me levaria a Visconde do Rio Branco. Papai me acompanhou até o São João Batista, onde fui internado – o mesmo hospital em que se encontra meu pai. Meu pai, não. Meus pais. Porque mamãe também está “hospedada” lá. Ele no 301 e ela no 202. 

Surpreso com a recuperação de minha mãe, o médico disse poeticamente: “Ela chegou uma ‘folha de papel’ e já está uma ‘flor de lótus’!” 

Nunca me esquecerei dos momentos dolorosamente vividos na internação de minha mãe. Aquele corpo gordinho (e frágil) balançando sobre a maca que deslocava ruidosa e trepidamente pelos corredores e rampas, indo de um pavimento a outro; o procedimento com cateter; os muitos ‘ais’ até que uma veia fosse encontrada; as mãos atadas. 

Também nunca me esquecerei do dia de ontem, quando levei meu pai para sua primeira internação – aos 91. De quando o conduzi pelo braço, do carro até o prédio; a entrada para a sala de espera da consulta; depois a consulta; em seguida, a ‘longa caminhada’ até a secretaria para assinar a ficha de internação; a ‘longa subida’ ao segundo pavimento; o emocionante encontro com mamãe ali internada; outra caminhada ao terceiro pavimento; mais uma pausa para descansar; e, finalmente, a chegada ao 301. Meu pai entrou e sentou ofegante numa poltrona. Inclinado e com as mãos entrelaçadas, parecia refletir sobre a situação. Por fim, ergueu-se e se acomodou em seu leito. 

Vendo meu velho ali, lembrei-me de quando ele me trouxe para esse mesmo hospital.  Eu não queria ficar, mas papai me abençoou, despediu e foi embora triste. Eu fiquei em lágrimas. Dessa vez, papai me abençoou, mas foi ele quem ficou. Eu vim embora triste, mas sem lagrimas.

(PS.: Publicada no "feldades" em 02/04/2022)


FILIPE

sábado, 19 de março de 2022

LEVANDO BRONCA

 

Pensava eu que os avançados anos me livrariam das recorrentes broncas recebidas ao longo da infância, juventude e até da maturidade, mas não. Semana passada fui repreendido por um sujeito, que parecia não ter razão. Ao serviço. 

De vez em quando preciso dar uma tesourada na ‘’espessa cabeleira’’ de um pé de acerola que sombreia todo o quintal e costuma invadir o telhado vizinho. O arbusto já se tornou uma respeitável árvore e nele abriga um sem-número de pássaros dentre os quais, pardais, bem-te-vis, rolinhas etc. Subo numa escada apoiada em sua ramagem e vou aparando as pontas com um alicate de poda. Preciso ser cauteloso porque a escada pode falsear, provocando minha queda, e há entre as folhagens algumas rolinhas aninhadas, às quais não posso causar danos.  

Cortada toda a galhada, com uma corda de varal amarro um grande feixe e levo para um local distante, à beira do rio. Sempre fiz esse serviço aos domingos, quando o trânsito é calmo, quase inexistente. Dessa vez, porém, decidi trabalhar no meio da semana. Amarrei um feixe, pus às costas e me dirigi à margem do rio, caminhando ao longo de uma rua e tendo que cruzar uma avenida. 

Levei o primeiro feixe de forma muito sofrida, mas com êxito. O segundo feixe também. Por fim, quando fazia a terceira e última viagem, já arqueado, tive dificuldade para atravessar a avenida porque o trânsito estava intenso demais. Por sorte, um caminhão parou para que eu passasse e assim consegui alcançar o outro lado. Virei para agradecer ao motorista, mas ele já havia partido. Pensei: deve ser um ex-aluno. Sempre que recebo gestos solidários de estranhos, penso nos meus ex-alunos, que são inúmeros e já não os reconheço. 

Após descer o último feixe, eu voltava feliz por ter conseguido realizar tão árdua tarefa, quando um homem se aproximou, com cara brava e sequer me dando boa-tarde, e me interpelou:  “Você acha certo o que fez?” “Sim”, respondi. Ele se irritou e quase gritou: “Jogar isso aqui é certo?” Eu também me irritei e disse: “Esse terreno é da prefeitura!” O homem, que tem um comércio naquela beira de rio “há 49 ou 51 anos” –  conforme diz e sem saber qual é o número certo –, quis me dar lições. Percebendo o chão movediço sobre o qual pisava, contemporizou: “Sim, é da prefeitura, mas eu fui incumbido de zelar, não permitindo que joguem lixo aqui”. “Mas isso não é lixo, senhor!”, atalhei e emendei: “Lixo eu vejo sempre por aqui. Ontem mesmo eu recolhi garrafa de vidro”. Agora, de bola baixa, ele se explicou: “Toda semana eu mando meu funcionário fazer uma limpa aqui, mas não tem jeito. Sempre jogam. Ali jogaram um caminhão de sucata, tá vendo?” 

Sentindo que aquele homem, pelo menos no discurso, está preocupado com a limpeza dos espaços públicos, pedi desculpas e lhe perguntei se queria que eu tirasse os galhos de lá.  Ele foi enfático, dizendo que não é necessário, que as folhagens e os galhos apodrecem e viram adubo, que aquilo não é lixo.  Apenas perguntou se eu ainda traria mais. Respondi que não. “Não por hoje?”, quis saber.  “Nunca mais! Bronca eu levo uma vez só”, arrematei.  “Não, não estou dando bronca... Eu te conheço e jamais faria isso contigo”, finalizou. 

E assim, sem mais aperreios, ficou resolvida a questão. 

FILIPE

sábado, 5 de março de 2022

A GUERRA

Ninguém me pediu opinião sobre a guerra que acontece lá pelas bandas da Europa. Se nada me foi perguntado é por que todos já dominam o assunto, ou por que minha opinião não tem valor algum. Ainda assim, ouso expressar meu ponto de vista sobre a insanidade que ocorre naquelas paragens.

O que mais impressiona é que os atores políticos querem tirar proveito da desgraceira que cai sobre os ucranianos. Muitos fazem projeções eleitorais em cima dos cadáveres produzidos por essa guerra bestial. Também no Brasil a esquerda disputa com a direita o butim da guerra. Por aqui há aqueles que se digladiam pela Rússia, e os que se matam pela Otan – todos uns boçais.

Vejo essa questão mais ou menos assim. Não conheço o Rio de Janeiro, mas sei que lá há bairros disputados por milicianos e traficantes. Um parêntese: é preciso dizer que milicianos e traficantes são feitos do mesmo “pó”.

Deixando “aquele pó” de lado e supondo que o solitário leitor more num bairro onde há disputa entre bandos, o razoável é que o amigo não tome partido de gangue alguma, porque qualquer vacilada porá sua vida e a da família em risco.

Nessa analogia, a Ucrânia seria um bairro disputado por dois bandos, de um lado a Rússia e do outro a Otan — esta capitaneada pelos Estados Unidos. O presidente ucraniano, que deveria ter ficado quieto no canto dele, plantando suas roças e vendendo cereais, resolveu abanar o rabo para a Otan e deu no que está dando. A Rússia jamais permitirá que seu quintal, que é a Ucrânia, torne-se uma fortificação dos americanos. E os americanos, que já estão acostumados a cantar de galo em terreiros ultramarinos, querem empoleirar na Ucrânia.

O resultado não foi uma guerra da Rússia, mas agressão covarde à Ucrânia, e isso pode ser explicado. Para entender é preciso fazer umas continhas, e eu as fiz. Do ponto de vista militar dos dois países, comparando efetivo, orçamento e arsenal, seria como uma suposta briga num time de futebol quando o goleiro, no caso a Ucrânia, estaria enfrentado os seus dez companheiros, a Rússia. Agora, se levar em conta o arsenal nuclear da Rússia, a briguinha ficaria um pouco mais desigual. Nesse caso, o goleiro, desarmado, enfrentaria seus dez adversários, cada um deles armado com uma garrucha! Acho que fui didático, não?  Então... não dá para apoiar essa invasão, a menos que eu seja mau ou burro, ou um burro mau.

O argumento que se usa para apoiar os russos seria o de que os americanos querem cercar a Rússia, estabelecendo-se a poucas centenas de quilômetros de Moscou. Isso é verdade, mas não toda a verdade. Tome como exemplo a miserável Coréia do Norte que é inimiga visceral da opulenta Coréia do Sul. Os capitalistas do sul, com toda a sua riqueza e apoio dos americanos, não conseguem se impor sobre seus irmãos comunistas do norte simplesmente porque estes têm arma nuclear.

Em resumo, os interesses da Rússia na Ucrânia são outros e essa invasão não se justifica por motivos de segurança como afirmam alguns. Aos russos não importa onde fica o inimigo, porque seu arsenal nuclear desencoraja qualquer ataque ao Kremlin.

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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

NO TERMINAL RODOVIÁRIO

Cheguei com relativa folga à rodoviária de Sampa. O tempo me permitiu passar na ‘feirinha literária’, que é uma espécie de “quarto de despejo” de uma livraria. Ali há livros a preços bastante razoáveis.  Com módicos 15 reais, por exemplo, compram-se clássicos da literatura brasileira. Sempre levo livros infantis para algum sobrinho e palavras cruzadas para meu pai. Dessa vez garimpei um calhamaço com 365 cruzadinhas por apenas 20 reais. Olhei mais alguma coisa e pedi desconto, mas era só para professor, que precisaria mostrar contracheque. Peguei as cruzadas e uns livrinhos, dentre eles um romance brasileiro do século dezenove, e, por não ter holerite, paguei a fatura cheia e saí.

Fui ao banheiro.  Havia muita gente lá. O piso molhado, escorregadio. Em cada ‘’cabine’’, alguém aliviava as tripas. Naquele momento eu me lembrei de um irmão que costuma dizer: “Se eu estiver no banheiro, não fale comigo. Nem adianta insistir. Pode me chamar, falar, perguntar o que quiser que eu não respondo, porque  ali eu fico mudo. Mudo e bravo!” Mas no banheiro daquela rodoviária era diferente. Ninguém estava mudo nem bravo. Estranhamente, um homem falava alto com seu vizinho de trono. E o outro respondia quase gritando. Eu fui para lavar as mãos, ou tentar. O fluxo de água daquelas torneiras não permite uma higienização decente.  Mas eu repeti a operação algumas vezes até me convencer de que as mãos estavam mais ou menos limpas.

Procurei um banco para sentar. Havia alguns vazios e me acomodei num mais afastado. Sentei e dei largas à minha gula, comendo um lanche que eu trouxe de casa. Ali, no Tietê, não dá pra comprar comida. Eu precisaria vender um rim e um pulmão se quisesse comprar um sanduíche de frango e uma água de coco. Comi sofregamente o pão com rodelas de linguiça apimentada e queijo meia cura. Em vez de suco, água gelada que eu trazia numa garrafa térmica.

Terminada a refeição e satisfeito, vejo que a minha vizinha de frente também terminara de comer a sua maçã, deixando, porém, o esqueleto da fruta no banco ao lado. Olhei para ela e para os restos de sua janta. A moça se entretinha ao celular. Seus dedos unhudos deslizavam freneticamente na tela, mandando e recebendo mensagens. A mim, não importava a moça nem o que ela fazia no seu celular, mas me incomodavam os rejeitos de maçã sobre um banco onde alguém se sentaria. Finalmente eu me levantei e me dirigi a ela, pedindo se eu poderia recolher aquilo. Ela assentiu com um sorriso envergonhado. Com o papel que eu embrulhara meu lanche, e com bastante nojo, peguei aquele sobejo, sem que eu nele encostasse o dedo, e o joguei numa lixeira. Saí dali e fui andando meio sem rumo, até achar outro banco onde não tivesse uma moça comendo maçã nem fazendo porquice.   

Sentei, olhei um dos relógios e vi ser largo o tempo de espera para o ônibus que me traria a Minas. Abri o notebook e comecei a digitar estas passagens quando avistei a meia distância uma amiga e colega de trabalho. Quis ir ao seu encontro,  mas desisti logo em seguida. Gosto de ficar só, principalmente numa rodoviária – esse mar revolto com seu cardume humano e o vaivém apressado de multicoloridas malas de viagem.

 

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