O dia nasce prazenteiro. No pé de
acerola, a passarada festeja numa babel em que todos, como os mineirinhos, falam
ao mesmo tempo e assim se entendem. Eu, que entendo os mineiros, não compreendo
nada do que dizem os passarinhos. São os mais variados bicos, idiomas e plumagens.
Há também um casal de pombinhas silvestres querendo nidificar nessa árvore. Estes
não têm capricho e seu ninho não passa de um amontoado de gravetos. Mas como
são belas as juritis! Bebo cada gota desta manhã, que mal começa e já envelhece.
Uma brisa sopra levemente, levando com ela minha manhã e a minha inspiração.
Ainda há pouco era noite escura.
***
Passaram alguns dias desde o
início desta crônica. As pombinhas já fizeram o ninho e uma delas está sempre
em repouso. Neste momento vejo o casal: ele cofia as penas, enquanto a
companheira continua aninhada e vigilante. Um pássaro de outra espécie vem xeretar,
mas não há conflito entre eles. De tão amistosos, parecem velhos compadres. Os
nubentes talvez não deem conta do perigo que mora embaixo. Espreitam-nos três cães:
Pituka, Tokinho e Tiziu, que não se compadecem de bicho de pena. Este último
compôs a matilha recentemente. Vagava por uma rodovia, prestes a partir para o
‘Paraíso dos Bichos’ – se é que existe um paraíso para eles. Acredito que sim,
porque o Criador não os deixaria no ‘limbo’. No fim dos tempos, todos nós nos
encontraremos na ‘Comunhão das Criaturas’. Assim penso, embora esta minha teologia
seja tola para os doutos, reconheço e não me importo.
***
Volto à crônica. Enquanto o Tiziu
duela com a Pituka, observo o ninho das pombinhas. No rádio, uma orquestra, acho
que de Viena – se não de Viena, de Berlim. Gosto de citar orquestras
germânicas, porque elas parecem agregar sofisticação aos meus textos (!). No pé
de acerola, outra orquestra menos sofisticada do ponto de vista humano: bicos,
muitos bicos, emitem seus tons e semitons sem necessidade de maestro nem
batuta. Aqui dentro, apenas Tokinho e eu. Nem sei se Tokinho está ouvindo as
orquestras. Parece mais preocupado em destruir um chinelo, que já foi meu e que
Tiziu pegou emprestado para “consertar”, devolvendo-o sem correia. Mas a
pombinha continua lá, pensativa, desconfiada de mim e sonhando com dois
‘biquinhos’. E já se foi mais uma manhã.
***
Retorno após uns dias. No
aparelho, João do Morro & Pé de Serra cantam ‘Prato do Dia’: uma ode à
bravura dum pai de família frente a um cafajeste. Os cães saíram e me deixaram. No rádio, agora
é a dupla Duo Guarujá com “Cabecinha no Ombro”. Na aceroleira, uma mãe toda
feliz alimenta dois pimpolhos. Encantadora
manhã! Mas, que se vai.
***
Estou de volta. Tokinho masca uma
coisa preta e redonda parecida com um pastel: meu finado chinelo. Lá fora, um
bater de asas me desperta da leitura e um dos filhotes é predado. Não há tempo.
O corpinho desfalece e o bico sangra. Ah, Tiziu! Mas o irmãozinho escapa. Vai
crescer, emplumar-se e partir. Poderei
observá-lo durante todo o estágio: o primeiro voo cambaleante, o choque com os
galhos, a queda... (um alambrado salvando vida!). Deste lado, os caninos da
Pituka furiosamente brancos. Do outro lado, olhos arregalados, corpinho
trêmulo, asas em desconcerto.
***
Finalizo finalmente. No velho
ninho, outra pombinha, que trará novos pombinhos. E em tempos de crise, tudo se
aproveita, não é juriti? Mas cuidado com o Tiziu! É mais uma manhã que passa,
como passam as juritis, seus ninhos mal feitos, seus filhotes e seus tristes
cantos. Passam as manhãs, passamos nós. Tudo é tão fugaz... Como a vida, os
amores juvenis e os ninhos das juritis.
FILIPE