Dia desses, conversando sobre meu velho pai e as dificuldades por que passamos ao longo da vida, observei que papai plantou abundantemente, cultivou com esmero e nos deixou fartura. Graças a ele, eu disse, temos hoje generosa colheita. “Sim, devemos colher, mas não podemos esquecer de semear também”, ouvi e concordei dizendo que vamos colher as espigas, debulhá-las e semear os grãos!
Metáforas à parte, papai deixou um
rico legado de trabalho, honestidade e desprendimento. Em mais remota memória,
vejo meu pai lavrador: cultivando roças de milho, arroz e feijão; pedreiro:
assentando tijolos, tirando nível e prumo; carapina: lavrando madeira com enxó,
plaina e formão; enfermeiro: aplicando injeções, enfaixando braço quebrado (o
meu); professor: lecionando, alfabetizando vizinhos e filhos; rezador: rezando
terço em velórios e promovendo reuniões para oração na redondeza.
Esse era meu pai: um homem de
oração e de ação, mas não só. Papai vivia sempre apertado financeiramente. Adoentado,
tinha esposa doente e muito filhos para alimentar, vestir e educar. O que ele
plantava e colhia nem sempre era suficiente, fazendo com que se endividasse na
vendinha no Tatão Aleixo, onde comprava
fiado. De vez em quando, também pegava um dinheirinho emprestado com seu
compadre Tatão Tibúrcio. Contudo, papai cumpria à risca todos esses
compromissos. Muitas vezes ajudei levar frangos para vender. Eram umas aves tão
magras, que pouco rendiam, e esse pouquinho ficava lá na venda para abater a
dívida, que só crescia. E assim, sempre que recebia uns ‘cobres’ por um serviço
prestado ou por algo que vendesse, papai ia pagando as contas, evitando o constrangimento
de uma cobrança.
Num passado muito distante, a
vendinha do Tatão Aleixo fora de meu pai, onde se vendia o básico para as
famílias rurais da redondeza. Tinha lá macarrão, querosene, alho, cebola,
açúcar, sal etc. E como toda vendinha rural decente, tinha pinga também! Naquele
tempo, papai teve dissabores com seu comércio – não com os cachaceiros, mas com
os caloteiros. Lembro que em casa havia um rolo amarrado por um barbante contendo
muitas dezenas de papéis nos quais eram marcadas as despesas não pagas pelos
clientes. Papai nunca foi atrás de seus devedores, talvez porque fossem todos muito
pobres e deles se compadecesse.
Um caso mais recente e de grande
relevo se deu na venda de um gado. Papai confiava no comprador e lhe vendeu
várias reses. Aconteceu que aquele senhor sofreu um golpe de um mercador e então
repassou o prejuízo para frente, e um dos “premiados” foi meu pai. Houve quem
fosse atrás do homem, confiscando qualquer coisa que ele tivesse a fim de minorar
o prejuízo, mas meu pai ficou quieto e não o incomodou. Certa vez, meu pai entrou
na agência bancária para receber o benefício, viu o devedor lá. O homem ficou tão
desconcertado diante de meu pai, que parecia estar procurando um buraco para se
esconder. Então papai se aproximou, pôs a mão no ombro dele e lhe disse: “Olha,
fique tranquilo. Eu sempre confiei em você e sei que você vai me pagar. Pode
tocar sua vida em paz, porque eu estou bem e posso esperar o tempo que for
necessário”. O homem, tomado de espanto, agradeceu emocionado ao meu pai e saiu
ruborizado da agência. Papai sempre dizia se sentir muito feliz por ter
conseguido aliviar um pouco o fardo que pesava sobre aquele homem, que poucos
dias depois teve morte súbita.
Neste Dia dos Pais, papai não
está mais aqui para receber meu abraço. No entanto, sua presença é seu legado,
que tento abraçar.
FILIPE
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